terça-feira, agosto 16, 2016

Estado de Direito não deve permitir a exibição pública de mulheres-múmias - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/08

1. Caminho pelo centro de Londres. Várias mulheres de burca passam por mim. Como sempre, sinto desconforto físico e moral.

Essas coisas não se sentem, dizem. Nem se escrevem. Que direito tenho eu de impor um código de vestuário sobre terceiros?

Admito: nenhum. Mas quando vejo uma mulher transformada em múmia, não penso em mim. Penso nela. Aquilo é uma escolha pessoal? Ou, na esmagadora maioria dos casos, uma forma de submissão ao poder masculino?

As mulheres caminham integralmente cobertas, repito. Mas o homem avança na frente, expressão pública e visível do lugar que a mulher ocupa na hierarquia dos sexos.

É também por isso que concordo com a proibição de burcas ou véus integrais no espaço público europeu –já acontece na França; há debate na Alemanha. Primeiro, porque é uma forma de respeito pelos outros: viver nas sociedades ocidentais significa partilhar um código mínimo de valores ou comportamentos.

E, como já escrevi nesta Folha, se eu não ando nu pelas ruas (apesar da minha costela panteísta), agradeço que os outros não andem tapados da cabeça aos pés.

Mas a proibição é também uma forma de respeito pelas mulheres. Excetuando casos extremos, defendo que o Estado não entre na casa dos cidadãos. Que o mesmo é dizer: se uma mulher deseja estar integralmente vestida ou despida entre quatro paredes, problema dela.

Coisa diferente é falar do mundo que existe fora das quatro paredes.

Será que um Estado de Direito deve permitir a exibição pública de uma mulher encerrada em presídios de tecido? Ou deve declarar, em alto e bom som, que não há qualquer tolerância para essas manifestações de brutalidade masculina?

Claro que alguns crentes afirmam o oposto: brutalidade é remover a burca e o véu integral sem respeitar "culturas diferentes". Engraçado: eu julgava que a violência sobre as mulheres não era uma "cultura" digna de respeito entre pessoas civilizadas.

E, já agora, relembro aos multiculturalistas que o Ocidente também é uma "cultura diferente". Por que motivo a "tolerância" perante a diferença se aplica aos outros –mas não a nós?

Seja como for, só posso aconselhar às brigadas a leitura da história que o "Daily Telegraph" publica sobre a libertação da cidade síria de Manbij.

Foram dois anos sob as garras do chamado "Estado Islâmico". A libertação chegou com as tropas americanas. E quando as mulheres viram os soldados entrarem na cidade, o que fizeram? Rasgaram as burcas e, para festejar, fumaram cigarros.

Admito que essas duas ações –rasgar burcas, fumar cigarros– possam ofender multiculturalistas e higienistas em partes iguais. Mas quando vejo uma mulher de burca nas ruas de Londres, é também essa a minha vontade: convidá-la a sair da masmorra e oferecer-lhe um cigarro para comemorar.

2. Estreou no Brasil "Amor & Amizade", o mais recente filme de Whit Stillman. Prometo escrever em breve sobre o assunto. Merece. Primeiro, porque Stillman filma pouco mas filma barbaramente bem (conheci-o com "Metropolitan" e virei cliente). Depois, porque o diretor pegou uma novela "menor" de Jane Austen ("Lady Susan") e acertou no essencial: a cínica misoginia de Jane Austen.

Essa verdade não cai bem em certas fãs da escritora, que veem em Austen uma espécie de feminista "avant la lettre". Não era. Os homens, na prosa dela, podem ser tontos ou vulgares. Mas as mulheres, exceções à parte, são retratadas como seres gananciosos ou reptilianos. Só uma mulher poderia escrever assim sobre as outras mulheres.

E o que é válido para a literatura, é válido para o desporto. Leio na "The Economist" que a Universidade Harvard estudou "padrões de reconciliação" entre homens vs. homens e mulheres vs. mulheres depois de jogos "confrontacionais" (tênis, ping-pong, badminton, boxe).

Conclusão: quando o confronto termina, os homens têm mais contato físico (cumprimentos, abraços, palmadas nas costas etc.) do que as mulheres. As donzelas, com má cara, despacham o assunto rapidamente.

Como explicar a diferença? Os antropólogos de Harvard não sabem. Um pouco de Jane Austen talvez fosse útil para eles. Da minha parte, prometo apenas que vou prestar mais atenção aos Jogos do Rio. Só para confirmar se a "guerra dos sexos" é samba de uma nota só.


A vida é de direita - ARNALDO JABOR

O Globo - 16/08

“A primeira vez que vi a luz foi num botequim, tomando um cafezinho com o chefe teórico de minha base no Partido Comunista, um excelente stalinista com um nariz inchado em ‘couve-flor’. Ele me disse a frase decisiva: ‘O comunista não morre. Só quem morre é o indivíduo iludido. O comunista se sabe um ser social. Ele faz parte de uma coisa maior, logo, comunista não morre’.

E eu, emocionado, sonhei com a vida eterna. Vi a luz. A partir daí, eu era parte de um processo histórico inelutável, muito mais importante que meus anseios burgueses.

Mas, confesso que, para atingir a verdade ideológica, percorri um labirinto de dúvidas. Desviei-me da pequena burguesia, evitei as teses reacionárias dos socialdemocratas.

A fé entrou em mim como uma água santa. Um batismo. Contra todos os obstáculos, chegaríamos ao futuro. Mesmo os erros nos levariam a um acerto final, como ensina a dialética materialista.

Daí para frente vivi com fé e força. Minha vida seria salvar o Brasil. Quando conquistamos o poder com Lula eu pensei: vamos fazer agora o que não conseguimos em 63. Agora é o trem em direção ao fim da história, ao paraíso social.

No entanto, hoje exalo uma cava depressão, à beira do impeachment de nossa presidenta! Que horror esse golpe!... A direita neoliberal imperialista burguesa, a oligarquia alienada e aliada à mídia conservadora, conseguiram destruir nosso grande projeto histórico.

Não viemos para essa piadinha de ‘democracia representativa’, não; a gente tomou o poder para mudar o Estado.

Em 2010, o presidente seria o Dirceu, mas a direita conseguiu expulsar nosso guerreiro do povo. Que pena... Fomos tão sérios em nosso projeto, fizemos tudo certo, sempre seguimos a ‘linha justa,’ sempre soubemos usar os meios para nossos fins. Os inimigos dizem que os fins não justificam os meios, mas nós — vamos botar a bola no chão, amigo leitor —, nós somos pessoas especiais, superiores mesmo à estupidez geral das classes médias, essa gente horrenda, burra, que deveria ser apunhalada ou enterrada viva, como bem disseram dois professores de São Paulo e Rio. Fins justificam meios sim. Por exemplo, dizem que roubamos, mas nunca usamos essa palavra. Sim, ‘desapropriamos’ empresas burguesas para montar nosso pecúlio para o socialismo bolivariano.

Alguns neoliberais dirão: ‘E a Petrobras?’. Muito simples. A Petrobras é uma empresa do povo brasileiro, e seu capital pode ser usado para o bem do mesmo povo. Foi tudo dentro de um projeto progressista.

Por exemplo, qual o problema de comprar a refinaria de Pasadena, no Texas (apelidada de ‘lata velha’ rs, rs), por um preço 30 vezes maior do que valia? 800 milhões de dólares não foram desviados por acaso; nossa presidenta fez olhos de cabra cega para o memorando do Cerveró porque essa grana seria para vencermos a luta entre opressores e oprimidos. Só a luta de classes nos explica.

Agora, está na moda uma visão crítica do patrimonialismo brasileiro, invenção daqueles revisionistas Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Quiseram explicar o Brasil por complexidades sociais e psicológicas. Mas, onde está a opressão, a injustiça que tanto gostamos de lembrar e de sofrer? Eles já estão sendo denunciados por nossos intelectuais. Criticar a injustiça nos enobrece.

Vejam aquela festa de abertura da Olimpíada, por exemplo. Foi uma coisa sórdida embelezar nossa vida, sob aquela ladainha política de ‘país tropical’, abençoado por Deus.

O show uniu a favela e o asfalto, numa falsa conciliação multicultural, mas no fundo para silenciar nossas contradições e a violência dos conflitos. Dizem que foi belíssima a apresentação para 3 bilhões de pessoas no planeta, mas não me deixo enganar: a beleza pode ser reacionária. Foi um show de direita, para uma Olimpíada reacionária.

Não vi nenhum jogo, a não ser da Venezuela e Coreia do Norte, bastiões de defesa contra o imperialismo norte-americano, que será destruído. Os sinais estão no ar.

Acho até bom que o Trump seja eleito presidente dos Estados Unidos — aí... Fode tudo logo e arrasa aqueles gringos, responsáveis por nossa desgraça. O próprio Estado Islâmico é culpa dos americanos; são a consequência do imperialismo na Ásia.

Ouso dizer mesmo que todo o desmanche que aconteceu com o Brasil teve um lado, digamos, ‘progressista’. Desorganizou a oligarquia capitalista, uma coisa que é sempre boa. Temos de avacalhar o capitalismo, mesmo sem ter o que botar no lugar.

Fizemos muito pelo povo, mas agora fomos barrados pela direita mais sórdida: os fascistas que só pensam em equilibrar as contas do país. Mas, que contas? Estávamos no poder, e resolvemos distribuir grana para o povo porque o apoio popular era mais importante que uma contabilidade certinha de armazém. Chávez quebrou a Venezuela, mas, como um passarinho no ouvido do Maduro, detém o poder com ajuda de juízes e militares dominados.

Talvez nosso maior erro, como disse brilhantemente a direção do PT, foi não termos nos aproximado mais dos militares.

Fico olhando o povo. É minha única delícia ainda. Amo sua ignorância, sua simplicidade, sua obediência fácil. Sou um homem bom. E hoje minha consciência está tranquila. Sempre lutei pelo povo, mas sobretudo por minha própria boa consciência. A pobreza seria nossa bússola para salvar a sociedade. Um grande Estado regulando tudo e nosso povo pobre, mesmo analfabeto, mas todo arrumadinho, regido por um Comitê Central esclarecido.

Claro que minha vida pessoal melhorou com algumas sobras de campanha, caixas dois etc. Menti sobre isso sim; mas, que que tem mentir? São mentiras revolucionárias. Mas estou muito triste porque esse sonho ficou impossível. Eles, os neoliberais, os cães capitalistas desfizeram todas nossas grandes obras. A vida social hoje é um caos, sem a tranquilidade do ritmo socialista de viver. Chego a ter inveja da vida arrumadinha da Coreia do Norte. Não aceito a vida como ela é hoje no Ocidente. O presente não presta; só existe o futuro. O certo está no avesso de tudo. A vida é de direita.”

Custo do estatismo - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 16/08

Os números realmente impressionam: 43 empresas estatais criadas em 13 anos dos governos do PT. E foram 47 nos 21 anos do governo militar. Duas foram abertas e fechadas logo depois, como a Empresa Brasileira do Legado Esportivo. O estudo do Instituto Teotônio Vilela (ITV) está publicado no site da entidade, e apesar da linguagem partidarizada os fatos são eloquentes o suficiente e falam por si.

O ITV é órgão do PSDB e o objetivo do estudo, claro, é criticar seus adversários políticos. Mas há fartos motivos e números para isso. A Empresa de Planejamento e Logística (EPL) foi criada pela presidente Dilma na época em que seu presidente Bernardo Figueiredo era homem forte e comandaria a construção do trem-bala. O trem foi abandonado, Figueiredo teve uma perda súbita de prestígio e deixou o governo, mas a estatal ficou.

As 28 empresas não financeiras criadas pelo PT deram um prejuízo de R$ 8 bilhões na soma de todos estes anos e o custo da folha de salários foi de R$ 5 bilhões, segundo mostrou ontem o jornal “Valor”. Os maiores rombos foram de duas subsidiárias da Petrobras, a Petroquímica Suape e a Petrobras Biocombustíveis, que juntas deram um prejuízo de R$ 5 bilhões.

O erro não é criar empresa estatal, porque, eventualmente, elas podem ser necessárias para suprir um serviço de interesse público ou desenvolver um produto que o setor privado não queira correr o risco de produzir. Nestes casos, o melhor é a empresa ser criada, mas com objetivo bem claro, limite de gastos, transparência, obrigação de prestação de contas, profissionalização de gestão e tudo o mais que proteja o contribuinte dos costumeiros abusos. É preciso ficar claro que se ela não for necessária será fechada. Inaceitável é criar centros de prejuízo que se eternizam.

A Amazul foi criada para absorver tecnologia que possa sustentar um projeto, que sempre foi importante para a Marinha, de ter um submarino de propulsão nuclear no Brasil e até agora ela tem um déficit de R$ 27 milhões apenas com as provisões para despesas trabalhistas, porque todos os seus custos são cobertos pelo Tesouro. É uma empresa da qual não se espera mesmo que tenha lucro, porque não exerce atividade econômica. A Amazul informa que “uma das principais razões que motivou a criação da empresa foi conter a evasão de talentos”. E diz que tem uma estrutura enxuta e seu trabalho beneficia a sociedade porque “ajuda a consolidar nossa base estratégica de defesa”.

Não há dúvidas de que há funções do Estado que têm que ser desenvolvidas pelo Estado. Mas são inúmeras as estatais criadas neste período de 13 anos que não tinham razão de existir. A proliferação fazia parte da ideologia de que todo o desenvolvimento tem que ser conduzido e controlado pelo governo. Muitas vezes a ideologia foi apenas o pretexto para se criarem cabides de emprego, não importando o custo para os contribuintes brasileiros.

As estatais já existentes tiveram os seus cargos entregues à mais descarada das ocupações partidárias. Um exemplo: João Vaccari Neto foi nomeado membro do conselho de administração de Itaipu como compensação por não ter sido indicado para a presidência da Caixa, como ele queria. Vaccari hoje está preso e condenado por corrupção. Que qualificação mesmo tinha Vaccari para ser dirigente de Itaipu?

Existem ao todo 149 estatais no país, e as maiores delas, como Petrobras, Eletrobrás, Correios, Valec, Telebras, entre outras, tiveram prejuízos nos últimos anos. O da Eletrobras foi, entre 2011 e 2015, de R$ 26,8 bilhões; o da Valec chegou a R$ 3,3 bilhões e o da Chesf, R$ 5,8 bilhões.

Algumas empresas foram afetadas por má gestão, outras, vítimas de corrupção, todas tiveram dirigentes escolhidos pelo partido no poder ou seus aliados. Estatais foram criadas sem planejamento, foco, ou plano de gestão. E tudo isso foi encoberto pelo discurso de que o Estado é que tem que conduzir o desenvolvimento do Brasil. Desmontar esta estrutura, corrigir os abusos, fechar as ineficientes vai levar vários anos. Um dos casos malucos foi a criação do Banco Popular do Brasil, sem que houvesse qualquer explicação plausível para criar mais um banco público. O BPB deu prejuízo em cinco dos seus seis anos de existência.

Aflição do câmbio - CELSO MING

ESTADÃO - 16/08

Exigir a volta ao equilíbrio cambial sem que os fundamentos da economia estejam equilibrados pode produzir resultados pouco sustentáveis

Diante de uma aflição, certas pessoas puxam os cabelos, brigam com os filhos ou maltratam o cão. Produzem com isso algum alívio momentâneo, mas não atacam a causa da aflição.

No século 5º antes de Cristo, conta o historiador Heródoto, o rei Xerxes, da Pérsia, mandou chicotear o mar quando uma tempestade destruiu a ponte que seus exércitos construíram sobre o Estreito de Dardanelos.

Assim, também, a forte valorização do real (baixa do dólar), de 19,5% neste ano (até esta segunda-feira, 15 – veja o gráfico) vem provocando reações emocionais e inconsequentes de autoridades e empresários.

Na última sexta-feira, 12, por exemplo, o presidente em exercício Michel Temer disse banalidades a respeito do tema. Disse que o governo procura um equilíbrio: “Não pode ter o dólar num patamar elevado, nem um dólar derretido”. O que é esse equilíbrio ninguém sabe e, quando alguém diz que sabe, em geral não leva em conta o tal equilíbrio, mas seu próprio jogo.




Oito entre dez empresários, por exemplo, acham que os juros altíssimos vigentes no mercado interno derrubam a cotação do dólar, mas acham pelo motivo errado, quase sempre porque produzem forte entrada de capital especulativo.

Neste ano, até o momento, não há aterrissagem significativa de capital especulativo destinado a ganhar dinheiro no mole com os juros internos. Tanto não há que o afluxo de dólares direcionado a aplicações em renda fixa está negativo. Os juros altos puxam, sim, pela valorização do real. No momento, puxam mais pelos dólares que não saem do País do que pelos que entram. Isso acontece, por exemplo, quando uma empresa estrangeira com caixa para um projeto prefere trazer capital para investimento (e não para especulação) e usa suas disponibilidades de caixa para aplicação em renda fixa, porque a diferença entre juros internos e externos compensa a operação.

Em entrevista publicada pelo Estadão deste domingo, o empresário Abilio Diniz, defendeu a cobrança de um Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre a entrada de capital especulativo. É outro jeito impulsivo de resolver um problema. Não há, por exemplo, como impor um IOF pelo capital que deixa de sair. E se for para adotar um IOF para reduzir a valorização do real, seria preciso mexer também na outra ponta. Por exemplo, seria preciso eliminar o IOF na saída de dólares para viagens internacionais e nas despesas com cartão de crédito em moeda estrangeira.

Não há uma única causa da forte valorização do real. Ela se deve hoje ao impressionante volume de cursos à procura de aplicação que zanzam pelos mercados; aos juros altos demais, como ficou dito; e à perspectiva de refluxo da crise da economia brasileira, a mesma que leva os bancos a manterem uma posição vendida de moeda estrangeira de mais de US$ 20 bilhões.

Exigir a volta ao equilíbrio cambial – seja lá o que isso signifique – sem que os fundamentos da economia estejam reequilibrados leva o risco de produzir resultados pouco sustentáveis.

CONFIRA:

O impacto na hotelaria
Os Jogos Olímpicos estão tirando a hotelaria brasileira do buraco? O relatório do Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil entende que não.

Perdas recordes
Em 2015, a Receita por Apartamento Disponível (RevPAR) dos hotéis brasileiros caiu 15% em relação a 2014. A média de ocupação mergulhou para abaixo dos 60%, a mais baixa desde 2006. O setor espera nova queda de 15% em 2016, como consequência do novo tombo do PIB e aumento da concorrência, mas aposta em que o desempenho se recuperará no segundo semestre, porém sem melhora significativa do nível de ocupação.

A novidade castiga 


Os hotéis não enfrentam apenas a queda do PIB. Enfrentam acirrada concorrência produzida pelos aplicativos pelos quais as famílias oferecem hospedagem em residências (Airbnb) e agências digitais (Online Travel Agencies – OTAs). Para lidar com eles, praticaram políticas agressivas de preços, fator que derrubou as diárias em cerca de 7%.

Fiscalização – é hora de rever a estratégia - CARLOS ARI SUNDFELD E THIAGO LUÍS SOMBRA

ESTADÃO - 16/08

Controles vão continuar insatisfatórios enquanto não encomendarmos a entidades independentes a rigorosa medição de sua eficácia



Como melhorar o combate não só à corrupção, como às ilegalidades menores da administração pública? Nos últimos 30 anos, a principal aposta das nossas leis e controladores tem sido multiplicar, estender e dar autonomia aos controles, para ameaçar sempre com mais punição os gestores públicos e os particulares. Mas já é hora de rever essa estratégia.

São muitos os órgãos de controle. Na União, a Advocacia-Geral (AGU) e a Controladoria-Geral fazem o controle interno, enquanto o controle externo fica com o Tribunal de Contas (TCU), o Ministério Público (MPU), a Polícia e o Poder Judiciário. Em vários assuntos eles atuam em paralelo e não têm o dever nem os meios para coordenar suas orientações e processos decisórios.

Um gestor pratica um ato, aplicando orientação da AGU. Mas o MPU não concorda com o gestor e com a AGU. E vai à Justiça, alegando improbidade do gestor e pedindo sanções cíveis (a perda do cargo público, entre outras). Enquanto isso, a Polícia Federal abre inquérito para apurar se, com o mesmo ato, ele praticou algum crime e merece ser punido com sanções penais. O gestor se defende da improbidade, perde na primeira e na segunda instâncias, mas tem sorte e, com um novo recurso, acaba absolvido. Final feliz? Ainda não. O inquérito policial virou ação penal, que se vai arrastando sem decisão. E há também uma fiscalização rodando no TCU sobre o mesmo ato. Passados muitos anos, o TCU a transforma em processo contra o gestor, para aplicar uma multa administrativa. E a absolvição na Justiça? Não importa. E o tempo decorrido? Não importa. E a orientação da AGU? Não importa.

Problema sério são o excesso e a diversidade das sanções pessoais: administrativas, cíveis e penais. Quanto ao excesso, o melhor exemplo está na Lei da Improbidade, de 1992. Com suas punições duras, de natureza cível, ela vem sendo usada para processar gestores por simples erros ou por discordância de orientação. Não faz sentido: é injusto, antieconômico e ineficaz. A improbidade tem de ser reservada para os desonestos e para as coisas realmente graves. Ficar abrindo milhares de processos por razões banais é um bom modo de congestionar a Justiça, não de aumentar a probabilidade de punir.

E qual o problema com a diversidade? Se o fato a punir é um só, a racionalidade e a coerência sugerem que as punições possíveis sejam decididas em um só foro. Mas não são: para sanções diferentes, há controladores diversos. A Polícia e a Justiça criminal têm fracassado em boa parte de suas missões, talvez pelo fato de a punição criminal não ser a solução para tantos problemas (o combate às drogas que o diga). Mas, em casos assim, o que as leis novas fazem é criar mais sanções para o mesmo fato, mas para serem aplicadas por algum outro órgão. A Lei Anticorrupção, de 2013, fez isso. É um erro. Sanções e órgãos têm de ser substituídos quando ineficazes. Não faz sentido simplesmente multiplicá-los, o que só complica os meios de controle e aumenta a ineficiência.

Outro engano é supor que os controles serão melhores se não houver prazo máximo para eles atuarem. O TCU, forçando a interpretação das normas, sustenta que não há prescrição para aplicar multas ou rever atos em matéria funcional. O Ministério Público insiste na ideia de que seriam imprescritíveis as ações judiciais de ressarcimento de danos contra o erário, materiais ou morais. São teses bem-intencionadas, mas que no fundo protegem a ineficiência dos próprios controladores, além de gerar permanente insegurança jurídica.

Ter controles é ótimo e os controladores têm se mostrado competentes para fazer sua propaganda. Mas os controles vão continuar insatisfatórios enquanto não encomendarmos a entidades independentes a rigorosa medição de sua eficácia, custo e capacidade de fazer justiça e resguardar o patrimônio público.

Como melhorar o combate não só à corrupção, como às ilegalidades menores da administração pública? Nos últimos 30 anos, a principal aposta das nossas leis e controladores tem sido multiplicar, estender e dar autonomia aos controles, para ameaçar sempre com mais punição os gestores públicos e os particulares. Mas já é hora de rever essa estratégia.

São muitos os órgãos de controle. Na União, a Advocacia-Geral (AGU) e a Controladoria-Geral fazem o controle interno, enquanto o controle externo fica com o Tribunal de Contas (TCU), o Ministério Público (MPU), a Polícia e o Poder Judiciário. Em vários assuntos eles atuam em paralelo e não têm o dever nem os meios para coordenar suas orientações e processos decisórios.

Um gestor pratica um ato, aplicando orientação da AGU. Mas o MPU não concorda com o gestor e com a AGU. E vai à Justiça, alegando improbidade do gestor e pedindo sanções cíveis (a perda do cargo público, entre outras). Enquanto isso, a Polícia Federal abre inquérito para apurar se, com o mesmo ato, ele praticou algum crime e merece ser punido com sanções penais. O gestor se defende da improbidade, perde na primeira e na segunda instâncias, mas tem sorte e, com um novo recurso, acaba absolvido. Final feliz? Ainda não. O inquérito policial virou ação penal, que se vai arrastando sem decisão. E há também uma fiscalização rodando no TCU sobre o mesmo ato. Passados muitos anos, o TCU a transforma em processo contra o gestor, para aplicar uma multa administrativa. E a absolvição na Justiça? Não importa. E o tempo decorrido? Não importa. E a orientação da AGU? Não importa.

Problema sério são o excesso e a diversidade das sanções pessoais: administrativas, cíveis e penais. Quanto ao excesso, o melhor exemplo está na Lei da Improbidade, de 1992. Com suas punições duras, de natureza cível, ela vem sendo usada para processar gestores por simples erros ou por discordância de orientação. Não faz sentido: é injusto, antieconômico e ineficaz. A improbidade tem de ser reservada para os desonestos e para as coisas realmente graves. Ficar abrindo milhares de processos por razões banais é um bom modo de congestionar a Justiça, não de aumentar a probabilidade de punir.

E qual o problema com a diversidade? Se o fato a punir é um só, a racionalidade e a coerência sugerem que as punições possíveis sejam decididas em um só foro. Mas não são: para sanções diferentes, há controladores diversos. A Polícia e a Justiça criminal têm fracassado em boa parte de suas missões, talvez pelo fato de a punição criminal não ser a solução para tantos problemas (o combate às drogas que o diga). Mas, em casos assim, o que as leis novas fazem é criar mais sanções para o mesmo fato, mas para serem aplicadas por algum outro órgão. A Lei Anticorrupção, de 2013, fez isso. É um erro. Sanções e órgãos têm de ser substituídos quando ineficazes. Não faz sentido simplesmente multiplicá-los, o que só complica os meios de controle e aumenta a ineficiência.

Outro engano é supor que os controles serão melhores se não houver prazo máximo para eles atuarem. O TCU, forçando a interpretação das normas, sustenta que não há prescrição para aplicar multas ou rever atos em matéria funcional. O Ministério Público insiste na ideia de que seriam imprescritíveis as ações judiciais de ressarcimento de danos contra o erário, materiais ou morais. São teses bem-intencionadas, mas que no fundo protegem a ineficiência dos próprios controladores, além de gerar permanente insegurança jurídica.

Ter controles é ótimo e os controladores têm se mostrado competentes para fazer sua propaganda. Mas os controles vão continuar insatisfatórios enquanto não encomendarmos a entidades independentes a rigorosa medição de sua eficácia, custo e capacidade de fazer justiça e resguardar o patrimônio público.

*Professor titular da FGV Direito-SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direiro Público; professor e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB), pesquisador visitante da London School of Economics (LSE)

Ninguém é de ninguém - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 16/08

Se a capital do mais rico Estado brasileiro está embolada como jamais se viu, o que esperar da sucessão para o Planalto?



As eleições municipais, que começam oficialmente hoje, são uma prévia para a disputa dos governos estaduais e a de São Paulo serve como tabuleiro onde se mexem as peças para a antecipadamente complexa eleição presidencial de 2018. Se a capital do mais rico Estado brasileiro está embolada como jamais se viu, o que esperar da sucessão para o Planalto?

A já exasperante polarização entre PT e PSDB muda de figura e ganha novos componentes. O mais novo é que o PMDB, fiel da balança entre tucanos e petistas em Brasília, criou uma cunha entre essas duas forças, chegou ao Planalto e ganhou voo próprio e ambição presidencial. Chega de intermediários?

Mas há outros complicadores. O outsider Celso Russomanno (PRB) escapa da Justiça, pega embalo no desgaste do PT e do PSDB, lidera as pesquisas e se transforma no eixo da eleição. Petistas, ex-petistas, tucanos e ex-tucanos disputam entre si quem vai ter fôlego para chegar ao segundo turno contra o “azarão”, todos eles torcendo para que Russomanno repita sua sina de sair bem na largada e morrer na praia.

Mas o mais interessante é que as alianças de Marta Suplicy com Andrea Matarazzo e de Fernando Haddad com Gabriel Chalita, inimagináveis em outros tempos, mostram o surgimento de novos blocos nacionais e sugerem, inclusive, a criação de novos partidos.

Marta, ex-PT, com Andrea, ex-PSDB, é a materialização de uma triangulação para 2018 e para além de 2018: ela é do PMDB de Michel Temer, ele é do PSD de Gilberto Kassab e esses dois partidos parecem cada vez mais embolados com um dos PSDBs, o do chanceler José Serra, que está muito mais dentro do governo Temer do que Geraldo Alckmin e o mineiro Aécio Neves.

No lado oposto, qual a sombra que se projeta na aliança entre Fernando Haddad, do PT, e Chalita, que está no PDT, mas é, antes de mais nada, de um partido muito particular: o partido de Alckmin, que tem como plano A o empresário João Doria e como plano B uma aliança, explícita ou não, com Haddad. Dez entre dez políticos interpretam o nome de Chalita na chapa de Haddad como um acordo, não exatamente entre PT e PSDB, mas entre o PT do atual prefeito e o PSDB do governador.

Há, porém, diferença de timing entre as chapas. A de Marta-Andrea tem ambições de longo prazo. Já a de Haddad-Chalita tem data marcada: nasce e morre na eleição municipal de 2016 e pode, no máximo, chegar à estadual de 2018. Porque, apesar de todas essas maluquices da política, seria um pouco demais imaginar uma chapa do PT com o PSDB para subir a rampa do Planalto. A única alternativa para Alckmin manter um acordo seria articular a ida para o PSB.

O curioso vai ser Marta defendendo os feitos dos velhos adversários Serra e Kassab na Prefeitura, Andrea fazendo loas aos programas petistas de Marta, Haddad puxando brasa para o PT em ações populares tocadas por Marta, Chalita equilibrando-se entre êxitos e fiascos do PT e entre êxitos e fiascos do PSDB, que já foi seu partido.

Para estragar a festa, Luiza Erundina, do PSOL, tende a ser uma metralhadora giratória contra todos os demais, em especial Marta e Doria. Ex-petista, ela comeu o pão que “aquele” amassou quando foi prefeita e depois ministra de Itamar Franco pelo PT, perseguida pelo próprio partido. Mas, hoje, em nome dos dogmas da esquerda, deve fazer, direta ou indiretamente, o jogo do petista Haddad.

E, para estragar a festa ainda mais, todos os candidatos, de todos os partidos e/ou dissidências de partidos, sofrem do mesmo mal: a falta de dinheiro, causada pela proibição de financiamento empresarial e dramatizada pelo pânico geral desta e de futuras “Lava Jatos”. Sem ser candidato, o juiz Sérgio Moro vai pairar sobre as eleições de Norte a Sul.

Letra morta. Dilma Rousseff demorou tanto que vai acabar lançando a tal carta quando não dá mais as cartas.


O "trouxa" e a "inocenta" - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 16/08

Dilma e Bumlai, o amigo de Lula, culpam o PT por suas dores. Ela se acha traída. Ele se vê como o otário usado para pagar a conta de uma suposta chantagem contra Lula



Ela se considera vítima do próprio partido e da oposição, traída pelos aliados e até hoje perseguida pelos assassinos e torturadores da ditadura acabada 31 anos atrás. Ele se acha “trouxa”, otário, simplório, fácil de ser enganado.

Foi dessa forma que a ex-presidente Dilma Rousseff e o pecuarista José Carlos Bumlai se apresentaram nos últimos dias.

Dilma, em defesa prévia, culpou o PT por “responsabilidade” no pagamento ilícito de US$ 4,5 milhões aos publicitários João Santana e Mônica Moura para saldar dívidas da sua campanha presidencial de 2010.

O dinheiro teve origem em propinas cobradas pelo ex-secretário de Finanças do PT João Vaccari sobre os contratos da Petrobras com o um estaleiro de Cingapura, Keppel Fels — contou no tribunal o engenheiro Zwi Skornicki, intermediário de repasses mensais de US$ 500 mil para Santana, via Suíça, entre setembro de 2013 e outubro de 2014, quando Dilma foi reeleita.

Era um segredo das campanhas presidenciais de 2010 e 2014: “Achava que isso poderia prejudicar profundamente a presidente Dilma”, disse Santana, em juízo, ao explicar por que não contara antes. “Eu que ajudei, de certa maneira, a eleição dela, não seria a pessoa que iria destruir a presidente. Nessa época (da sua prisão, em fevereiro deste ano), já se iniciava um processo de impeachment”.

Há mais coisas ocultas. Envolvem o fluxo de dinheiro da Odebrecht para campanhas de Dilma, Lula e outros do PT. Ficaram reservadas à colaboração premiada cujo desfecho talvez coincida com o impeachment no Senado.

Nesse outro processo, a “presidenta inocenta” — segundo o golpismo gramatical da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) — apresentou sexta-feira uma defesa de 675 páginas. Nela se definiu como vítima de uma “farsa” marcada pelo “desvio de poder, pela traição, pela desonestidade e pela ilegalidade”. Amaldiçoou quem discorda: “Nunca poderão afastar das suas mentes a lembrança dos que morreram e foram torturados.”

Se confirmado o epílogo, Dilma estará fora do baralho, inelegível aos 68 anos de idade. E, sem imunidade, passa ao centro das investigações sobre corrupção na Petrobras. Isso porque os publicitários confirmaram seu aval para operações ilegais com fornecedores da estatal.

Como Dilma, o pecuarista Bumlai também culpa o PT por suas dores. Apresentou uma defesa em 70 páginas na sexta-feira. Delas emerge como o “amigo de Lula” que aos 72 anos coleciona doenças, carros (23) e imóveis (23) — entre eles, uma fazenda de R$ 90,4 milhões. Bumlai se define, literalmente, como “um trouxa usado pelo PT e pelo Banco Schahin” na lavagem de R$ 12 milhões.

Esse dinheiro teria sido usado, em parte, para pagamento de uma suposta chantagem sobre Lula, quando era presidente da República. O objetivo era evitar revelações sobre o sequestro, a tortura e o assassinato do prefeito de Santo André (SP), Celso Daniel, no ano eleitoral de 2002. A vítima teria descoberto desvio dos cofres municipais para o caixa do PT.

O caso permaneceu à sombra por 14 anos. Ressurgiu no juízo de Curitiba pela voz de Bumlai, agora no improvável papel de “trouxa” — confissão que lhe abriu o caminho para um acordo de delação premiada.


Politização indevida - MERVAL PEREIRA

O Globo - 16/08

Continua tendo repercussão negativa, por desautorizar parte importante da Lei da Ficha Limpa e representar uma politização de questões técnicas, como ressaltou em seu voto vencido o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, o julgamento recente do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu que, para as contas de prefeitos (e, em consequência, de governadores também) serem rejeitadas, precisa haver a aprovação de 2/3 das Câmaras municipais (ou Assembleias estaduais), não sendo suficiente o parecer dos Tribunais de Contas municipais ou estaduais.

No julgamento, Barroso advertiu em seu voto vencido: “Se o prefeito, em lugar de pagar o fornecedor, colocar o dinheiro no bolso, o julgamento das suas contas não pode ser político, mas, sim, técnico. Ninguém pode dizer: ‘Eu sou ladrão, mas tenho maioria na Câmara municipal’”.

A principal questão nesse caso é a distinção entre contas de governo e contas de gestão. Seguindo a linha de pensamento do ministro do Tribunal de Contas da União Bruno Dantas e do procurador de Contas do TCU Julio Marcelo, já mencionada na coluna de domingo, Barroso lembra em seu voto que a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da administração pública compreende o exame da prestação de contas de duas naturezas: contas de governo e de gestão.

“A competência para julgamento das contas será atribuída à Casa Legislativa ou ao Tribunal de Contas em função da natureza das contas prestadas, e não do cargo ocupado pelo administrador”, ressaltou. As contas de governo, também denominadas contas de desempenho ou de resultados, objetivam demonstrar o cumprimento do orçamento, dos planos e programas de governo. Referem-se, portanto, à atuação do chefe do Executivo como agente político. A Constituição reserva à Casa Legislativa correspondente a competência para julgá-las em definitivo, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas, conforme determina o art. 71, I da Constituição Federal. É o mesmo caso da Presidência da República, cujas contas, depois de parecer do TCU, são submetidas ao Congresso.

Já as contas de gestão, também chamadas de contas de ordenação de despesas, possibilitam o exame não dos gastos globais, mas de cada ato administrativo que compõe a gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do ente público, quanto a legalidade, legitimidade e economicidade.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a competência para julgá-las é dos Tribunais de Contas, em definitivo — portanto, sem a participação da Casa Legislativa respectiva —, conforme determina o art. 71, II da Constituição. Essa sistemática é aplicável aos estados e municípios por força do art. 75, caput da Constituição.

Assim sendo, diz Barroso, se o prefeito age como ordenador de despesas, suas contas de gestão serão julgadas de modo definitivo pelo Tribunal de Contas competente, sem intervenção da Câmara municipal. Ele votou pela constitucionalidade da lei complementar 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, na parte em que assenta ser aplicável “o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão dos mandatários que houverem agido nessa condição”.

Para os fins do disposto nesse dispositivo, incluem-se entre os mandatários os prefeitos e demais chefes do Poder Executivo, como entendia o STF anteriormente. Com o julgamento recente, o Supremo alterou seu entendimento sobre o caso, pois o que vigorava até então era a interpretação de que, por força dos arts. 71, II, e 75, caput, da Constituição Federal, “compete aos Tribunais de Contas dos estados ou dos municípios ou aos Conselhos ou Tribunais de Contas dos municípios, onde houver, julgar em definitivo as contas de gestão de chefes do Poder Executivo que atuem na condição de ordenadores de despesas, não sendo o caso de apreciação posterior pela Casa Legislativa correspondente”.

Com esse novo entendimento, a maioria dos prefeitos e governadores considerados inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa escapará da punição se conseguir — o que é provável — que as Câmaras e Assembleias Legislativas aprovem suas contas ou simplesmente não as analisem, pois o STF decidiu também que, em caso de omissão de análise, os executivos não podem ser considerados inelegíveis apenas com o parecer dos Tribunais de Contas.


Muita lei, pouco bom senso - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 16/08

Começa oficialmente hoje a campanha eleitoral. Os candidatos, que em muitos casos já conhecemos há meses, podem agora render-se à ontologia e finalmente declarar-se candidatos sem medo de represálias da Justiça Eleitoral.

E você, dileto (e)leitor, que se entusiasma com algum nome, já pode afixar na fachada de sua casa ou muro de seu terreno um cartaz ou faixa com a propaganda de seu líder, desde que confeccionados com papel ou adesivo e não excedam 0,5 m². Obviamente, também é necessário que seus dizeres se enquadrem nas draconianas exigências impostas pela Lei Eleitoral (9.504/97), pouco importando que ela bata de frente com os dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de expressão.

É claro que precisamos de regras para realizar uma eleição, mas receio que a 9.504, embora logre disciplinar o processo, o faz de forma atabalhoada, limitando em demasia a liberdade de pessoas e candidatos e perdendo-se em detalhes insignificantes quando não contraproducentes.

Pior, como é impossível prever tudo, quando nos deparamos com situações concretas, a aplicação da norma não raro produz soluções absurdas. Um caso gritante é o dos debates entre candidatos a prefeito em São Paulo. Pela nova regra, só têm direito cativo a participar postulantes de partidos com mais de nove deputados federais. Isso tira dos debates Luiza Erundina (PSOL), com 10% das intenções de voto segundo o Datafolha, e põe o Major Olímpio (SD), que aparece com apenas 2%.

A lei até prevê a participação dos candidatos de legendas que não atingem a nota de corte, mas só se ela contar com a anuência de 2/3 dos debatedores cativos e se todos os outros postulantes, incluindo os nanicos, forem convidados. Obviamente, faria mais sentido deixar que TVs e rádios operem sem amarras, chamando para os debates só os candidatos jornalisticamente relevantes. Mas isso a Lei Eleitoral não deixa fazer.


A PEC não cura zika - GIL CASTELLO BRANCO

O GLOBO - 16/08

Por si só, a emenda do teto dos gastos não será suficiente para promover o reaquecimento da economia



Na década de 60, Tom Jobim e Newton Mendonça compuseram o “Samba de uma nota só”. A canção é curiosa, pois a linha melódica foi moldada em uma única nota repetida várias vezes. A dupla Jobim e Mendonça foi a mesma que compôs “Desafinado”, ironia dirigida àqueles que implicavam com os acordes dissonantes da bossa nova.

Lembrei-me do “sambinha” — como Tom o chamava — ao observar que, passados três meses do afastamento da presidente Dilma, muito pouco de concreto foi realizado para o reequilíbrio das contas públicas. Apesar do déficit primário (diferença entre despesas e receitas excluído o pagamento de juros) de R$ 170,5 bilhões, Temer praticamente limitou-se a encaminhar ao Congresso Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria um teto para as despesas. Assim, tornou-se o governo de uma PEC só, a que promete curar até o vírus da zika.

Como no período entre 2008 e 2015, a despesa do governo federal cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%, a PEC estabelece que durante 20 anos o crescimento anual do dispêndio será, apenas, o correspondente à variação do IPCA do ano anterior. O que se depreende da norma é que, respeitado o teto, determinadas despesas poderão subir mais do que a inflação, desde que outras cresçam menos. A questão crucial será definir quais serão as despesas que passarão a crescer menos do que vinham crescendo anteriormente. A área econômica enxugou ao máximo o texto remetido ao Congresso justamente para minimizar a polêmica do detalhamento. Dessa forma, a regra geral deverá passar, mas os problemas surgirão quando da implementação.

É óbvio que a PEC só terá eficácia se valer para os grandes grupos de despesas que são Saúde, Educação, Assistência e Previdência Social, os quais somam três quartos da despesa primária. Cada um desses segmentos, entretanto, possui grupos de pressão organizados que até concordam com o teto, desde que este não os afete.

As mobilizações estão em curso. Em Brasília, no caminho do aeroporto, já está fincado enorme outdoor com os dizeres “Diga não à Reforma da Previdência”. Movimentos sociais também já se manifestaram contra a PEC para manter a vinculação de receitas para gastos com Saúde e Educação, prevista na Constituição. Para pressionar o Congresso, Meirelles afirma que o plano A é o controle de despesas, o B é a privatização, e o C, o aumento de impostos.

A PEC é o cerne do plano A. Sua aprovação será essencial para restabelecer a confiança mínima dos agentes econômicos no reequilíbrio das contas públicas. Mas, por si só, a emenda não será suficiente para promover a retomada dos investimentos e o reaquecimento da economia, de forma a ampliar a arrecadação e favorecer o equilíbrio fiscal.

Na pratica, a PEC indexa a despesa primária à inflação e só trará benefícios fiscais se as receitas crescerem de forma real, acima da variação nominal dos dispêndios.

Porém, sem mudanças radicais na Previdência, a PEC será inócua. A questão vai muito além da discussão sobre a idade mínima. Precisamos de uma “nova Previdência”, atrativa para os jovens que hoje fogem das leis trabalhistas e do INSS. A geração que irá sustentar as aposentadorias futuras está criando pessoas jurídicas e procurando pokémons.

Quanto ao plano B, as privatizações, o aperfeiçoamento da modelagem e a maior celeridade nos projetos de concessões, outorgas e parcerias público-privadas (PPP) precisam urgentemente sair do papel.

O pior dos planos é o C, o aumento dos impostos. Em um país onde existem mais de cem empresas estatais, com cerca de meio milhão de funcionários, movimentando anualmente valor equivalente ao PIB da Argentina, há muito o que cortar, antes de aumentar impostos. Os 99.800 cargos, funções de confiança e gratificações do Poder Executivo Federal dão a dimensão da burocracia. O custo dos dez milhões de funcionários públicos da União, estados e municípios, soma 14% do PIB.

O economista e diplomata Roberto Campos completaria 100 anos em abril de 2017. Costumava dizer que o Brasil tinha três saídas: Galeão, Cumbica e o liberalismo. E acrescentava, "pagar impostos não é cidadania. Cidadania é exatamente o contrário: é controlar os gastos do governo”. Se este é o caminho, o erro de Roberto Campos foi apenas o de dizer verdades antes que os demais as compreendessem.

Enfim, por maior que seja a admiração que tenhamos por Tom Jobim e Newton Mendonça, a economia brasileira não pode depender da PEC, como o samba de uma nota só. Em sendo assim, o país continuará “desafinado”.

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas

O golpe da ideologia - CRISTOVAM BUARQUE

CORREIO BRAZILIENSE - 16/08

Do ponto de vista do marketing, faz todo o sentido a narrativa de que o impeachment da presidente Dilma seria um golpe. Com essa interpretação, o PT ganha fôlego ao jogar sobre o novo governo a responsabilidade por todos os problemas que os governos Lula-Dilma criaram nos últimos anos, ficando livre para lembrar as boas políticas que fez e tendo a bandeira da vitimização.

Tanto no caso de Dilma, quanto de Collor, o impeachment é uma violência constitucional e pode-se duvidar se os crimes identificados seriam suficientes para justificar a destituição de presidentes eleitos. No caso de Collor, o crime teria sido enriquecimento ilícito, sem crime de responsabilidade contra a Constituição; e mesmo desse crime comum, não de responsabilidade, ele foi posteriormente inocentado pelo STF.

No caso de Dilma, o uso de banco estatal para financiar programas do governo e a assinatura de decretos orçamentários sem autorização do Congresso são crimes de responsabilidade que ferem a Constituição. Mesmo assim, faz sentido duvidar se essas ilegalidades seriam suficientes para sua destituição. Incomoda a falta de dosimetria para a sentença.

Mas o que não pode ser aceito racionalmente é a falsa narrativa de que as pessoas se dividem em direita, se querem o impeachment, e esquerda, se defendem a volta da presidente Dilma. Nada mais falso. Ser de esquerda significa: em primeiro lugar, sentir inconformismo com a realidade social, política, econômica e ética do país; em segundo, ter expectativa de que é possível um mundo melhor, alguma forma de utopia; e terceiro, que este mundo melhor não ocorrerá naturalmente, por regras de mercado. Ele só será construído pela prática política progressista ou revolucionária.

É certo que muitos dos que defendem o impeachment são notórios conservadores, saídos do próprio bloco de apoio à presidente Dilma. Mas aqueles que se opõem ao impeachment são em geral acomodados politicamente em relação ao presente, comemoram pequenas conquistas sociais, perderam a capacidade de sonhar uma sociedade utópica, como, por exemplo, os filhos dos pobres estudarem em escolas tão boas quanto às dos ricos, e abriram mão do vigor transformador da sociedade. Além disso, ficaram coniventes com a ideia de que se todos roubam, não há porque exigir honestidade dos aliados. Ainda mais, olham pelo espelho retrovisor da história, sem perceberem que a realidade mudou e que as propostas e os processos políticos precisam levar em conta as mudanças.

A esquerda do retrovisor não percebe, por exemplo, que o aumento na esperança de vida e o esgotamento fiscal do Estado exigem reformas nos fundamentos do sistema previdenciário; que a globalização apresenta limites à autonomia das decisões nacionais; que a revolução científica e tecnológica, junto com a informática e a robótica, exige um aperfeiçoamento das leis trabalhistas. Não percebe que a economia tem limites fiscais e ecológicos; que o estatismo muitas vezes se divorcia do interesse público, do povo; que a democracia com liberdades plenas deve ser um compromisso absoluto, inegociável, e que a política de esquerda não pode ser feita com a arrogância de donos da verdade, nem pode tolerar corrupção, ou aceitar que os fins justificam os meios.

Com um mínimo de seriedade, não é possível dividir as posições sobre esse impasse como um debate entre esquerda e direita: há muitos direitas entre os que defendem o impeachment, mas também muitos esquerdas do retrovisor entre aqueles que se opõem ao impeachment, porque não querem fazer a história avançar. Mas, sobretudo, há muitos de esquerda que olham para frente, pelo para-brisa e consideram necessário o impeachment para virar a página e avançar em direção a um novo tempo.

Não é difícil entender que a volta da presidente Dilma seria um gesto de retrovisor e não de avanço; e que sua substituição pelo vice conservador que ela escolheu, desde que seguindo os ritos constitucionais, possa possibilitar uma travessia para que a esquerda do para-brisa entenda as mudanças, se sintonize com o futuro e leve adiante a luta que os acomodados não fizeram nem farão. E que tentam impedir o impeachment com o golpe da ideologia, sabendo das dificuldades políticas, econômicas, sociais, éticas que este acomodamento conservador da esquerda retrovisor provocaria.


O último dilema de Dilma - BERNARDO MELLO FRANCO

FOLHA DE SP - 16/08

Na reta final do impeachment, Dilma Rousseff enfrenta seu último dilema: comparecer ou não ao julgamento do Senado, que começará no próximo dia 25.

A rigor, a decisão deve influir pouco no desfecho do caso. A maioria contra a presidente está consolidada. Os senadores que se diziam indecisos estavam menos interessados em argumentos do que em melancias.

O que está em questão é a forma como Dilma se despedirá do cargo. Numa avaliação realista, ela parece ter duas opções: perder enfrentando os adversários ou perder por W.O.

Se for ao Senado, Dilma será ouvida na condição de ré. Seu plano original era usar a tribuna para atacar o processo de impeachment e o interino Michel Temer, que ela tem chamado de "traidor" e "usurpador".

O problema é que a petista não será a única a falar. Os 81 senadores terão direito a fazer perguntas ou simplesmente discursar. Ela terá que ouvi-los por horas a fio, num teste de nervos transmitido ao vivo na TV.

Como Dilma é conhecida pelo temperamento explosivo, aliados temem que ela se descontrole diante de tipos como o pastor Magno Malta, que foi seu cabo eleitoral na campanha de 2010, e o ruralista Ronaldo Caiado.

O líder do PSDB, Cássio Cunha Lima, diz que a presidente afastada não tem o que temer. "Se ela for ao Senado, o tratamento será respeitoso. Não haverá nenhum tipo de provocação, mas as perguntas serão feitas com a contundência necessária."

O líder da minoria, Lindbergh Farias, é um dos petistas que insistem para que Dilma compareça ao julgamento. "Acho que ela tem que ir. É a hora de chamar a atenção do país, e ela cresce muito nos momentos de enfrentamento", afirma.

Dilma ainda não anunciou uma decisão, mas tem indicado a aliados que pretende ir ao Senado. Os favoráveis à ideia relativizam o risco de um bate-boca diante das câmeras. Se os adversários exagerarem na agressividade, dizem eles, a presidente poderá sair do plenário como vítima.


O protagonismo do STF e as fronteiras do ‘aceitável’ - JOSÉ EDUARDO FARIA

ESTADÃO - 16/08

O que preocupa não é o número de decisões que as ultrapassam, mas os precedentes abertos



Em meu último artigo discuti o papel contramajoritário defendido para o Supremo Tribunal Federal (STF) por alguns de seus ministros, como forma de conferir efetividade à Constituição em matéria de direitos fundamentais e assegurar os direitos das minorias contra Parlamentos e governos eleitos com base na regra da maioria. Terminei indagando se seus ministros são mais preparados do que parlamentares e governantes para filtrar demandas sociais. Suscitada por uma nova e talentosa geração de constitucionalistas, que enfatizam a força normativa dos princípios jurídicos e defendem a ponderação como método de interpretação das leis, essa discussão envolve questões importantes, das quais destaco quatro.

A primeira diz respeito às implicações institucionais da criação judicial do direito. Quando dispositivos constitucionais têm a forma de princípios, que são indeterminados por natureza, como definir critérios minimamente objetivos para interpretá-los, conjugando legitimidade com segurança do direito? Ao ampliar os poderes político-normativo dos juízes, as intervenções extensivas permitem aos tribunais expandir seu campo de atuação, o que tende a criar tensões institucionais.

A segunda questão trata do alcance da representatividade do regime democrático. Por causa do poder econômico no financiamento eleitoral, de pressões corporativas e da apropriação de verbas públicas por certos grupos, esses sistemas não representariam a vontade majoritária da população – entendem os neoconstitucionalistas. Com isso os partidos estariam cada vez mais desconectados da sociedade civil, levando-a a encarar a política com indiferença e desconfiança. Assim, ao invalidar um ato do Legislativo, o STF neutralizaria os vícios de representatividade agindo de modo contrarrepresentativo – concluem.

A terceira questão parte do déficit democrático da representação política. Segundo os neoconstitucionalistas, a crise de legitimidade do Legislativo permitiu a expansão do Judiciário, levando-o a se tornar mais sensível aos anseios sociais do que os canais encarregados de promover agregação de interesses e tomar decisões coletivas. Assim, a sociedade se identificaria menos com os parlamentares e mais com os magistrados, que seriam imunes ao populismo.

A quarta questão trata do que chamam de “substantivação” do conceito de democracia. Para eles, a democracia não se limita à regra de maioria e ao papel legislativo dos Parlamentos, implicando um aumento do peso político do Judiciário. Se os Parlamentos são legitimados pelo voto, a Justiça seria legitimada por um processo discursivo ao fim do qual são explicitadas as razões das decisões tomadas – afirmam. O problema é que, ao recorrer muitas vezes a argumentos extrajurídicos e a juízos de oportunidade não deduzidos das leis interpretadas, os juízes podem construir regras distanciadas das diretrizes gerais da ordem legal. E quanto mais se apegam a princípios e doutrinas muito amplas, mais tendem a extravasar os limites dos casos concretos sub judice. Com isso o Judiciário deixa de operar com base na legalidade e imparcialidade, convertendo-se numa instituição que decide com critérios políticos – e a politização judicial implica parcialidade e protagonismo.

Esses argumentos são polêmicos, por entreabrirem uma visão romantizada das virtudes da magistratura e da Justiça. Faz sentido a afirmação de que juízes podem ter, com base no título de Excelência, mais representatividade que quem ascendeu a um cargo legislativo ou executivo com base no voto popular? É aceitável e democrático que um grupo de juízes possa tomar decisões morais e fundamentais em nome de todos ou criar leis que a maioria dos cidadãos terá dificuldades para mudar? Por mais problemas de representatividade que apresente, o Legislativo permite críticas, protestos e vetos, atuando como um mecanismo de desocultação, vigilância e impugnação. São características opostas às do Judiciário, cujos membros sacralizam o princípio da autoridade, cultivam um discurso incompreensível para os leigos e não admitem críticas. O boneco que imitava um ministro do STF, por exemplo, foi classificado pelo presidente da Corte como “inaceitável atentado à credibilidade do Judiciário”.

Alguns neoconstitucionalistas advertem para a arrogância a que os magistrados estão sujeitos. Mas o fazem com indulgência, lembrando que, enquanto parlamentares têm mandatos e muitas vezes negociam favorecimento a interesses particulares em troca de financiamento eleitoral, juízes não precisam fazer concessões, por terem garantia da vitaliciedade. Alegam ainda que, como o acesso à corporação se dá por concurso, os juízes viriam de diferentes segmentos sociais, o que lhes daria a representatividade para interpretar melhor a vontade da sociedade.

Esses argumentos pecam pela excessiva idealização da magistratura, como se seus membros fossem anjos, arcanjos e querubins. Dizer que o STF é essencial para a democracia é correto. Alegar que ele pode corrigir omissões dos outros Poderes também é correto. Afirmar que sociedades complexas exigem formas abertas de raciocínio jurídico, estimulando os juízes a incorporar em suas decisões o respeito ao princípio da dignidade humana, é correto. Reconhecer que o STF assume algum protagonismo quando enfrenta problemas de antinomias jurídicas é aceitável. Mas enfatizar que interpretações contramajoritárias e contrarrepresentativas dão “potencialidades civilizatórias” aos juízes é temerário. Principalmente se lembrarmos as conversas telefônicas em que um ex-presidente da República cobrava alinhamento político de ministros que indicou para o STF ou do número de magistrados que o CNJ já afastou por desvio de função. Entre os neoconstitucionalistas, há quem diga que são poucas as decisões do STF que ultrapassaram a “fronteira aceitável” do bom senso e do respeito à Constituição. Não é o número dessas decisões que preocupa, e sim os precedentes abertos.

É professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)

Proliferação de estatais - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 16/08

A ideologia petista sempre pregou que a solução dos problemas nacionais inclui o aumento da interferência do Estado na vida econômica e social do País


A ideologia petista sempre pregou que a solução dos problemas nacionais inclui o aumento da interferência do Estado na vida econômica e social do País, em especial com o fortalecimento e a proliferação de empresas estatais. Com essa distorcida visão, Lula e Dilma aproveitaram seus anos na Presidência da República para criar dúzias dessas empresas. Levantamento feito pelo Instituto Teotônio Vilela (ITV) indica que, entre 2003 e 2015, foram criadas 43 empresas estatais. Continuam ativas 41.

Além de ineficaz – basta ver a herança maldita deixada por 13 anos de PT no governo federal, com uma crise econômica, social, política e moral sem precedentes na história do País –, essa política de proliferação de estatais gerou uma conta cara para o bolso do brasileiro. De acordo com o estudo do ITV, as operações das 28 estatais não financeiras criadas nos anos de gestão petista geraram um prejuízo acumulado de R$ 7,99 bilhões. Além disso, no período, a folha salarial dessas novas empresas consumiu mais de R$ 5,4 bilhões.

Duas subsidiárias da Petrobrás foram as mais deficitárias entre as novas estatais. O prejuízo acumulado da Citepe desde sua criação, em 2009, foi de R$ 4,01 bilhões. Em segundo lugar está a Petroquímica Suape, com um saldo negativo de R$ 3 bilhões.

A ânsia petista de criar estatais foi mais intensa até mesmo que a observada nos governos militares, período marcado por forte presença do Estado na vida econômica. Durante os 21 anos de ditadura militar, entre 1964 e 1985, foram criadas 47 empresas estatais. Já o PT, em 13 anos, criou 43 empresas estatais. É um número mais que expressivo, tendo em conta que, segundo o Ministério do Planejamento, o governo federal tem hoje ao todo 149 estatais.

Não é apenas o número de estatais criadas por Lula e Dilma que chama a atenção. Surpreende a diversidade das áreas de atuação dessas empresas. A lista inclui, por exemplo, uma fábrica de semicondutores no Rio Grande do Sul – cuja promessa na inauguração incluía a transformação da região do Vale dos Sinos em um novo Vale do Silício – e a Hemobrás, empresa de produção de medicamentos derivados do sangue em Pernambuco. Vinculada ao Ministério da Saúde, a estatal deveria “reduzir a dependência externa do Brasil no setor de derivados do sangue e biofármacos”.

Entre as obras-primas da administração petista está também a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade S.A. (Etav), criada para supervisionar a execução das obras de infraestrutura e implantação do trem de alta velocidade que ligaria Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Posteriormente, a estatal teve suas competências ampliadas para abrigar os estudos e pesquisas de planejamento integrado de logística no País, envolvendo rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias. Com a mudança, passou a se chamar Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL). Nada disso, porém, fez mudar a realidade da estatal, reconhecidamente irrelevante no planejamento da infraestrutura logística nacional.

A diversificada lista das 41 estatais petistas faz parecer que os governos petistas operavam com a ideia fixa de que, para todo problema, se devia ter uma estatal. Esse modo primário de gestão pública tem um alto custo social. Com enormes desafios econômicos e sociais a serem enfrentados – basta citar saúde, educação e saneamento básico –, o governo federal despendeu energias e recursos em atividades inúteis.

Ou seja, o prejuízo dessa política não se resume ao rombo econômico, já por si escandaloso, que se vê nos balanços das novas estatais. Entre os efeitos danosos da gestão petista incluem-se também todas as omissões administrativas – aquilo que podia e devia ser feito, mas foi deixado de lado em função de o governo estar preocupado com a criação de novas estatais.

Além do mais, num ambiente de tanta conivência com a corrupção, sempre fica a dúvida se era apenas ideológica a motivação para criar tanta estatal.


Uma eleição propícia ao caixa dois - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 16/08

Sem possibilidade legal de atuarem na campanha, empresas tendem a voltar à clandestinidade, mais um motivo para se aprovar o pacote anticorrupção

Apresentada à sociedade como medida moralizadora da política, a proibição do financiamento de campanhas por empresas, aceita pelo Supremo, por maioria de votos, numa ação movida pela OAB, terá nas eleições municipais de outubro o primeiro grande teste. Cujo resultado será negativo.

O desfecho ocorreu no crescendo de uma campanha, na qual o PT e aliados estiveram à frente, a favor do financiamento público total da política. Seria um passo contra os interesses do contribuinte — levado a arcar também com o aumento desses gastos —, para quem era acenada a ilusão de que a estatização das finanças da política conteria de maneira eficaz a corrupção.

Usavam este argumento enquanto se beneficiavam do assalto lulopetista a empresas públicas, a Petrobras em primeiro lugar. No mínimo, uma contradição. Ou hipocrisia.

No Planalto, a presidente Dilma tratou de sancionar um grande aumento do fundo partidário — de R$ 290 milhões para R$ 870 milhões. Era um passo rumo ao financiamento público total, algo que interessava ao PT pelo tamanho da sua bancada e por ideologia mesmo. Quando o melhor era aperfeiçoar as regras das doações de empresas, torná-las mais transparentes e a legislação, mais eficaz e dura.

Não veio a estatização, mas o STF, ao alijar as empresas das doações, aumentou a importância do fundo partidário para as legendas. Sem as pessoas jurídicas no circuito, restam o dinheiro do fundo e o conhecido e cultivado caixa dois. A Lava-Jato demonstra como não falta tecnologia para transferir dinheiro sem deixar rastros. Até a Justiça eleitoral foi usada para lavar propinas geradas na Petrobras.

O tiro n’água do veredicto do Supremo não estimula apenas o dinheiro “por fora”, quase um esporte nacional do mundo da política. Mas também torna mais desigual a concorrência entre candidatos. Aqueles com patrimônio, ricos, saem na frente. Também os com acesso a igrejas, cuja movimentação financeira nunca chama a atenção das autoridades. Há ainda a atração crescente do submundo pela representação política, caso das milícias. E se o lobby da jogatina tiver sucesso no Congresso, talvez em 2018 roletas entrem nesta ciranda do caixa dois.

É comum dizer-se que todo cuidado será pouco, que o MP e a Justiça precisarão estar atentos. Mas falta sustentação legal para uma repressão eficiente.

Ganha, então, relevância ainda maior o conjunto de dez propostas de combate à corrupção alinhadas pelo Ministério Público e que chegaram ao Congresso sustentadas em mais de dois milhões de assinaturas.

Entre as propostas, a criminalização do caixa dois, defendida pelo juiz Sérgio Moro na comissão especial que analisa o pacote. Os dois maiores escândalos da era lulopetista — mensalão e petrolão; este, destaque na história do país — justificam a conversão em leis das sugestões encaminhadas ao Congresso, com apoio popular, no modelo do projeto da Lei da Ficha Limpa.

Agora, com a volta das pessoas jurídicas para os subterrâneos da política, devido ao STF, mais ainda o poder público precisa estar em condições institucionais para punir os desvios e, assim, ajudar a criar uma cultura de seriedade no financiamento eleitoral. O que é verdade mesmo se as empresas continuassem a poder bancar candidatos e partidos.