terça-feira, maio 15, 2018

A mulher que matou o bandido - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Uma guerreira lava a alma das brasileiras oprimidas pelo crime
A cabo Kátia da Silva Sastre, da Polícia Militar de São Paulo, é uma heroína das mulheres brasileiras. No último sábado, em defesa da filha que tinha ido buscar na escola, de outras meninas que saíam com ela e das mães que as esperavam na calçada, matou com três tiros um bandido que apontava uma arma de fogo contra as crianças e mulheres. Foi uma cena que só se vê em série de TV americana, onde a polícia age sempre com heroísmo, competência, respeito à lei e boa pontaria. Kátia não errou nenhum dos três tiros que disparou do revólver que sacara da bolsa. Com o assaltante caído no chão, depois de atirar nela duas vezes, deu-lhe voz de prisão ─ e afastou com o pé, para fora do seu alcance, a arma que ele havia apontado para as meninas e suas mães. Em seguida, mantendo o criminoso imobilizado no chão, esperou pela chegada da polícia. Levado para o hospital, o sujeito morreu uma hora e tanto depois.

A cena, gravada em vídeo pelas câmeras de seguranças instaladas no lugar, está à disposição de todos, a qualquer momento, pelo Google ou o YouTube. Logo saiu da grande periferia de São Paulo e passou a correr o Brasil pela internet ─ é possível que tenha ido ainda além. Qual a surpresa? O ato da policial da PM paulista foi um desses casos claros ─ e raros ─ de vitória absoluta do bem sobre o mal. É o tipo do episódio pelo qual torcem nove entre dez brasileiros exaustos com a praga dos assaltos, com a crueldade demente dos bandidos ou com a humilhação de se verem toda hora obrigados a deitar no chão para tentarem sobreviver aos tiroteios nas “comunidades”. É o dia em que o monstro perde ─ dia de lavar a alma para os milhões de cidadãos decentes que sofrem a opressão diária dos criminosos e só têm guerreiras como a cabo Kátia para arriscar a vida em sua defesa. Para completar, o caso aconteceu justo na véspera do Dia das Mães. A imagem da mulher sem medo, defendendo de arma na mão as crianças e mães aterrorizadas sob a mira do bandido, ficará por longo tempo no pensamento de quem padece a angústia diária, sem descanso, de não saber se hoje os filhos vão voltar vivos da escola. Para todas essas mães, enquanto houver Kátias haverá alguma esperança.

Não é nenhuma surpresa, naturalmente, que nenhum de todos esses “movimentos femininos” que vivem de denunciar a “violência contra as mulheres” tenha dito uma única palavra em apoio a Kátia Sastre. Seu ato de heroísmo não existiu, simplesmente. Na verdade, a moça terá sorte se não acabar sendo denunciada, ou algo assim, por essas “lideranças” que estão todos os dias nas primeiras páginas e nos horários nobres. Ela não é negra, nem lésbica, nem favelada, nem líder comunitária, nem do PSOL-PCdoB-PT. É mãe de família, policial e vai buscar a filha na escola, como milhões de outras. Ou seja, é o tipo da pessoa detestada nesse ambiente ─ e amada pela massa dos cidadãos, o que só comprova mais uma vez o quanto os movimentos “populares”, na vida real, se afastam do povo. É o mesmo que acontece nos meios de comunicação, onde o bandido foi descrito como “suspeito” do assalto, embora tenha sido filmado, com o máximo de clareza, apontando o seu revólver para a cabeça de uma menina de seis ou sete anos de idade. Também foi chamado de “rapaz”. Assim: “O rapaz foi atingido com três tiros”. Rapaz? A preocupação central, como sempre acontece, é saber se a policial se excedeu ao atirar no criminoso que tinha atirado duas vezes nela, ou se a sua atitude não poderá incentivar a “letalidade” da polícia. Foram buscar a opinião de “criminalistas” para medir os prós e contras da questão ─ como se houvesse contras. É provável que passem a exigir, junto com as alas “militantes” do Ministério Público, uma apuração rigorosa do gesto da mãe que enfrentou o bandido. Cada vez mais, junto com os “movimentos” feministas e outros bichos parecidos, se descolam da realidade e se colocam como adversários do povo brasileiro.


Até quando? - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 15/05

Em tempos de revolução digital, é de surpreender que ainda dependamos de cartórios


Outro dia recebi uma ligação dizendo que o registro do meu imóvel estava vencido e que precisava de uma nova certidão emitida pelo cartório para evitar que meu pedido de remoção de uma árvore condenada fosse arquivado. Mais do que depressa, fui ao cartório e paguei as custas para a emissão da certidão – cujo prazo de validade é de 30 dias –, garantindo assim a autorização para retirar a árvore que ameaçava cair sobre a minha casa.

Fornecer essa informação à prefeitura me custou R$ 51, individualmente uma quantia irrisória. Mas significou também tempo, esforço e perda de produtividade, pois exigiu deslocamento e esperar numa fila para ter acesso a um pedaço de papel que ainda teve de ser entregue do outro lado da cidade. Além disso, meus R$ 51 ajudaram a engrossar uma receita que atingiu R$ 14,6 bilhões no ano de 2017 e que, além da parcela que entra como receita do cartório, alimenta um fundo do Tribunal de Justiça, outro do Ministério Público e em alguns Estados também ajuda os Tesouros estaduais a reforçar os caixas para custear despesas vinculadas ao sistema penitenciário.

Em tempos de revolução digital, não é difícil antever um futuro muito próximo em que a blockchain se torne a grande e única forma de conferir credibilidade às informações. É, portanto, de se surpreender que ainda dependamos tanto de instituições como os cartórios e que tenhamos de lançar mão de documentos físicos para garantir que as informações prestadas sejam verídicas. Ainda mais quando se trata de registros que deveriam estar unificados e acessíveis por órgãos públicos mediante uma simples autorização do cidadão. É como se manter na idade da pedra quando o mundo contemporâneo já se estabeleceu há muito e uma nova realidade digital já se impôs.

O Projeto de Lei 9.327/17, que cria a duplicata eletrônica, tenta trazer o avanço. Além do ganho generalizado de redução do custo do registro de garantias e do aumento da agilidade, o projeto traz um grande benefício às micro, pequenas e médias empresas que só têm no desconto de duplicatas o caminho para ampliar o seu pouco acesso a crédito. Ao tornar essas garantias mais seguras, o registro eletrônico reduz o custo de crédito não tanto para as grandes corporações, mas principalmente para um segmento que representa hoje 16 milhões de empresas, responde por 63% dos empregos com carteira assinada e 48% dos salários pagos no Brasil.

Conceitualmente, não diferimos muito do resto do mundo. Esse é um segmento que sofre os efeitos de balanços não confiáveis, da alta volatilidade e da pouca governança. A falta de acesso a dados sobre essas empresas gera incerteza quanto à qualidade do crédito e aumenta o prêmio de risco. Além disso, a falta de uma base de dados centralizada enfraquece a garantia. Com isso, a insegurança jurídica para cobrança e recuperação dos empréstimos é muito alta, o que se reflete em taxas de juros também mais altas.

Se essas garantias forem percebidas como de boa qualidade e críveis, ou seja, pouco sujeitas a fraudes, as evidências mostram que o mercado cresce e ajuda a alavancar empresas que, de outra forma, morrem sem acesso a financiamento para seus projetos. Isso reduz o diferencial de juros entre grandes e pequenas empresas. No Brasil, esse diferencial é hoje duas vezes maior do que na maioria dos países e é isso que o registro eletrônico das duplicatas quer combater.

Ao baratear o custo de registro e fortalecer as garantias, o registro eletrônico dá maior poder de barganha ao pequeno e médio empresário, ampliando a competição e diminuindo os juros do crédito. Todos ganham com isso, a não ser aqueles cujas receitas vêm do monopólio de atestar o que pode ser atestado de forma mais rápida, barata e transparente.

Ao tolerarmos que o atraso continue se sobrepondo ao avanço, estaremos também aceitando que empregos deixem de ser gerados, que boas empresas percam a chance de crescer e que pequenos empreendedores continuem presos aos juros altos. Até quando continuaremos presos ao passado, evitando que um futuro melhor nos garanta um país mais rico e próspero?

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

Razões para o abandono de imóveis - JOÃO LUIZ MAUAD

O GLOBO - 15/05

Ninguém é contra a conservação do patrimônio cultural e arquitetônico das cidades, mas é inegável que há excesso de tombamentos em Pindorama
O incêndio e posterior desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Centro de São Paulo, abriu um interessante debate sobre a quantidade absurda de imóveis abandonados e/ou degradados no Centro da capital paulista. Segundo a prefeitura, existem atualmente mais de 700 imóveis vazios naquela região.

Infelizmente, este é um problema que não está restrito a São Paulo. Quem anda pelo Centro do Rio percebe que, por aqui, a coisa não é muito diferente. São centenas de prédios antigos abandonados e/ou em processo de deterioração, muitos dos quais com risco de desabamento. Não é raro encontrarmos também imóveis vítimas de incêndio, dos quais sobraram apenas a fachada (tombada) e um terreno vazio atrás.

Uma reportagem recente do site de notícias G1 tentou responder à pergunta que está na cabeça de muita gente: por que há tantos prédios abandonados por aí? Não é uma pergunta de fácil resposta, principalmente porque existem diversas causas (não excludentes) concorrendo entre si.

A explicação mais comum fala de falta de planejamento urbano e fiscalização por parte do poder público. Estas podem ser até causas menores, mas definitivamente não explicam por que tantos proprietários — agindo de forma absolutamente contrária à própria natureza humana — simplesmente abandonam seus bens.

Evidentemente, existem outras razões. Eu destacaria pelo menos três, porém lembrando que esta não é uma lista exaustiva:

1) zelo exagerado por tudo que é antigo;

2) excesso de burocracia e regulamentações;

3) absurda lentidão judiciária.

Analisemos uma a uma:

Não seria nenhum exagero dizer que grande parte dos imóveis existentes no Centro do Rio é tombada ou situada em áreas de preservação (corredores culturais e outras). Ninguém é contra a conservação do patrimônio cultural e arquitetônico das cidades, mas é inegável que há excesso de tombamentos em Pindorama. Para início de conversa, quaisquer das esferas de governo — federal, estadual e municipal — estão aptas a decretar tombamento e/ou preservação. Não por acaso, há casos de imóveis tombados por mais de uma esfera, e cuja preservação deve obedecer aos detalhados ditames de ambas. Sem falar da confusão que alguns fazem entre o antigo e o belo.

Junte-se a essa volúpia preservacionista quase nenhuma preocupação com a compensação dos proprietários pela perda de valor de mercado dos seus imóveis quando objetos de tombamento ou preservação — no Rio, há previsão de isenção do IPTU, mas sua concessão está vinculada às sempre necessárias obras de conservação e adequação ao projeto original, as quais não costumam sair nada baratas.

Além de caras, estas obras estão sujeitas a tanta burocracia, exigências arquitetônicas e regulamentações que, não raro, acabam inviabilizadas — digo isso com a experiência de alguém que tenta, há dez anos, regularizar a situação (tanto arquitetônica quanto fiscal) de um sobrado bastante bem preservado na região da Candelária. Em resumo, o detalhismo dos ciosos agentes públicos, no afã de preservar exatamente e nos seus mínimos detalhes a arquitetura original, acaba muitas vezes inviabilizando a recuperação dos prédios, condenando-os à completa degradação.

Finalmente, porém não menos importante, vem a extrema lentidão do nosso Judiciário. Uma parte dos imóveis abandonados é refém de intrincados processos de falência empresarial ou sucessão familiar, os quais costumam arrastar-se por décadas. O resultado é que esses imóveis acabam numa espécie de limbo jurídico, sujeitando-os a toda sorte de invasões e ocupações irregulares.

João Luiz Mauad é administrador e diretor do Instituto Liberal

A cabo Sastre educa - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 15/05

O que o bandido faria quando, revistando aqueles que emparedava, encontrasse a pistola da policial e, de repente, até mesmo seu distintivo? Não seja cínico na resposta

Não integra a equação reativa de uma policial treinada — ademais mãe — se o criminoso, que aponta arma de fogo contra uma dezena de pessoas (inclusive crianças, entre as quais sua filha), é negro, amarelo, branco, cinza ou verde. Ponto final. Antepor filtros político-engajados a um cálculo de defesa imediato é doença; uma das patologias de nosso tempo, essa em decorrência da qual, em espetacular inversão de valores, uma policial que age em perfeito, estrito, cumprimento de seu dever profissional pode ser tratada, achincalhada, como assassina, promotora de uma tal faxina social contra pobres. Oi?

É preciso lembrar, em nome da distribuição de responsabilidades, que armas de fogo não disparam sozinhas — e que muitas vezes, oh!, são disparadas para o melhor. Contra a mentira permanente, é necessário escrever que: na mão de policiais, a grande maioria dos quais agentes públicos honestos, os tiros geralmente são para o melhor, contra criminosos armados e em defesa da sociedade mais desguarnecida, sobretudo daquela sua parcela pobre, oprimida pelo tráfico de drogas e por toda sorte de atividade criminosa relativizada, quando não badalada, por intelectuais da maconha e do pó cujo único chão pisado é o dos automóveis blindados.

É preciso dizer-lhes, aos oportunistas da penúria, que existe um mundo que não o do faz de conta, um em que as coisas ocorrem com violência e de repente, e onde as pessoas, aquelas desprovidas de seguranças particulares, vivem; um em que às vezes é preciso atirar, ou atirar primeiro — um em que as pessoas não gostam de armas tanto quanto sabem que, em situações extremas (às quais se habituaram como normalidade), só uma pistola, na mão precisa e preciosa de uma policial como Katia da Silva Sastre, representa alguma chance de integridade, talvez de sobrevivência.

Problematizar o fato de um sujeito — ademais policial — reagir a ataque de outro é expressão do longo processo de apagamento da consciência individual promovido, com sucesso, por grupos de pressão influentes dedicados à engenharia social e, pois, a políticas de segurança pública que exploram a miséria e criminalizam a pobreza; essas patotas pensadoras, mui infiltradas no jornalismo, segundo as quais o bandido é um homem bom, de natureza virtuosa, a quem, no entanto, tendo sido negada a cidadania, só restaria o crime.

Se há quem goste de ver um indivíduo baleado: é exceção desprezível. Alguém que se alegre com a morte alheia: desprezível exceção. Ninguém fica feliz em assistir ao vídeo em que a policial alveja o bandido. Não é essa a sensação. As imagens não causam prazer, bem ao contrário; mas, desmontando a mistificação que criminalizou a polícia como instituição, a ninguém pode ser interditada a percepção de que segurança pública também se faz no mundo real, conforme a ação da cabo Sastre.

Sim, o bandido morreu. A humanidade o preferia vivo, recuperando-se no hospital, preso em seguida. Pergunte-se, porém, sobre o ato deflagrador da reação: não carregava ostensivamente um revólver, que apontava contra adultos e crianças, colocando-se ele próprio em posição de risco, quando baleado? Que espécie de gente perverte a realidade a ponto de criminalizar a ação impecável da policial que reagiu ao ataque e interrompeu a investida do criminoso, sem quaisquer outras vítimas? Que atitude esses engenheiros sociais esperavam da cabo Sastre? Que, no calor da hora, em vez de no tórax, mirasse nos braços ou nas pernas, reduzindo a superfície para acerto tanto quanto aumentando a possibilidade de troca de tiros e — aí, sim — de uma tragédia? Ou, claro, que deixasse o bandido agir, para que, armado, fizesse, na mais generosa projeção, sua expropriação? Pensemos, assim, na melhor hipótese de desfecho — a mais provável: que fosse apenas um assaltante, com a única disposição de roubar. O que ele faria quando, revistando aqueles que emparedava, encontrasse a pistola da policial e, de repente, até mesmo seu distintivo? Não seja cínico na resposta.

Ainda que à paisana, Katia era ali uma militar, condição que (como a de mãe) se impõe 24 horas por dia, em pleno cumprimento de sua função pública: não a de matar bandidos, efeito colateral do confronto; mas a de proteger a sociedade contra bandidos. Não é uma heroína, mas alguém muito mais importante, curto-circuito na mente revolucionária: uma mulher, policial, profissional exemplar, que honra seu dever — que tem senso de dever — numa sociedade em que as pessoas são viciadas em direitos e propensas ao vitimismo. A cabo Sastre educa.

Carlos Andreazza é editor de livros

Argentina: sem efeito Orloff no Brasil - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA

Inflação baixa, reservas internacionais altas e déficit externo confortável indicam que são baixos os riscos de contágio da crise argentina por aqui


Até recentemente, as crises na Argentina repercutiam no Brasil. Os mercados financeiros chamam isso de contágio, mas se falava em “efeito Orloff””. Um comercial de TV de uma vodca exibia um homem sóbrio que dizia: “eu sou você amanhã” (sem ressaca no dia seguinte), mas uma Argentina bêbada pressagiava um Brasil trôpego depois.

Naqueles tempos, a Argentina e o Brasil padeciam dos mesmos problemas: inflação alta, déficit público elevado, desequilíbrio no balanço de pagamentos e escassas reservas internacionais. Logo, uma crise de confiança se reproduzia imediatamente por aqui.

A situação mudou. A Argentina voltou a ter os mesmos problemas. Maurício Macri herdou uma economia em pior estado do que a recebida por Michel Temer. A inflação passa de 25%; o déficit em conta-corrente do balanço de pagamentos é de 5% do PIB. No Brasil a inflação é baixa: menos de 3% em doze meses. O déficit em conta-corrente é 0,5% do PIB. As reservas internacionais estão em US$ 382 bilhões. Não há contágio.

A Argentina precisava de uma terapia de choque, mas Macri preferiu o gradualismo. A estratégia deu certo enquanto a taxa anual de juros americana era baixa. Agora, os sinais são de alta: já atingiu 3%, depois de anos abaixo de 1%. As aplicações em títulos públicos americanos, os mais seguros do mundo, ficam mais atrativas. Nesse contexto, presta-se mais atenção aos fundamentos dos mercados emergentes.

Foi o que aconteceu com a Argentina. Percebeu-se que havia riscos de descontrole inflacionário e de uma insolvência externa, que pioraram com a seca que reduziu substancialmente as exportações de soja.

Como sempre acontece nesses casos, os mercados azedaram subitamente. Saídas de capital agravaram os riscos externos, que provocaram novas saídas de capital e assim por diante. A taxa de câmbio subiu muito, aumentando os riscos inflacionários. Para enfrentar a situação, o Banco Central aumentou a taxa básica anual de juros para mais de 30%.

A Argentina gastou US$ 5 bilhões de reservas, mas adiantou pouco. Os investidores sabem que o país não tem muito poder de fogo. As reservas baixaram para as proximidades dos US$ 30 bilhões. A saída foi recorrer ao FMI, o qual foi criado exatamente para socorrer países a braços com crises cambiais.

O apoio do FMI pode estancar a crise, mas exigirá um duro programa para atacar os desequilíbrios da economia. Como nossos vizinhos odeiam o FMI mais do que os brasileiros, Macri pode perder popularidade, inclusive pelos efeitos da austeridade fiscal e dos juros altos na atividade econômica e no emprego.

Macri corre o risco de não se reeleger em 2019. Antes de curar seus problemas, os argentinos podem ter que enfrentar as incertezas de uma eleição presidencial e os riscos de retorno de Cristina Kirchner ao poder. Nesse campo, o “efeito Orloff” se inverte. Torçamos para não haver uma ressaca nem lá nem aqui.

No país dos falsos dilemas - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 15/05

Está invertido o poder de mando na pseudodemocracia brasileira


A questão do foro especial é mais um dos falsos dilemas brasileiros. A discussão ingressa agora no tema “tira o foro de todo mundo ou não” e engastalha de saída na momentosa questão do “o que, tecnicamente, define uma súmula vinculante” que seria uma das maneiras de estender a derrubada do privilégio para o Judiciário e demais caronas. Esperar que o Judiciário extinga um privilégio dele próprio é arriscar deixar a coisa rolar por mais 100 anos nesse vai não vai. A “via rápida” seria o Legislativo fazer uma lei que anule as diversas leis e quase leis que estenderam indevidamente a regalia. Como, porém, tanta gente lá tem o rabo preso nas garras do Judiciário a coisa não é tão simples. E ainda que passasse só como vingança é de esperar, a julgar pela “jurisprudência” mais recente, que o Judiciário desfaça o que o Legislativo fizer em idas e vindas sucessivas e o País continue parado esperando até que estejamos todos mortos...

Outro ponto a considerar é o vaticínio de Gilmar Mendes de que vamos nos arrepender de termos suspenso o foro especial amplo, geral e irrestrito ao menos para políticos. Diz ele, “conhecedor da nossa Justiça criminal que é”, que a impunidade vai ficar mais garantida pelo caminho certo do que estava pelo caminho errado. E o pior é que todo mundo sabe que ele tem razão.

Essa seria a “deixa” para levar a discussão para o que interessa, mas o Brasil que precisa disso ficou mudo depois que as escolas de jornalismo conseguiram estabelecer como dogma que o bom jornalista só “ouve fontes” e o exercício do raciocínio próprio para desafiá-las e inquiri-las, ainda que seja apenas confrontando-as com os fatos que exponham suas mentiras, seria uma violação do princípio da separação entre opinião e reportagem. O resultado é que “cobrir política” de forma “isenta” passou a significar amplificar o que dizem as fontes oficiais desde que justapondo o dito pela “situação” ao dito pela “oposição” lá do Brasil que manda, deixando o Brasil mandado absolutamente sem voz. É isso que explica por que denunciar e exigir o fim dos privilégios que “situação” e “oposição” gostosamente compartilham enquanto se alternam no poder tornou-se oficialmente “impopular” ou no mínimo “controvertido” em todos os jornais e televisões do País, apesar de estarmos falando da causa primeira e última da sangria desatada de todos os bolsos miseráveis da Nação estrebuchante para rechear com mais largueza, haja o que houver, os da ínfima minoria não meritocrática dentro da minoria dos mais ricos.

O ponto que interessa ao Brasil mandado é que o foro especial não é “causa” de nada, como dizem por aí, é apenas mais um efeito, ainda que este com poder multiplicador, do defeito essencial que responde por todas as nossas desgraças, que é estar invertido o poder de mando na relação entre representantes e representados da pseudodemocracia brasileira. Se tivéssemos, como tem toda democracia de verdade, o direito de demitir, por iniciativa popular e a qualquer momento, políticos e funcionários indignos (recall) e recusar leis pervertidas vindas dos Legislativos (referendo), não só o foro especial jamais teria extrapolado a função de proteger a palavra e a ação de quem nós elegemos para falar e agir por nós para a qual foi criado, como também tais palavras e ações jamais se teriam desviado para a criação de uma clientela militante para servir-se do serviço público com o propósito exclusivo de reelegê-los em troca do compartilhamento de privilégios indecentes. Se fizéssemos, como faz toda democracia de verdade, eleições periódicas de retenção (ou não) dos juízes encarregados de nos entregar justiça, nós jamais teríamos de temer que levar os crimes comuns dos servidores do povo para a Justiça comum pudesse resultar em mais impunidade.

O problema do Brasil sempre foi e continua sendo um só, de uma obviedade mais ululante a cada dia que persiste no seu anacronismo medieval. Pois há 1/4 de milênio, já, que vem sendo confirmado e reconfirmado pelo argumento indiscutível do resultado que colhe toda e qualquer sociedade que se põe a salvo disso, que é uma lei da natureza que sempre que se concentra o poder está-se fornecendo um endereço ao bandido que dorme dentro de cada ser humano: “Trabalhar pra quê? Suborne aqui e tenha o seu problema resolvido”. Por isso, em todo o mundo que funciona, a última palavra sobre cada medida que possa vir a afetar a vida da coletividade passou a ser da própria coletividade, convertida para efeitos práticos num eleitorado com poderes absolutos, mas distritalmente pulverizados, a única maneira de não fornecer endereços a bandidos nem fazer da emenda um desastre pior que o soneto deixando o país sujeito aos golpes e passa-moleques de ilegitimidade que vêm junto com outros sistemas de representação pouco transparentes.

As eleições distritais puras deixam absolutamente claro quem representa quem na relação país real x país oficial. Desconcentram radicalmente o poder e assentam o país sobre uma base ampla e sólida de legitimidade. E, ao mesmo tempo, garantem o controle fino que se requer dos representantes encarregados de operar a reforma permanente das instituições que o mundo implacavelmente dinâmico e competitivo de hoje exige, sem o corolário da imprevisibilidade da arbitrariedade do monarca da hora que impede o desenvolvimento baseado na inovação.

Não há como extinguir efeitos sem remover suas causas. O Brasil tem se alternado em variações de fórmulas autoritárias em que “iluminados” tratam de substituir-se ao povo para decidir o que é melhor para o povo e o resultado, salvo alguns soluços de marcha adiante, é uma sucessão de desastres. Mais radicais quanto mais radical for a dose de autoritarismo, mas desastres sempre. A escolha real que há é entre aderirmos, finalmente, ao sistema de governo do povo, pelo povo e para o povo, ou nos conformarmos em permanecer para sempre no século 18 pagando as carências e as doenças do século 18 como estamos hoje.

*JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

E o atraso vai vencendo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 15/05

É surpreendente a dificuldade encontrada pelo governo para pôr em andamento o plano de privatizar a Eletrobrás

A situação da Eletrobrás é insustentável. Em vez de induzir o crescimento, ela está parada na contramão, acumulando resultados deficitários. Seu controlador, o Estado, não tem condições de realizar os investimentos necessários. A solução para o problema é, todos sabem, a sua privatização. Além de dar remédio às deficiências da estatal, a medida tem potencial de produzir efeitos muito benéficos para a economia do País, em tempos de difícil retomada.

Não deixa de ser surpreendente, portanto, a dificuldade encontrada para pôr em andamento o plano do governo federal de privatizar a Eletrobrás. Todos os passos encontram grandes resistências, em boa medida oriundas da própria base aliada do governo.

Em agosto de 2017, o governo de Michel Temer anunciou sua intenção de privatizar a Eletrobrás. Como a Lei 10.848/2004 havia excluído a estatal do Programa Nacional de Desestatização, o Palácio do Planalto expediu, no mês de dezembro, a Medida Provisória (MP) 814/2017, que retirou essa proibição. Tal medida encontra-se ainda em tramitação no Congresso, que parece não ter entendido a urgência do assunto.

Além disso, em janeiro de 2018, o Executivo apresentou ao Legislativo um projeto de lei definindo o modelo a ser adotado na privatização da Eletrobrás. Segundo a proposta do Palácio do Planalto, a desestatização deverá ser feita por aumento do capital social mediante subscrição pública de ações ordinárias. Assim, a participação da União seria diluída, deixando de ser majoritária. Também seria criada uma ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União (golden share), de modo a assegurar poder de veto sobre algumas decisões de especial interesse público. No momento, o Projeto de Lei (PL) 9.463/2018 aguarda o parecer de uma comissão especial, sem previsão de data para ir a votação pela Câmara.

Como forma de destravar este complicado processo, o governo federal anunciou que incluiria, por decreto, a estatal no Programa Nacional de Desestatização. De fato, na quinta-feira passada, foi expedido o Decreto 9.351/2018 com o teor anunciado. No entanto, surgiu uma pequena novidade. Segundo o ato, o início dos “procedimentos necessários à contratação dos estudos pertinentes” à privatização da estatal ficará suspenso até que o Congresso aprove o PL 9.463/2018. Assim, mais do que agilizar a desestatização, o decreto presidencial oficializou a incerteza. Fez depender do Congresso o início dos trabalhos para a privatização.

Essa previsão parece ter sido resultado de uma exigência da Câmara dos Deputados, que almeja precedência no assunto. Tivesse o Congresso uma maioria minimamente sintonizada com o interesse nacional, o texto do decreto não causaria maiores transtornos, já que, diante das evidentes razões para privatizar a Eletrobrás, certamente o PL 9.463/2018 seria rapidamente aprovado.

Como se sabe, a atual composição do Congresso não manifesta especial interesse na privatização da Eletrobrás. A cada dia, constata-se uma nova resistência por parte de alguns políticos, desejosos de continuarem contando com a estatal a serviço de seus interesses. Não querem perder o butim – e por isso é tão preocupante que o Decreto 9.351/2018 determine esperar a aprovação do Congresso. É sinal de que o pessoal contrário à privatização está conseguindo incluir todos os obstáculos necessários para que a Eletrobrás continue exatamente como está.

Nessa demora, quem perde, uma vez mais, é a população. O contribuinte vê-se obrigado a bancar uma estatal deficitária. A infraestrutura do País fica cada vez mais defasada. O mercado de energia torna-se menos competitivo e, portanto, a conta de luz para as famílias e as empresas fica mais cara. Tem-se, assim, a vitória do atraso. O resultado podia ser diferente, mas para isso o interesse nacional tem de ser defendido com mais empenho.

Dois anos de avanços - MICHEL TEMER

FOLHA DE SP - 15/05

O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano; continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança



Peço alguns instantes de sua atenção para recordar um número de janeiro de 2016. Na Bolsa de Valores, a Petrobras valia R$ 67 bilhões. Pouco mais de dois anos se passaram. Nesta última semana, a Petrobras reconquistou o título de empresa mais valiosa do Brasil. Ultrapassou os R$ 350 bilhões.

Em 24 meses, recuperamos a Petrobras, o Banco do Brasil, os Correios, a Caixa Econômica Federal; elevamos o PIB a patamar positivo, melhoramos a gestão pública, ajudamos estados e municípios; reformamos leis e instituições. Trabalhamos sem parar.

Recuperamos o Brasil. No aniversário de dois anos de meu governo, aqueles que analisarem com isenção vão constatar: cumprimos o que escrevemos no documento "Ponte Para o Futuro". Transformamos a mais grave recessão da nossa história em crescimento consistente. Trocamos as famosas "pedaladas" por responsabilidade fiscal.

Integramos o Brasil ao mundo, atraindo investimentos e recuperando a credibilidade. Os programas sociais, que estavam ameaçados, têm hoje os melhores indicadores da história.

O resultado está aí: o que antes era desalento agora é trabalho. Quando assumimos, havia uma dilapidação de 150 mil empregos de carteira assinada por mês. Neste ano, registramos um saldo de 204 mil vagas com carteira assinada. E, nos últimos 12 meses, foram criados mais de 1,5 milhão de postos de trabalho.

O Bolsa Família está mais amplo —atende hoje 160 mil famílias a mais do que as 14 milhões do seu recorde anterior, em 2014. Está mais acessível para quem precisa porque zeramos a fila, que chegou a ter quase 2 milhões de famílias em maio de 2015.

Melhoramos a gestão do programa, e o benefício alcançou seu maior poder de compra porque aumentamos seu valor em mais de 100% acima da inflação do período. Financiamos no tempo certo as duas maiores safras da história, que baratearam os alimentos, favorecendo os mais necessitados.

Asseguramos os contratos do Minha Casa, Minha Vida, pagamos os atrasados que encontramos no começo de governo, em maio de 2016, e garantimos a expansão do programa, entregando uma média de 38 mil residências por mês. Fizemos mais e melhor.

Implantamos o Criança Feliz para proteger e acolher a gestante e a primeira infância. Criamos o programa "Progredir", que, pela primeira vez, capacita e emprega jovens de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família.
Em três meses, quase 70 mil deles conseguiram seu lugar no mercado de trabalho. O que deve ser permanente é a formação para melhorar de vida. Movidos por esse espírito, revolucionamos a educação. Reforma do ensino médio, novas 500 mil vagas em tempo integral e capacitação dos professores —o Brasil está apenas começando a colher os avanços da mudança.

Os resultados são incontestáveis em todas as áreas: a menor inflação da história do Plano Real, as menores taxas de juros de nossa história, os dois maiores superávits comerciais, duas safras agrícolas recordes, o maior número de títulos de propriedade (mais de 200 mil), agrária ou urbana, já distribuídos.

A indústria automobilística reagiu, com mais 40% na produção de veículos leves em abril, no comparativo com o mesmo mês de 2017. A produção aquecida e as demandas do comércio (mais 4% na construção civil em 2018) elevaram em 77% as vendas de caminhões em abril deste ano, na comparação com o ano passado. Fizemos nossa parte para essa retomada com a liberação das contas inativas do FGTS, que colocou R$ 44 bilhões na economia e beneficiou 25,9 milhões de trabalhadores.

Desde a primeira hora, saí em busca de mais investimentos, de mais comércio e de mais empregos aos brasileiros. Estive na Ásia, Europa e em nossos vizinhos da América. Trouxemos bilhões em negócios. Saímos do oitavo para o segundo lugar como melhor destino para investimentos em todo o mundo.

A maior quantidade de unidades de conservação por km² de todos os tempos foi criada em minha gestão, superando todos os governos anteriores somados. A maior reserva marinha do mundo foi criada no Brasil por ato da minha Presidência. Reduzimos o desmatamento da Amazônia depois de dois anos de crescimento contínuo na devastação.

Tivemos a coragem de, pela primeira vez, encarar para valer o tema da segurança pública, demanda social prioritária, que a Constituição colocou a cargo dos estados. Criei o Ministério da Segurança Pública e decretei a intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro.

Os resultados são animadores: o mês de abril já registra considerável redução de crimes violentos e roubos sobre o mês anterior. Na região de Bangu, Gericinó, Padre Miguel, Senador Camará e Vila Kennedy, onde a intervenção concentrou algumas ações, a letalidade violenta registrou o menor número de vítimas para o mês de março desde o início da série histórica. São vidas que foram preservadas. Cada uma delas, uma vitória sobre as milícias e o crime organizado.

Nada disso surgiu por geração espontânea, como alguns querem acreditar ao tentar desvincular nosso trabalho de todos os êxitos econômicos, sociais, ambientais e de segurança. Tamanhos resultados premiam o esforço de uma equipe de alta competência e dedicação ao interesse público. Para alcançá-los, foi preciso dialogar com o Congresso e construir um conjunto de normas que sepultaram o populismo do resultado fácil.

A virada na economia, assim como no resultado das estatais, é fruto dessa fórmula. Trilhamos um caminho de coragem, de mudanças. Tem sido duro, difícil, a ponto de nos custar popularidade, num país ansioso por soluções fáceis. Os resultados estão aí, os números falam mais alto. Fizemos em dois anos o que outros não fizeram em 20 anos.

O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano. Continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança, crise, dívidas, inflação, recessão, desemprego, pessimismo e desesperança.

Nosso projeto acelera o desenvolvimento, amplia investimentos, cria empregos, aumenta salários, qualifica nossos jovens, oferece mais segurança. Ao cumprir o que escrevemos, o Brasil voltou a ter um futuro de prosperidade.

Michel Temer

Presidente da República; ex-vice-presidente (2011-2016, governo Dilma) e ex-presidente da Câmara (1997-2001 e 2009-2010)

A guerra do sexo - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 15/05

Como esquecer as verdadeiras 'minorias sexuais' que sofrem na solidão dos lençóis?



Só agora conheci o movimento "incel". A culpa é do psicopata canadense que matou 10 pessoas e feriu 15 em ataque terrorista.

O psicopata era membro do clube. E o clube, como o próprio nome indica ("incel", ou seja, "involuntary celibates"), é constituído por legiões de infelizes que, incapazes de arranjarem mulheres, desatam a matar as mulheres dos outros (ou, então, os homens que conseguem conquistá-las).

Estranho mundo: antigamente, quem não conseguia mulheres, militava na extrema-esquerda ou na extrema-direita. Hoje, prefere dedicar-se ao terrorismo, seguindo o exemplo dos jihadistas tradicionais que descarregam o ressentimento e a abstinência na humanidade circundante. Que dizer?

Peço desculpa aos psiquiatras, mas a questão também é política. Sobretudo quando "acadêmicos" vários levam a sério o sofrimento dos "incels".

Escreve Ross Douthat, no New York Times, que o debate rola com vigor no mundo anglo-saxônico (curioso: houve tempos em que a imbecilidade teórica era um exclusivo dos franceses; não mais). E a pergunta que domina os melhores espíritos é esta: se a função de uma sociedade civilizada é distribuir de forma justa a propriedade e o dinheiro, por que não o sexo?

Ou, para usar uma linguagem mais polida, se a justiça social implica que os "bens primários" sejam alocados de forma equitativa, não será o prazer sexual um desses bens? Como defender, com cara séria, que o acesso à alimentação e à habitação são necessidades básicas —mas não o sexo?

O caso se adensa quando falamos das pessoas mais afetadas pela ausência de trepidação. Obesos, deficientes, feios. Toda gente fala em nome das minorias. Mas como esquecer as verdadeiras "minorias sexuais" que sofrem na solidão dos lençóis?

A preocupação não é nova. É velha. São incontáveis os tratados utópicos que, nas suas propostas, contemplam igualmente a satisfação carnal dos seus habitantes. Mas pergunto, de espírito aberto, como instituir uma política sexual "inclusiva" no mundo real?

Primeiro, seria necessário estabelecer quem poderia aceder a essa Bolsa Folia (nome hipotético). Ser feio, só por si, nada significa. Será preciso lembrar que Serge Gainsbourg namorou, por ordem alfabética, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, France Gall, Jane Birkin ou Vanessa Paradis? Desperdiçar "recursos" com um Gainsbourg seria o mesmo que dar o Bolsa Família a Jorge Paulo Lemann.

Seria mais útil, e mais decente, medir a atividade neuronal do candidato quando confrontado com uma foto de corpo inteiro de Gisele Bündchen ou, sei lá, de um João Pereira Coutinho. A massa cinzenta nunca mente.

E os "recursos" propriamente ditos para saciar os famintos?

Sei: a resposta óbvia seria recorrer às profissionais do ofício. Mas a prostituição sempre me pareceu uma degradação das mulheres (e dos homens) que nenhuma sociedade igualitária pode tolerar.

Os robôs sexuais vão pelo mesmo caminho: não são a mesma coisa (dizem, dizem) e, como se viu em Paris neste ano, algumas feministas não toleram a existência de prostíbulos onde os adultos brincam com bonecas e até abusam delas.

Além disso, oferecer simulacros a "celibatários involuntários" seria uma forma trágica de criar novas desigualdades: corpos reais para os privilegiados, robôs sexuais para os excluídos? Pior a emenda que o soneto.

Se todos nós concordamos que a) o sexo é um bem primário e b) todas as pessoas devem ter igual acesso a esses bens, o melhor é não inventar. E seguir um modelo próximo da cobrança de impostos: não existe redistribuição da riqueza pelos mais necessitados sem privar os indivíduos e as famílias de uma parte da sua renda.

Pois bem: se as pessoas já pagam impostos (em dinheiro), talvez o caminho para diminuir a angústia dos "celibatários involuntários" seja pagar outro tipo de imposto (em gêneros). Estou certo que os igualitaristas radicais seriam os primeiros a oferecer os seus serviços.

E para os céticos que tentassem resistir, aconselharia uma primeira abordagem pedagógica (antes da cadeia). Pagamos impostos, não apenas por solidariedade —mas porque esperamos do Estado certas funções sociais de que podemos precisar um dia.

O mesmo vale para o sexo, camaradas: nesta vida, só podemos receber o que estamos dispostos a dar.

João Pereira Coutinho

É escritor português e doutor em ciência política.

Lobby do carimbo - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 15/05

Cartórios pressionam contra projetos que buscam a melhora do ambiente de negócios


Há muito se cunhou a expressão “capitalismo cartorial” para caracterizar vícios dos arranjos econômicos do Brasil —em particular, as prebendas do Estado que permitem a grupos influentes obter ganhos vultosos sem preocupações com a competição no mercado.

Os cartórios de fato ilustram à perfeição tais práticas, operando à sombra do poder público e do incomum cipoal burocrático do país.

Até a Constituição de 1988, seus titulares eram indicados por gestão política; depois veio a exigência de concurso —e resta considerável pressão para que se efetivem os apadrinhados remanescentes. Ainda hoje o posto é vitalício.

Alguns indicadores ajudam a dimensionar as recompensas proporcionadas por essas sinecuras. Em 2017, os quase 12 mil tabelionatos nacionais contabilizaram faturamento de R$ 14,65 bilhões, cifra que permanece estável desde 2015.

Dados das declarações do Imposto de Renda das pessoas físicas apontam o comando de cartórios na liderança das ocupações mais bem remuneradas, em média.

Dificilmente um setor com tais benesses se bateria por propostas modernizadoras. Não surpreende, pois, que tenha feito lobby contra o cadastro positivo de devedores e a duplicata eletrônica, dois projetos que buscam melhorar o ambiente de negócios do país.

No primeiro caso, propõe-se a inclusão automática de consumidores em um banco de dados de informações financeiras, de modo que bancos e outras instituições possam identificar os melhores clientes e competir por eles.

No segundo, pretende-se instituir um registro digital obrigatório de títulos negociados entre empresas.
Ambos representam, em alguma medida, ameaça à renda dos cartórios —seja por reduzir a inadimplência e o número de papéis em protesto, seja por eliminar procedimentos tornados arcaicos pelo avanço da eletrônica.

Também em comum, os textos avançam aos trancos num Congresso altamente permeável aos interesses de minorias bem remuneradas e organizadas. Daí se tem uma ideia de como será árduo levar adiante uma agenda de eliminação de privilégios, redução da desigualdade e abertura econômica.