segunda-feira, março 05, 2018

O espírito na saliva dela - LUIZ FELIPE PONDÉ

GAZETA DO POVO-PR/FOLHA DE SP - 05/03

O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam?

Por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas, engolindo a saliva dela?


Afinal, o que querem duas pessoas quando se beijam na boca? Essa questão me vinha à mente quando criança. O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam?

Diretamente ligada a esta questão, uma outra que frequentava minhas indagações filosóficas infantis era: por que os homens chamam mulheres de "gostosas"? Sendo "gostosa" uma expressão usada para comida, por que, afinal, os homens aplicavam às mulheres?

Comecemos por esta (apesar de não ser a questão que me interessa propriamente). Estou longe de achar que a expressão "gostosa" seja errada ou "objetificante da mulher". Penso justamente o contrário: "gostosa" é um termo perfeito para se aplicar a um certo tipo de mulher, aquelas que nos fazem perder a cabeça.

Na verdade, o debate sobre a objetificação não me interessa. Afora o fato de que mulheres se sentem de fato gostosas quando gozam ou quando arrasam corações e vidas por aí, o termo "gostosa" é, exatamente, o que descreve a sensação que temos quando estamos diante de mulheres que temos vontade de "devorar sexualmente".

O verbo "devorar" pode, facilmente, ser substituído por "comer" ou "engolir". Lembro-me bem da primeira vez que entendi o significado de chamar uma mulher de gostosa. E esse entendimento tinha a ver com a vontade de comê-la ou engoli-la. A beleza dela se transmutava em desejo de assimila-la a mim mesmo.

Todos esses verbos, assim como a expressão "gostosa", nos remetem à ideia de gosto e de alimentação. Mulheres têm gosto e nos alimentam. Para quem as aprecia, esse gosto não é unicamente "físico".

O gosto de uma mulher é, também, metafísico. Por isso o poder de uma mulher inundar a vida de um homem: ele quer "comer" seu corpo e sua alma. Não é à toa que muitos antropólogos consideram o canibalismo indígena (o real, não o metafórico) um ato sublime e espiritual.

E aí voltamos à minha primeira indagação filosófica infantil: por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas a fio, engolindo a saliva dela?

Claro que há algo relacionado ao "comer" a mulher desejada neste gesto. Ou "comer" qualquer pessoa desejada, obviamente. Não vou perder tempo aqui com questões periféricas como "gênero". Mas, haveria algo de metafísico nisso?

O filósofo e místico espanhol e mulçumano Ibn Arabi, nascido em Múrcia, Espanha, em 1165, e morto em Damasco, Síria, em 1240, escreveu uma obra (entre outras) dedicado ao amor ("Tratado do Amor") em que discorre sobre a natureza de vários tipos de amor, desde o mais natural, ao mais espiritual e místico.

Ibn Arabi é conhecido pelo impacto na tradição islâmica sufi e na mística islâmica como um todo. Um daqueles antídotos para quem pensa que o Islamismo seja uma religião de bárbaros. Aliás, o componente místico do Islã é de uma beleza avassaladora.

Vejamos um trecho específico sobre o beijo escrito pelo místico islâmico espanhol medieval: "Quando dois amantes se beijam intimamente, cada um aspira a saliva do outro, que penetra neles. Quando se beijam e se abraçam, a respiração de um se expande no outro e o hálito assim exalado penetra em ambos ao mesmo tempo".

Este trecho está na parte do tratado em que ele discorre sobre as relações entre o amor natural e o espiritual.

A ideia de Ibn Arabi é a de que ao engolir a saliva um do outro, ao respirar o hálito que sai da boca do outro e ao desejar de forma ardente esta mistura "promíscua" de elementos corporais íntimos, os dois amantes desejam estabelecer uma identidade única entre eles.

Misturar saliva e hálito representa, na análise poética do místico espanhol, essa partilha de intimidade para além de qualquer abstração vazia.

Quando desejo engolir a saliva de uma mulher ou respirar seu hálito com a minha boca, de forma ardente e apaixonada, estou dizendo a ela que gostaria de ser um com ela. De me fundir com ela. De assimilar a beleza que vejo nela e que me coloca nessa condição de desejar tê-la como parte do meu corpo. Por isso, o espírito em sua saliva me encanta.


Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.

O curso do “golpe” e a função da universidade - EDITORIAL GAZETA DO POVO-PR

GAZETA DO POVO-PR - 05/03

Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado

Doutrinação político-partidária de esquerda não é novidade na universidade brasileira (e nem nos ensinos fundamental e médio) há muito tempo. Mas nos últimos dias alguns professores perderam todo e qualquer pudor. Os alunos do curso de graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) terão à disposição, neste primeiro semestre de 2018, a disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” – o “golpe”, no caso, não poderia ser referência a outra coisa que não o impeachment de Dilma Rousseff.

A ementa é explícita, citando como objetivos do curso “entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff; Analisar o governo presidido por Michel Temer e investigar o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil; Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado de Direito e da democracia política no Brasil”. A bibliografia é praticamente toda formada por autores de esquerda, e a avaliação será feita por meio de quatro trabalhos que “deverão incorporar as leituras indicadas para cada unidade”.

A disciplina oferecida na UnB não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes


Ainda que se argumente que a disciplina é optativa – ou seja, não é necessário cursá-la para conseguir concluir o curso –, ela é a pura e simples difusão de um viés político-partidário. Não há preocupação em entender quais são as bases legais do impeachment, a legislação envolvida, os atos cometidos por Dilma Rousseff e considerados crime de responsabilidade; parte-se do pressuposto de que houve um “golpe”, uma “ruptura democrática” seguida pela instalação de um “governo ilegítimo”, e as visões divergentes nem sequer são apresentadas. Ora, isso não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes, até porque o curso se propõe a avaliar as “possibilidades de reforço da resistência popular”. É a negação do verdadeiro papel da universidade, de promover o embate de ideias em busca da verdade. É necessário questionar que nota um aluno receberá se, nos trabalhos, “incorporar as leituras indicadas” e for capaz de rebater os argumentos ali apresentados, com conclusões que batam de frente com as premissas do curso. Por mais que o programa afirme que “a avaliação dos trabalhos vai levar em conta (...) a visão crítica, a capacidade de realizar conexões com a realidade, o desenvolvimento de ideias próprias”, é fundado acreditar que nem toda “visão crítica” ou “ideia própria” será bem recebida no curso.

Que isso ocorra em uma universidade pública, bancada pelo contribuinte – e não apenas na UnB, pois outras universidades já anunciaram cursos semelhantes; na Universidade Federal da Bahia, a disciplina integrará o curso de História e tem a mesma ementa daquela oferecida na UnB –, é ainda mais triste. Não à toa a divulgação do curso chamou a atenção do ministro da Educação, Mendonça Filho. E ele tem toda a razão quando afirma, em nota divulgada pelo MEC, que “a ementa da disciplina traz indicativos claros de uso de toda uma estrutura acadêmica, custeada por todos os brasileiros com recursos públicos, para benefício político e ideológico de determinado segmento partidário, citando, inclusive, nominalmente o PT”, e que a universidade adota “uma prática de apropriação do bem público para promoção de pensamentos político-partidários”. Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado.

No entanto, se a indignação do ministro é humanamente compreensível, as medidas que adotou, acionando vários órgãos, incluindo a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal, para apurar se houve improbidade administrativa, são claramente incompatíveis com o princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da Carta Magna. Pedir – e, eventualmente, obter – o fechamento de cursos única e exclusivamente por seu conteúdo choca-se com a liberdade que deve caracterizar o ambiente universitário. É bem verdade, e isso não pode ser ignorado, que, na hipótese contrária, a de um curso que defendesse explicitamente ideias mais à direita do espectro econômico-político, como, por exemplo, “a agenda reformista de Temer e seu papel crucial para a modernização do Brasil”, certamente toda a comunidade acadêmica e setores da imprensa estariam clamando, indignados, pelo seu cancelamento, no típico duplipensar que endossaria a atitude que agora condenam. E estariam da mesma forma equivocados, contrariando o mesmo princípio da autonomia universitária, se esse pedido se desse através dos meios que supõem o uso do poder coativo do Estado.

Isso nos remete a um ponto crucial nesse enfrentamento cultural (algo válido para muitas outras situações que guardam com ela alguma analogia): sua solução não pode estar entregue às instâncias estatais; são os próprios indivíduos e comunidades que, dentro de suas prerrogativas e liberdades, devem “combatê-las”, sempre com o máximo respeito pelas prerrogativas e liberdades dos demais. A comunidade acadêmica tem diante de si a tarefa de zelar para que a universidade mantenha seu caráter de centro formador de conhecimento, em vez de decair a ponto de se tornar um ambiente tomado pela militância político-partidária que ignora ou despreza o contraditório e o embate de ideias. E esse cuidado para que a universidade não se desvirtue pede que professores e alunos exerçam a liberdade de repudiar tudo aquilo que destoe do objetivo da instituição. Isso exige romper a “espiral de silêncio” que se formou, ao longo de décadas, em muitos departamentos de universidades brasileiras em relação a tudo que não seja de esquerda. Sabemos que não é fácil, dado o nível do aparelhamento do ambiente universitário por uma militância que teme e rejeita essa mesma liberdade – uma mentalidade que leva até à perseguição de docentes que não se curvam ao pensamento esquerdista, como foi o caso recente de Gabriel Giannattasio, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, denunciado por colegas por ter criticado, em e-mail, uma carta aberta (a Procuradoria Jurídica da UEL decidiu que a denúncia era improcedente). As disciplinas do “golpe” mostram que ainda há um longo caminho para que a escola e a universidade voltem a ser um ambiente de autêntica liberdade intelectual, mas é uma luta que, com as armas certas, precisa ser travada.


Um chamado à razão - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/03

O presidente Michel Temer teve de recordar, em entrevista, que as Forças Armadas “só são chamadas quando eu as convoco” e que “não há um desejo sequer das Forças Armadas em assumir o poder”


Há quem esteja vendo no protagonismo do Exército na intervenção federal no Rio de Janeiro alguma semelhança com a época do regime militar. A tal ponto chegou essa ilação que o presidente Michel Temer teve de recordar, em entrevista à rádio Jovem Pan, que as Forças Armadas “só são chamadas quando eu as convoco” e que “não há um desejo sequer das Forças Armadas em assumir o poder”.

O chamado do presidente à razão é necessário, pois tem prosperado com inusitada facilidade o discurso segundo o qual está havendo uma “militarização da política”, como resultado de um alardeado envolvimento crescente dos militares em assuntos civis. Nesse contexto, a palavra “ditadura” surge com incomum naturalidade, como se a presença de um general na administração da segurança pública do Rio de Janeiro, em caráter extraordinário e temporário, fosse o sintoma mais vistoso da entrega do poder às Forças Armadas.

Para os que se dizem preocupados com esse suposto retrocesso, qualquer acontecimento, impressão ou rumor, por mais banal que seja, se torna prova de que estamos a meio caminho do restabelecimento do regime de exceção encerrado em 1985. Tome-se o exemplo da entrevista coletiva do general Walter Braga Netto, interventor na segurança pública do Rio de Janeiro nomeado pelo presidente Temer. Bastou que o oficial fizesse diversas exigências aos jornalistas para responder às perguntas para que logo circulassem comentários sobre o espírito autoritário que estaria a mover o interventor. É certo que a entrevista poderia ter transcorrido de outra forma, menos rígida, pois afinal os jornalistas lá estavam para cumprir a função de levar informações ao público, mas daí a sugerir que a atitude do general Braga Netto aludia aos tempos da ditadura, como muitos comentaristas fizeram, vai uma distância colossal.

O mesmo se deu quando os militares fotografaram moradores de algumas favelas do Rio, como parte do esforço para identificar criminosos. A medida está em consonância com o decreto presidencial de 28 de julho de 2017 que autoriza o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro. Além disso, a prática de fotografar moradores de favelas para procurar pessoas com mandado de prisão tem respaldo do Ministério Público do Rio de Janeiro, de acordo com o Comando Militar do Leste. Para quem busca sinais de uma ditadura em construção, contudo, o procedimento dos militares, estampado em fotos nos jornais, rapidamente se transformou em “fichamento” - embora ninguém tenha sido fichado - e serviu como evidência de “violação de direitos humanos” que só pode ser praticada em um regime de exceção. “Isso remonta a práticas antigas, da ditadura”, reclamou um representante da Defensoria Pública do Estado do Rio.

Os exageros são evidentes, mas vivemos numa época em que os exageros têm primazia em relação aos fatos. E os fatos são apenas estes: os militares não saem dos quartéis senão por ordem do presidente da República, que é civil, e a atuação das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro, até este momento, está inteiramente respaldada pela legislação.

Convém lembrar que, se dependesse do Comando do Exército, os soldados não participariam de operações de segurança pública, para as quais não receberam treinamento e cujo potencial de desgaste para a instituição militar não é desprezível. Mais de uma vez, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, se queixou da constante convocação dos militares para esse tipo de missão, sem que os resultados compensassem os riscos e o esforço.

A tese de que o País está a testemunhar a volta da ditadura militar em câmera lenta, com a anuência ou mesmo cumplicidade do presidente da República, não deveria prosperar nem mesmo em assembleias estudantis e em reuniões de militantes partidários que veem golpistas em todo canto. Infelizmente, contudo, é em momentos conturbados como o atual que a histeria consegue se impor onde deveria prevalecer a razão.

O cliente é a alma do negócio - MARCIA DESSEN

FOLHA DE SP - 05/03

Dizem que propaganda é a alma do negócios; não sei não... nós, consumidores, mandamos no jogo


Já reparou na quantidade gigantesca de propaganda que nos bombardeia todo santo dia? Os especialistas em marketing acreditam que a propaganda é a alma do negócio, e, se assim é, nada melhor que uma bela campanha publicitária para influenciar o mercado consumidor e alavancar as vendas.

Quando o assunto é produto, o nome, a embalagem, a exibição nas gôndolas dos supermercados, tudo conta, para influenciar nossa decisão de compra. Muitas vezes compramos coisas de que não precisamos só porque a embalagem é bonitinha, ou porque está na prateleira bem na sua frente, onde seu olhar alcança com facilidade.

Quando o que se vende é um serviço, nos impressionam ao oferecer uma experiência única, a oportunidade de receber um atendimento especial, de nos sentirmos importantes e bem tratados.

Conhece a tática do compre hoje e comece a pagar somente daqui a três meses? E o famigerado pagamento em dez vezes sem juros? Já viu “oferta válida somente neste fim de semana” ser prorrogada inúmeras vezes? Tem também a tática do leve três e pague dois, principalmente quando o produto está perto da data de validade.

Quando o estoque de carros das montadoras está elevado, ofertas sedutoras de seguro, licenciamento e IPVA grátis. Feirão de imóveis com IPTU e condomínio do primeiro ano quitado, outra novidade da crise no mercado imobiliário. Sorteios de carros e viagens incentivam as compras nas principais datas de consumo, como Natal, Dia das Mães, Dia da Criança, Dia dos Namorados.

Aliás, essa invenção de datas comemorativas nada mais é do que mais um truque de marketing para esquentar as vendas e constranger o consumidor. Ai de quem esquecer o presente para o filho ou o namorado ou não tiver dinheiro para comprar!

O alcance da internet e das redes sociais revolucionou ainda mais o conceito de marketing. Os sites de busca sabem onde estamos, tudo o que já pesquisamos, filmes a que assistimos, as músicas preferidas, compras que fizemos, chega a ser assustador.

Privacidade? Coisa do passado.

Marketing é uma ciência. Cursos de graduação, pós-graduação e especialização formam profissionais em conceitos e técnicas com um único objetivo: chegar até nós, consumidores. Há centenas de livros sobre o assunto. As propagandas, cada vez mais agressivas, usam estratégias sedutoras para atrair o consumidor.

O outro prato da balança, o prato do consumidor, praticamente vazio. Que treinamento nós temos para aprender a negociar, tomar decisões assertivas, não cair em tentação ou se deixar seduzir por merchandising barato? Além do Código de Defesa do Consumidor e de alguns sites nos quais é possível buscar proteção contra abusos, reclamar, botar a boca no trombone, o que temos?

Nosso próprio arbítrio, essa é a principal e talvez a única arma a nosso favor. Autoconhecimento, autocontrole, a razão prevalecendo sobre a emoção.

As muitas artimanhas mercadológicas tentam atrair nosso lado emocional, cientes de que temos necessidades não atendidas, frustações que precisam ser compensadas, a sensação de
poder deliciosamente vivenciada quando finalmente conseguimos comprar o que os amigos e vizinhos já tinham.

Consumidor satisfeito e fiel, “fidelizado”, como somos identificados pelos grandes conglomerados, é o coroamento da estratégia de marketing, evidência mais concreta de que alcançaram os objetivos.

Até o governo conta com o aumento do consumo para aquecer a economia, adotando políticas públicas para incentivar o consumo. Nós, consumidores, somos o motor da economia do país.

Já que somos tão importantes, vamos nos apropriar desse valor e aprimorar nossas escolhas. Valorizar cada centavo gasto tomando decisões conscientes, fechando negócio com empresas que reconhecem nossa importância, que nos respeitem com oferta de produtos e serviços de qualidade, com boa relação
custo-benefício.

E, sobretudo, que sejam éticos, ao longo de toda a cadeia produtiva e, especialmente, no relacionamento com seus clientes, cientes de que somos mais importantes do que os produtos e serviços que vendem. O cliente é a alma do negócio!


Intérprete supremo - FERNANDO LIMONGI

Valor Econômico - 05/03

O ministro Luís Barroso publicou longo artigo para defender o Supremo Tribunal Federal. Em "Nós, o Supremo", publicado na Ilustríssima do domingo retrasado, respondeu cada uma das críticas endereçadas por Conrado Hübner semanas antes. Basicamente, com o tato que lhe é característico, o ministro acatou todas as objeções, afirmando que serão resolvidas a seu devido tempo.

Entre as linhas, estava escrito 'serão resolvidas sob minha liderança, quando minhas posições se impuserem a dos demais'. Ao final da semana, contudo, deixando a civilidade, o ministro voltou a trocar 'sopapos verbais' com seu colega de Corte, o ministro Gilmar Mendes. A distância entre o Supremo imaginado por Barroso e o realmente existente é abissal.

Em seu artigo, Barroso defende que Cortes Supremas modernas cumprem três papéis: o contramajoritário, o representativo e o iluminista. O primeiro é o tradicional e os dois outros seriam 'modernos'. O STF vem sendo criticado porque os exerce, diz o ministro. E como os exerce bem, haveria motivos para comemoração e não críticas.

Independente da sua composição e dos problemas organizacionais que comprometem a atuação do STF real, mesmo que todos esses problemas fossem resolvidos, é para lá de discutível que seja recomendável dotar o STF com os poderes vislumbrados por Barroso.

Por papel representativo, Barroso entende a capacidade de atender "demandas sociais que não foram satisfeitas pelo Legislativo". Cita como exemplos do exercício desse papel a proibição do nepotismo, o fim do financiamento empresarial das campanhas e a imposição da fidelidade partidária. Nesses casos, diz o ministro, o Supremo não fez senão "acudir inequívocas reinvindicações da sociedade, não acolhidas em razão de um déficit de representatividade."

O ministro, portanto, reivindica para si e para seus pares a capacidade de identificar 'demandas sociais inequívocas'. As medidas citadas até podem ser classificadas como corretas e acertadas por inúmeros atores. Mas daí a convertê-las em 'demandas inequívocas' vai uma distância enorme.

O papel que confere ao Supremo, como se vê, é enorme, quando não ilimitado. Com base em qual critério pode o Supremo (ou qualquer mortal) identificar quais são as verdadeiras demandas da sociedade? Sinto informar o ministro que este critério ainda não foi encontrado e que esta é a matéria por excelência da política. Discordamos e acreditamos em coisas distintas.

Falar em déficit de representatividade é recorrer a um eufemismo. Os intérpretes da lei, tempos atrás, falavam em sociedade hipossuficiente para reivindicar protagonismo. Em uma palavra, sai 'nós, o povo' e entra 'nós, o supremo'. Para justificar a substituição, os juristas recorrem ao terceiro papel destacado por Barroso, o iluminista.

Segundo o ministro, essa função deveria ser exercida com "parcimônia e autocontenção" em "conjunturas em que é preciso empurrar a história." Grandiloquente, o ministro não economiza na pompa: "Em alguns momentos cruciais do processo civilizatório, a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário."

Espantoso que um constitucionalista deixe de notar a contradição: pode alguma instituição que acredita representar 'a razão humanista' se 'autoconter'?

O Supremo real está a quilômetros de distância do projetado por Barroso. Mas a construção teórica e retórica pede consideração, pois se baseia em diagnósticos correntes e disseminados sobre a natureza do conflito social e politico que divide a sociedade brasileira. Na visão de Barroso, tudo se resume a um conflito entre iluministas e obscurantistas, ou para usar uma linguagem mais antiga, entre o moderno e o atraso. Nessa visão, o lado que representa o progresso está, por definição, sempre certo, pois conhece as verdadeiras demandas da sociedade e tudo que faz é empurrar a história devida. A oposição é o passado, representa que amparados (ou explorando) o tradicional déficit de representação querem preservar o atraso. Não por acaso, ao se referir aos críticos do Supremo, o ministro Barroso evoca resistências oligárquicas.

Infelizmente, o mundo não é tão simples. Concretamente, as intervenções recentes do Supremo sobre a ordem política desmentem tal visão maniqueísta do mundo.

Tome-se como exemplo a verticalização das coligações eleitorais, imposta para vencer o localismo e dar lugar à nacionalização e ao fortalecimento dos partidos. O resultado foi o inverso. Para os partidos menores, o melhor foi se retirar da eleição presidencial e concentrar forças nas disputas locais.

A derrubada da cláusula de barreira foi justificada a partir da necessidade de defender as minorias contra a força avassaladora da maioria. As minorias (pequenos partidos) agradeceram a proteção e a passaram adiante, vendendo o direito recebido (tempo de rádio e TV) às maiorias (grandes partidos).

O maior exemplo iluminista citado por Barroso, a proibição de que empresas contribuam para campanhas, coloca as mesmas dificuldades. Atores reveem sua estratégia e encontram meios alternativos para fazer valer suas pretensões. Achar que uma penada resolve o problema da influência do dinheiro na política é manifestar ingenuidade colossal. Na realidade, revela completo desconhecimento da realidade que se quer reformar. Mal comparando, a reforma equivale a retirar da sala o sofá em que o adultério era cometido.

Conflitos políticos não se resumem ao confronto entre o racional e o irracional, o iluminismo e o obscurantismo, o moderno e o atrasado. Membros da sociedade divergem sobre o que acham certo e errado e, por isso mesmo, devem desconfiar dos que se acreditam intérpretes autorizados da razão e da história, quanto mais daqueles que se sentam em uma instituição que se intitula suprema. Mesmo se representasse o senso comum, o nós que deve prevalecer é o que emana da maioria. Assim funcionam as democracias.

Fernando Limongi possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em Ciência Política - University of Chicago (1993).

Tirar governadores não resolve - RAUL VELLOSO

O GLOBO - 05/03
A eles resta orçamento residual mínimo para bancar conta, mais as importantes áreas de infraestrutura e segurança, pela qual são os únicos responsáveis


Se compararmos os resultados fiscais estaduais acumulados em 2015-17 com os relativos aos mandatos precedentes (2011-14), conforme balanços recém-divulgados, os números chocam. Um superávit total de R$ 11 bilhões, na fase precedente, se transformou num déficit de não menos que R$ 35 bilhões, ou seja, uma virada, para pior, de R$ 46 bilhões, cerca de 5,3% da receita estadual de 2011. Assim, ao esconderem seguidos e expressivos atrasos de pagamento não capturados como despesa, os sucessivos superávits divulgados pelo Banco Central para os governos estaduais não espelham o drama vivido por aqueles entes.

Nesses, apenas dez estados viraram para melhor. O maior destaque foi de Alagoas, com uma virada positiva de não menos que 14,7% da receita de 2017. Os demais estados em boa situação de virada foram Espírito Santo (12%); Rondônia (10,7%); Maranhão (8,2%); Mato Grosso do Sul (4,4%); Ceará (4,3%); Piauí (3,3%); Paraná (2%); Amapá (1,7%); e São Paulo (0,4%).

Já nos demais 17 estados as cinco piores viradas foram as de Roraima, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.

Ou seja, a crise estadual se generalizou e teve grande impacto. Além disso, muitos problemas — tais como despesas engavetadas e caixas “negativos” — vieram transferidos dos mandatos precedentes.

Chamo a atenção dos leitores que boa parte dessa crise se deve à mais longa e profunda recessão de nossa história, cuja duração, para azar dos titulares estaduais, deverá coincidir majoritariamente com os respectivos mandatos. Há não só a queda de receita, como a assunção de serviços que antes eram prestados pelo setor privado e se tornaram impossíveis de serem bancados por pessoas agora desempregadas.

No caso mais dramático do Rio, houve ainda o efeito devastador da desabada do preço externo do petróleo. Primeiro, porque praticamente zerou sua super-relevante receita de royalties; segundo, por ter sofrido mais com a recessão, em decorrência de sua atividade econômica altamente concentrada na cadeia de óleo e gás.

Para os que não herdaram caixas relevantes das administrações anteriores, fica a gigantesca e praticamente impossível tarefa de compensar os déficits acumulados até agora, apenas em 2018, último ano dos atuais mandatos, com superávits equivalentes. Quem não fizer isso será punido fortemente pelas leis em vigor.

Se precisar compensar os déficits acumulados em 2015-17, o plano de recuperação que o governador do Rio conseguiu a duras penas aprovar no Congresso — com quórum de mudança constitucional e contra a vontade da maioria de sua bancada estadual e das autoridades fazendárias — terá de ser capaz de gerar um excedente de R$ 20 bilhões este ano, num país abalado por brutal recessão e outras mazelas. No caso de Minas, que não assinou o mesmo acordo, a conta equivalente mostra que o superávit de 2018 teria de ser ao redor de R$ 13 bilhões, tarefas essas de muito difícil realização. E qualquer frustração das políticas listadas no plano do Rio exige compensação por outras medidas, onde quase não há margem de manobra.

E isso sem falar que, por trás do quadro aqui descrito, está o crescente e hoje muito elevado déficit das previdências estaduais, que sufocam os dirigentes estaduais além do que seria imaginável, pois judiciários, legislativos, ministérios públicos, defensorias públicas, e as áreas de educação e saúde resistem a pagar qualquer parcela dessa despesa. Assim, aos governadores resta um orçamento residual mínimo para bancar essa conta, mais as importantes áreas de infraestrutura e segurança pública (pela qual são os únicos responsáveis). Não é à toa o estado crítico dessas duas.

A propósito, acabo de apurar com Leonardo Rolim que o custo das previdências estaduais para o total dos entes passou de 17% para 22% de suas receitas correntes líquidas de 2015 a 2017. Os casos mais dramáticos, no ano passado, foram os do Rio Grande do Sul, com 43%; de Minas e Rio Grande do Norte, com 38%; Pernambuco, 29%; e Rio, 28%.

Para ser mais realista, essa comparação deveria adicionar aos gastos com previdência as parcelas abocanhadas pelas áreas privilegiadas no Orçamento anteriormente indicadas. Nesse caso, com base em dados de 2016 para o Rio, a marca de 28% passaria para nada menos que 71% da mesma receita.

Em síntese, não se trata de escolher bodes expiatórios, mas adotar a solução correta. Trata-se da criação dos fundos de pensão, que venho propondo há mais de um ano, e que atende simultaneamente ao problema de curtíssimo prazo (compensar déficits acumulados em 2018) e o buraco de prazo mais longo, obviamente com a ajuda de uma reforma das regras da Previdência focada no segmento público.

Raul Velloso é economista

Estado e segurança - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 05/03

O Rio de Janeiro está se esfacelando. Em face de situação de emergência, solução emergencial

Algumas obviedades costumam escapar do senso comum brasileiro, sobretudo quando enviesadas ideologicamente. A segurança, tão cara a qualquer pessoa, é vista – melhor dizendo, encoberta – do prisma de uma oposição entre direita e esquerda, como se se tratasse de assunto da primeira. Imaginem uma pessoa acossada por um criminoso diante de uma opção ideológica quando se debate entre a vida e a morte. Não faz nenhum sentido.

Convém, preliminarmente, relembrar o óbvio. É função primordial do Estado assegurar a integridade física dos cidadãos e de sua família, assim como de seus bens. Se renunciam à autodefesa no uso indiscriminado da violência, é para que dela sejam resguardados. Não deveriam viver sob o medo, como hoje é na maioria das cidades, onde as pessoas nem mais podem caminhar livremente pela rua. Sair de casa, quando não nela permanecer, sem nenhuma arma tornou-se, para o cidadão indefeso, atividade de risco. Uma situação desse tipo é inaceitável, mas é a expressão da anormalidade atual.

E quando falamos de Estado devemos ter presente que não se trata apenas da União, mas do conjunto do aparelho estatal, com seus Estados e municípios, assim como os diferentes ramos do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo. O País não pode mais viver esquartejado em diferentes competências isoladas, como se cada uma constituísse um território à parte, desvinculado dos demais. Observa-se nas últimas décadas uma transferência de responsabilidades, abandonando o cidadão à própria sorte.

O Rio de Janeiro é um caso emblemático, embora não seja o único, nem talvez o mais importante do ponto de vista das estatísticas. O que o caracteriza é ser a antiga capital do País, ainda funcionando como uma caixa de ressonância nacional. Mais particularmente, a atividade criminosa lá não se fez apenas fora do aparelho estatal, mas terminou por impregná-lo diretamente. Políticos estaduais estão presos, seu maior símbolo é o ex-governador que tornou sistemática a corrupção, sem sequer se preocupar com as aparências.

Territórios completos foram deixados à criminalidade e ao narcotráfico, atestando a existência de uma espécie de sem-Estado dentro do Estado, enquanto este apenas mantinha a aparência de normalidade institucional. Em tal contexto surgiu uma completa anomalia, embora, ressalte-se, seja ela fruto da soberania popular, isto é, os governantes corruptos foram eleitos em processo de livre escolha. Isso significa que cariocas e fluminenses são responsáveis pela situação que atualmente vivem.

Nesse sentido, deveriam arcar, com impostos próprios, com os gastos da uma intervenção federal, pois se pode considerar inapropriado que contribuintes de outros Estados paguem os custos de uma escolha eleitoral feita à sua revelia. O caixa nacional não é do governo federal, é abastecido com impostos e contribuições pagos por todos os brasileiros.

O governo Temer, ao decidir pela intervenção, chamou a si uma responsabilidade que, em termos de distribuição de competências federativas, não era dele, mas dos Estados. Pode-se discutir a oportunidade da intervenção, pois deixou para trás uma reforma vital para o País como é a da Previdência, dando ensejo à percepção de que haveria propósito eleitoral nessa iniciativa. O fundamental, no entanto, reside em que a situação do Rio foi percebida como crucial, na medida em que a violência apareceu midiaticamente como insuportável, apesar de vicejar há muito tempo. O presidente, responsavelmente, visou o restabelecimento da autoridade, pilar de sustentação do Estado. Outros presidentes se omitiram.

As Forças Armadas foram chamadas a cumprir essa missão, com o protagonismo sendo atribuído ao Exército. Nada mais natural, considerando o fato de as polícias do Rio não estarem mais cumprindo essa função. O Estado estava – e está – se esfacelando. Os militares gozam de alto prestígio entre a população e são reconhecidos por sua moralidade, honestidade e dedicação à Pátria. Em situações de emergência, soluções emergenciais.

O viés ideológico esquerdizante, porém, começou novamente a funcionar. Fala-se de intervenção militar, quando ela é federal, seguindo os preceitos constitucionais. Fala-se – incrivelmente, diria – da necessidade de acompanhamento das atividades das Forças Armadas pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, por diferentes comissões, e assim por diante. Disparate total. É como se potenciais criminosos uniformizados estivessem à solta, sob a máscara da captura de criminosos; como se os militares fossem o problema, e não uma parte essencial da solução. O que preferem? A continuidade da anarquia e a perpetuação da violência sob a demagogia de defesa dos favelados, quando estes são, na verdade, reféns do crime?

Alguns casos são emblemáticos. Foi amplamente divulgada uma série de fotos retratando soldados averiguando a identidade de moradores dos morros. Toda uma celeuma se criou, como se estivessem fichando inocentes tidos por criminosos. Tratou-se de mera identificação digitalizada, online, para averiguar a existência ou não de problemas com essas pessoas.

Nada muito diferente da identificação em prédios públicos ou empresas privadas. Em qualquer repartição do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Púbico há processos de identificação, com documentos e fotos. É corriqueiro e não se torna notícia. Ou deveríamos indignar-nos com tais procedimentos?

É inaceitável que se pretenda desqualificar o restabelecimento da autoridade estatal, atribuindo-lhe violações dos “direitos humanos” e da “democracia”. São estes que estão sendo diariamente pisoteados pelos crimes dos traficantes, dos contrabandistas e de uma parte da elite política.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS

O Supremo erra de novo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/03

O STF confirmou que as leis podem retroagir, a depender da vontade dos magistrados

O Supremo Tribunal Federal confirmou na quinta-feira passada que as leis podem retroagir, a depender da vontade dos magistrados. Ao confirmar decisão em que fez valer os efeitos da Lei da Ficha Limpa para candidatos condenados antes da edição do referido diploma legal, a principal instância judicial do País inscreveu definitivamente a insegurança jurídica como norma, tudo isso a pretexto de sanear a política de seus corruptos.

O caso diz respeito a um vereador do município baiano de Nova Soure, tornado inelegível como punição por abuso de poder econômico e compra de votos em 2004. Na ocasião, estava em vigor a Lei Complementar 64/1990, que estabelecia três anos de inelegibilidade para delitos do gênero. A pena foi cumprida e o político pôde se candidatar nas eleições de 2008, conseguindo um novo mandato. Quando foi disputar as eleições de 2012, primeiro pleito em que passou a vigorar a Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010, o vereador teve o registro indeferido pelo Tribunal Superior Eleitoral. O argumento era que a punição para casos como o dele não era mais de três anos, e sim de oito anos, como estabelecia a nova legislação. Com isso, o TSE considerou que o político ainda tinha contas a acertar com a Justiça, embora seu caso já tivesse transitado em julgado, e a pena de inelegibilidade, devidamente cumprida.

O caso foi parar no Supremo, que não deveria hesitar em reverter a esdrúxula decisão do TSE, por se tratar de clara afronta aos princípios do trânsito em julgado e da irretroatividade das leis. Mas não foi o que aconteceu. Por 6 votos a 5, o Supremo entendeu que, sim, à luz da Lei da Ficha Limpa, todos os condenados, em qualquer época, terão de cumprir oito anos de inelegibilidade antes de pleitearem candidaturas.

Em um dos votos vencedores na ocasião, o ministro Luiz Fux argumentou que os candidatos eventualmente barrados não estão a sofrer sanção penal, e sim, simplesmente, não cumprem os critérios de elegibilidade – que, segundo seu entendimento, podem ser retroativos à lei que os criou.

Para tentar minorar os efeitos de tão estapafúrdio entendimento, o ministro Ricardo Lewandowski propôs que a aplicação da norma fosse válida somente para a análise do registro de candidaturas para a eleição deste ano. Seu argumento nem era propriamente de caráter legal, mas prático: a retroatividade atingiria o mandato de ao menos 24 prefeitos e de um número ainda desconhecido de deputados estaduais e vereadores eleitos, obrigando a realização de novas eleições, no caso dos cargos majoritários, e afetando a totalização dos votos para efeito de quociente eleitoral, que determina o número de vagas de cada partido no Legislativo.

Nada disso foi levado em conta na nova decisão do Supremo. “Essa proposta [do ministro Lewandowski] anula o resultado do julgamento, anula o julgamento e desdiz o que nós julgamos”, afirmou o ministro Luiz Fux, que preside o TSE.

Ora, se o julgamento anterior incorreu em erro de interpretação e aviltou a Constituição, como está claro, seria imperativo voltar atrás e desfazer aquele equívoco. Mas o Supremo preferiu manter sua decisão, ignorando uma proteção básica do cidadão contra o arbítrio das autoridades.

Essa proteção é cristalina: não pode ser negada àquele que comete um crime e cumpre a pena prevista na lei a restituição de seus direitos no prazo estabelecido pela sentença. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, a Justiça não pode ser “uma corrida de obstáculos em que os obstáculos são móveis”, ou seja, o punido pela lei de sua época não pode ser punido também por leis futuras. A decisão do Supremo a respeito da Ficha Limpa é uma admissão de que, em certos casos, não há trânsito em julgado, isto é, não há decisão judicial final, pois toda sentença pode vir a ser reformada em face de uma nova lei. Somente uma exotérica hermenêutica, calçada no desejo febril de acabar com a corrupção na política e que não encontra respaldo nem na própria Lei da Ficha Limpa, explica a naturalidade com que o Supremo relativizou um direito fundamental.