sábado, março 28, 2020

Envelheça longe daqui - MARCELLA FRANCO

FOLHA DE SP - 28/03


Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Arganaz e a protagonista estão sentados lado a lado na plateia de um tribunal. “Gostaria que você não me apertasse tanto, mal posso respirar”, reclama o mamífero, ao que Alice docilmente responde que não pode evitar. “Estou crescendo”, explica.

Arganaz avisa a amiga: “Você não tem o direito de crescer aqui”. “Não diga tolice”, repreende a menina. “Não sabe que também está crescendo?”. Indignado, ele responde: “É, mas cresço num ritmo razoável, não dessa maneira absurda”.

A atual epidemia de coronavírus no mundo é nossa Alice. Por causa de sua presença e imponência, somos obrigados a lembrar que, queiramos ou não, temos todos o mesmo destino: crescer e envelhecer. E, a depender da etapa em que estamos neste caminho, é possível que a gente se identifique mais ou menos com as dores previstas nele.

Há quem até entenda que a velhice lhe aguarda, mas imagina que seja algo distante. Outros, mais conscientes, percebem desde muito cedo que, quando menos se espera, a terceira idade bate à porta, impiedosa e democrática. Mas, à parte a equipe em que se joga, de maior ou menor negação da realidade, somos unânimes no pânico e no desgosto com o desfecho da trama.

De todo modo, estarmos sob a ameaça de uma doença que mata muito mais idosos do que crianças e adultos expôs o que de pior temos como pessoas. Somos, cada vez mais, uma sociedade obcecada com a juventude, que idolatra conceitos como a beleza, a perfeição e o vigor. Rejeitamos tudo que se opõe a eles.

E, diante de um vírus tão seletivo ao ceifar vidas, também perderam, alguns de nós, o pudor de admitir que, se pudessem, também fariam como ele: ofereceriam os velhos ao sacrifício. Respiram, aliviados, com as baixas taxas de mortalidade daqueles abaixo dos 50, e propõem sugestões esdrúxulas de funcionamento do mundo, travestindo riscos de cuidados.

Em entrevista ao caderno de saúde deste jornal, a antropóloga e também colunista da Folha Mirian Goldenberg explica que, em suas pesquisas com nonagenários, escuta frequentemente a queixa de que, se antes da pandemia eles já se sentiam descartáveis, agora a percepção é de uma morte simbólica. Até porque, muitos deles têm plena consciência do desprezo evidenciado pela doença.

Ele está lá, sublinhado na fala de empresários gananciosos, eles próprios à imagem e semelhança dos “velhinhos” a quem ofendem ao sugerir que, ah vá, tudo bem que morram se o país e os jovens não pararem. Passassem, como Alice, através do espelho, veriam do outro lado a aparência com a qual tanto se enojam, e, mais que as rugas evidentes, o ridículo de quem tenta a qualquer custo camuflar o que todo mundo vê.

Está, sobretudo, emoldurado pela boca infecta daquele que, em vez de pouco ou nada fazer, deveria desempenhar o papel de líder maior de uma nação que, até 2060, estima ter 32% de sua população na faixa acima dos 60 anos – a mesma que ele, sem qualquer honra ou histórico notável, já ocupa.

É um “Cortem-lhe a cabeça” que se ouve quando a decisão superior de um governo, impulsionada pela pressão dos empresários que se acham muito jovens, ordena que se encerre a quarentena. Isolamento, este, que tem por objetivo principal resguardar e tratar de maneira digna os futuros doentes (doentes velhos, é claro, são sempre eles que atrapalham).

Na trama de Lewis Carroll, é justamente mirando o Arganaz que a Rainha de Copas aplica seu bordão pela última vez, antes que o livro termine. Aquele que reclamava do curso natural da vida, que negava à protagonista o direito de cumprir com seu ciclo humano, acaba na fila real para ter a cabeça cortada.

Importante lembrar que o Arganaz é o menor personagem de “Alice” – em tamanho, e em relevância. Porque é assim que roedores preguiçosos tendem a entrar para a história.

O bolsonarismo, o presidente e o vírus - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

ESTADÃO - 28/03

O importante é defender as instituições, apoiar o sistema de saúde, respaldar Doria, Caiado...

Dias de pandemia pedem solidariedade, clareza, entendimento. Alimentar o confronto, a disputa, a politização é contribuir para a disseminação do mal. Exigem-se ações coordenadas, sintonia, orientação. Nenhum cidadão pode deixar de contribuir. Teremos de reaprender a viver e quanto antes desarmarmos os espíritos, melhor.

Jair Bolsonaro permanece alheio aos sinais do tempo. É assustador. Seu último discurso à Nação (24/3) foi uma provocação recheada de platitudes, mentiras e agressões. Nenhuma grandeza, nenhuma generosidade, a mesma falação colérica de sempre. Em vez de passar confiança, provocou insegurança. Continuou a radicalizar, a debochar, a fazer pouco-caso, a atacar. Brigou com as diretrizes sanitárias da própria administração e aumentou o ruído com os governadores estaduais, em detrimento da unidade federativa tão necessária. A reação foi forte, mas não houve recuo.

Sua intervenção não se deve só ao baixo nível e a uma instável condição emocional. Há cálculo nela. O olhar repousa em 2022 e no esforço para recuperar o capital político que, a esta altura, está em franca evaporação. É um cálculo rasteiro, repleto de espasmos de ódio, mesquinharia e paranoia, narrativa e ideologia. Torpedeia o bom senso, esbofeteia a realidade.

Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro. O foco é confundir a população, desorganizar os sistemas, passar por vítima, para que se fomente a expectativa de que apareça a figura sinistra do “salvador”.

O presidente parece acuado e se deixa guiar pelas áreas mais extremadas de seu núcleo principal, o “gabinete do ódio”. Os ministros, salvo uma ou outra exceção isolada, batem-lhe continência. Fecham-se num mutismo incompreensível, covarde. Nos bastidores, muito ruído e informações cruzadas, indício de que o clima ficou pesado.

Há quem o aplauda e reverbere suas ideias. São pessoas encolerizadas, que trafegam pela estrada do irracionalismo. O desleixo e a irresponsabilidade de Bolsonaro são vistos como prova da disposição de não ceder à pressão dos políticos, da imprensa e dos interesses internacionais. Suas falas destrambelhadas e reacionárias são desculpadas em nome da ideia de que “antes dele era pior”. Pelas redes, o “gabinete do ódio” manda: batam nos governadores e prefeitos, que estão a causar recessão e desemprego. Os bumbos soam.

Os eleitores circunstanciais de Bolsonaro, aqueles que nele votaram para derrotar o PT, já devem ter percebido o engodo em que caíram. Mas os bolsonaristas de “raiz” permanecem ativos. Gostam do estilo grosseiro de Bolsonaro, o “mito”. São fanáticos, agressivos, ressentidos, preconceituosos, têm profunda aversão à política e à democracia representativa.

O questionamento da política democrática é uma pérola dos manipuladores do sentimento popular. Está no miolo da extrema direita atual, encontrando sua câmara de eco na figura daqueles “engenheiros do caos” tão bem analisados por Giuliano Da Empoli. Sob a bandeira do iliberalismo e do autoritarismo reúnem-se populistas, nacionalistas, ultraconservadores, neonazistas, uma fila imensa de gente com ódio no coração. Todos falam em combater os políticos, lutar contra a esquerda, fechar a nação, defender a “pátria” e as pessoas comuns.

O bolsonarismo emergiu sem base organizada, liderado por um deputado tosco e inexpressivo. É uma agitação com baixa densidade associativa. Sua reprodução se dá nas redes. Luta para erguer a Aliança pelo Brasil, uma incógnita. Está limitado pela ausência de propostas para o País, pela baixa qualidade de seus quadros, por sua escassa civilidade, pelo uso intensivo da mentira. O bolsonarista-raiz é intolerante, tem instinto persecutório e vê traidores por toda parte, sinal de uma fragilidade psíquica que se traduz em arrogância. Está também desprovido de pensadores com capacidade de elaboração intelectual. Vive do combate a inimigos imaginários. São traços que dificultam a construção partidária e levam ao canibalismo dentro da própria organização.

A pandemia é um repto à humanidade e aos diferentes países. Desafia os democratas, que precisam se articular para agir sobre a vida. Quem chegou ao governo deve mostrar que sabe enfrentar um quadro de calamidade pública. Até agora, o bolsonarismo tem sido um fiasco. Seu líder máximo explora uma crise epidêmica mortífera, indiferente à desgraça da população. Os recorrentes panelaços dos últimos dias indicam que a base bolsonarista se estreitou e muitos cidadãos estão escandalizados com a conduta insensata e insensível de Bolsonaro.

Veremos se essa tendência se confirmará. O importante, agora, é defender as instituições democráticas, apoiar o sistema de saúde e respaldar governadores e prefeitos, de Doria a Caiado, que fazem um trabalho de coordenação que Bolsonaro, na ânsia de tiranete sem preparo, jamais será capaz de fazer.

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O que fazer quando o presidente não lidera? -- CELSO MING

ESTADÃO - 28/03

Não dá para contar com Bolsonaro para uma ação coordenada para o contra-ataque ao novo coronavírus


O maior equívoco do presidente Bolsonaro não é o de que pense diferentemente da Organização Mundial da Saúde (OMS), da maioria dos infectologistas e da opinião majoritária no País sobre a melhor maneira de enfrentar a pandemia.

É o de não atuar como chefe de governo. Em vez de unir o País, optou pela ruptura. Quando se refere ao vírus, ignora sua gravidade. Classifica-o como agente que não produz mais do que uma “gripezinha”, um “resfriadinho”. E desdenha do sofrimento da legião de infectados e das mortes que tendem agora a aumentar. Prefere dizer que o povo está acostumado a se meter no esgoto sem apanhar doenças.

Mas, ainda assim, poderia defender tratamento diverso do adotado pela maioria dos governadores e prefeitos. Mais do que promover procedimentos recomendados pelos especialistas, teria de tomar a iniciativa de conduzir um debate responsável. Mas preferiu desancar quem não pensa como ele.

Está mais do que na hora de entender que não dá para contar com o presidente para uma ação coordenada para o contra-ataque ao flagelo. Se isso é assim, o que fazer com ele?

Já houve quem sugerisse sua interdição, sem dizer como se faz isso. Não haveria sentido apresentar um atestado subscrito por meia dúzia de especialistas e internar o presidente, sabe-se lá em que condições. Também apareceram propostas de colocar em marcha um processo de impeachment, procedimento normalmente demorado, sujeito a complicados trâmites políticos e judiciais, portanto inviável.

A prática começa a sugerir outro tipo de saída. Sem partir para a truculência, governadores, líderes do Congresso, juízes do Judiciário e até mesmo membros do governo, como no pacote de crédito de sexta-feira, começam a atuar de maneira autônoma. Contra a palavra de ordem de que “o Brasil não pode parar”, governadores e prefeitos, por exemplo, ordenaram o recolhimento da maior parte da população, o fechamento de escolas e do comércio não essencial. E, independentemente de ideologias e de filiação partidária, têm se reunido para coordenar políticas. Autoridades do Judiciário passaram a vetar algumas das decisões descabidas do presidente, como o artigo de medida provisória que restringiu a Lei de Acesso à Informação. E, sem chutar o pau da barraca, o Legislativo e outros setores do governo vêm preparando e aprovando medidas destinadas a reduzir o sofrimento da população e a paradeira das empresas.

A solução de confinar politicamente o presidente, de deixá-lo falando sozinho, entregue à lira de Nero – como aponta a última edição da revista The Economist –, não é evidentemente a ideal. Ele continua pilotando uma caneta poderosa, continua sendo o editor do Diário Oficial e tem lá uns 20% de seguidores que o apoiam ferozmente nas redes sociais.

Vai, também, que não será preciso isolar politicamente o presidente. A pandemia pode acabar por bater tão implacavelmente o Brasil, como preveem especialistas, que não sobrará saída técnica senão o confinamento. Mas se não foi capaz até aqui de liderar o País na guerra contra o vírus, também não será capaz de liderar depois que tudo der errado, como deu errado na Itália e na Espanha.

CONFIRA

Nem sempre o ouro segura


Ouro e imóveis nem sempre garantem segurança e rentabilidade que muita gente pensa. O valor das cotas dos fundos imobiliários, por exemplo, despencou e, mesmo assim, poucos conseguem revendê-las. Os imóveis à venda não têm interessados. E as cotações do ouro estão voláteis. Nos 30 dias terminados nesta sexta-feira caíram 1,4%. Em março, o preço da onça-troy (31,1 g) ainda teve uma valorização de 2,2%. É um pouco daquilo que está no ‘Manifesto’ de 1848: “O que é sólido desmancha no ar”.

O desvario de Bolsonaro - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 28/03

Planalto faz vídeo contra políticas aceitas pela maioria e de impacto consumado


Não satisfeito com seu pronunciamento de terça-feira (24) em cadeia de rádio e TV, o presidente Jair Bolsonaro avançou em sua cruzada para sabotar os esforços de controle da epidemia de Covid-19.

Na mais recente ofensiva contra as recomendações quase unânimes de médicos e estudiosos, o Palácio do Planalto encomendou um vídeo publicitário em que se exorta a população a voltar ao trabalho, às escolas e a outras atividades.

“O Brasil não pode parar” é o mote da peça populista, veiculada de modo experimental nas redes sociais bolsonaristas —o que já seria um escândalo em potencial, tratando-se de comunicação de governo, mesmo se o conteúdo fosse sensato ou bem-intencionado.

Mais que excitar as hordas fanáticas da internet, o que se faz é estimular de modo temerário pressões de empresários e trabalhadores contra as normas de confinamento em suas cidades e regiões.

Se compreendem-se as preocupações com a renda e os empregos, é com fundamentos científicos que se deve travar a discussão. O governo Bolsonaro, entretanto, não apresenta um fiapo de argumento técnico para sustentar a defesa que o presidente faz de isolamento apenas parcial de indivíduos.

Com o mesmo ímpeto demagógico e irresponsável, o chefe de Estado decidiu incluir as atividades religiosas entre aquelas oficialmente consideradas essenciais, permitindo que cultos de qualquer natureza continuem ocorrendo mesmo em situações de quarentena.

Encoraja-se, assim, o comportamento de risco da população, com a formação de aglomerações em espaços fechados —ambiente propício para a propagação do vírus.

Para dizer o óbvio, atividades hieráticas não se revestem, num Estado laico, da essencialidade fundada no interesse público. Conforme o decreto que trata da matéria, serviços essenciais são aqueles que “se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.

Nem mesmo como cálculo político os desmandos de Bolsonaro fazem grande sentido. Ele investe contra políticas já em curso, aceitas pela grande maioria da população e de impacto econômico consumado. Não escapará de responder por uma recessão; tampouco merecerá os créditos se o combate à pandemia for bem-sucedido.