terça-feira, abril 28, 2020

Por que motivo devo salvar um jovem delinquente e abandonar um velho exemplar? - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 28/04

O problema do pensamento utilitarista é que ele é assaz flexível


Quando os recursos são escassos, quem deve receber tratamento intensivo durante a Covid-19? A pergunta, que habitava os livros de filosofia moral, passou a ocupar os cálculos médicos em todo o mundo.

Devemos salvar os jovens e sacrificar os velhos?

Devemos salvar os saudáveis e abandonar os doentes?

Nada é assim tão fácil. Mas, quando o desespero aperta, o cálculo utilitarista é a primeira arma.

Na Itália, no meio de uma inimaginável catástrofe, doentes com mais de 60 anos não foram, digamos, “prioritários”.

Existem outros critérios. No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence publicou um guia em que distribui as potenciais vítimas em nove níveis.

No primeiro nível estão os “very fit”, gente atlética. No último estão os doentes terminais, o que permite imaginar que, em caso de necessidade, eles serão os primeiros a cumprir o seu dever para com a sociedade.

Quando olhei para a tabela, tentei me situar na cadeia alimentar. Honestidade? Quando a pandemia começou, era um caso típico de nível dois (“well”, sem doenças crônicas, excetuando as mentais).

Hoje, com mais uns quilos e uma sensação de atrofia geral, estou no três (“managing well”), já a espreitar o quatro (“vulnerable”).

Cuidado, Coutinho. A partir do nível cinco (“moderately frail”), entram os cálculos utilitaristas em jogo.

Longe de mim criticar esses cálculos. Pelo contrário: agradeço a todos os santos não estar na linha de frente, a calcular a vida dos outros. Embora, aqui do meu canto, a pergunta seja inevitável: será possível calcular a vida dos outros?

Entendo a lógica utilitarista: garantir a maior felicidade para o maior número significa que gente jovem e saudável terá mais anos de vida do que um velho rezinga com coração preguiçoso. Como dizem os lusos, não vamos desperdiçar cera com tão ruim defunto.

O problema do pensamento utilitarista é que ele é assaz flexível. Serve para medir jovens contra velhos. Mas também pode ser aplicado a pobres e ricos.

Se a ideia luminosa é maximizar a felicidade do maior número, por que não escolher salvar um cidadão rico, que contribui para a comunidade gerando empregos e pagando impostos, sacrificando um cidadão pobre, que é apenas um encargo para todos?

Mas o problema do pensamento utilitarista não está apenas na possibilidade de gerar situações moralmente repulsivas como essa. O utilitarismo tende a ser cego para questões intangíveis, que não são facilmente mensuráveis.

Retorno ao hospital. Retorno ao jovem e ao velho. Por que motivo devo salvar um jovem com um historial de delinquência e abandonar um velho com uma conduta exemplar?

E se o velho em questão tiver família que depende dele, ao contrário do jovem? E se o velho for médico, artigo raro em situação de pandemia? E se for um grande artista?

A idade não encerra o debate. O valor moral ou intelectual de uma pessoa pode ser mais importante do que o ano em que ela nasceu.

Já sei, já sei: existe uma forma aparentemente neutra de fazer escolhas trágicas. Familiares médicos, confrontados com as minhas divagações, usaram a bomba atômica: devemos dar prioridade a quem tem mais hipótese de sobrevivência. Ponto final.

Não interessa se é jovem ou velho, criminoso ou santo, analfabeto ou sábio. É o corpo que manda.
Esmagado com tanta sapiência, desisti: como negar esse determinismo do corpo?

Bom, talvez lembrando que, no mundo real, a escolha não é entre corpos saudáveis e corpos putrefatos.

Exemplo: dias atrás, informava o Guardian que, no Reino Unido, ventiladores que estavam sendo usados por pacientes estáveis e até com ligeiras melhorias foram removidos para socorrerem outros doentes com probabilidades de sobrevivência maiores.

Eis um caso em que os médicos trocaram provas tangíveis de progresso por uma probabilidade teórica de sucesso.

Repito: agradeço a todos os santos não estar na linha de frente para fazer essas escolhas. Porque elas são agônicas, trágicas e, ao contrário do que afirmam os utilitaristas, incomensuráveis. Os valores em confronto podem ser tão radicalmente distintos que não há uma solução mágica para o dilema.

Da minha parte, tudo o que posso fazer é começar uma dieta, experimentar a esteira elétrica e tentar voltar ao nível dois. Meu objetivo é tornar mais difícil a escolha difícil dos médicos.


João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Um Plano ‘Marshall’ que divide opiniões - FRANCISCO GÓES

Valor Econômico - 28/04

Programa Pró-Brasil aprofunda debate sobre uso de recursos públicos para investimento em infraestrutura



O debate sobre o uso de recursos públicos para obras de infraestrutura no pós-pandemia ganhou força com o lançamento do programa Pró-Brasil, coordenado pela Casa Civil da Presidência, na semana passada. Sob o apelido de Plano Marshall, em referência ao apoio à reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra, o programa é tido, pelas alas política e militar do governo, como instrumento importante na recuperação da economia. Mas a iniciativa vem sendo alvo do bombardeio de economistas e da própria área econômica, liderada pelo ministro Paulo Guedes, pelo potencial destrutivo das contas públicas em momento em que os gastos estão concentrados no combate ao coronavírus e seus efeitos.

Embora seja desejável planejar investimentos setoriais para permitir aos investidores, por exemplo, calcular a taxa interna de retorno, há ceticismo entre economistas que seja possível tirar do papel número considerável de projetos em curto espaço de tempo. “Achar que o investimento em infraestrutura vai ser a base para a recuperação pós-pandemia, no contexto institucional do Brasil, esquece”, diz um economista.

A crítica faz referência à dificuldade do Brasil de executar obras no prazo e no custo originais ou, o que é pior, deixá-las incompletas por anos ou décadas a fio. Essa tradição, da qual ninguém pode se orgulhar, se explica por falta de planejamento, pelo desenho mal feito de concessões de obras públicas, por lacunas regulatórias e pela falta de bons projetos de engenharia. O Pró-Brasil prevê aportes de recursos públicos de R$ 30 bilhões até 2022 e a criação de 1 milhão de empregos no período.

Assim que foi apresentado, o programa expôs divergências entre um pensamento mais intervencionista, representado por políticos e militares do Planalto, e a ala liberal, comandada por Guedes. A área econômica do governo tem chamado a atenção para a necessidade de que gastos públicos que vão além do combate à pandemia respeitem as regras fiscais, entre as quais está o chamado teto de gastos, que limita as despesas não financeiras da União à inflação do ano anterior.

O economista Fabio Giambiagi diz que investimentos de longo prazo, como é o caso dos em infraestrutura, dependem de uma taxa de juros também longa, que subiu. Essa taxa, acrescenta, depende da percepção de solvência do setor público, da dívida pública, que é afetada em casos de “contabilidade criativa”. O termo, também chamado de “pedalada”, ficou conhecido do público no governo de Dilma Rousseff e se refere a operações que buscam garantir um ganho artificial para o resultado primário das contas públicas.

Em 2019, Gambiagi e Guilherme Tinoco, ambos economistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), publicaram artigo no qual defendiam a revisão do teto do gasto público para preservar a capacidade do Estado de investir, e executar políticas públicas, sem deixar de lado o compromisso com a sustentabilidade fiscal. A proposta, hoje sepultada, foi feita em contexto muito diferente do atual, logo depois da aprovação da reforma da Previdência, que teve como um dos artífices o agora secretário do Desenvolvimento Regional do governo Bolsonaro, Rogério Marinho. Menos de um ano depois, Guedes e Marinho estão aparentemente rompidos, pois o ministro da Economia considera o deputado potiguar um dos mentores do Pró-Brasil, que aumenta os gastos públicos.

Um economista que participou do governo de Michel Temer entende, porém, que faz sentido promover um aumento no investimento público em infraestrutura, cujo retorno se dá pela ótica social. Já o investimento privado no setor olha o binômio risco-retorno. O problema, reconhece o técnico, é que não há espaço no Orçamento para mais despesas, o que vai levar a ampliar o déficit público. Mas isso não seria necessariamente um problema, na sua visão: “O custo-benefício para fazer obras com recursos públicos nunca foi tão barato”, argumenta. Na visão dele, não estaria se falando de “muito” dinheiro dada a baixa capacidade do Estado de executar os projetos de infraestrutura a cada exercício fiscal.

“As coisas demoram a acontecer no Brasil”, afirmou. Um exemplo dessa situação, segundo outro economista, é que as primeiras concessões do governo Bolsonaro começaram a ser preparadas na gestão Temer. A visão desses economistas é que o investimento privado em infraestrutura é pouco plausível agora e os desembolsos em concessões existentes serão unicamente os programados, com risco, inclusive, de prorrogação por causa dos efeitos da covid-19.

O BNDES tem em carteira projetos que somam R$ 188 bilhões (ver tabela) em investimentos, dos quais R$ 70 bilhões podem ser realizados em cinco anos, diz Fabio Abrahão, diretor de infraestrutura, concessões e PPPs do banco. São empreendimentos novos, em fase de modelagem, que vão estar prontos para ir a mercado até 2022. A participação do banco no financiamento dos projetos vai variar dependendo do ativo e do setor, diz Abrahão. O objetivo é envolver cada vez mais os bancos privados nas operações. “Se o BNDES, por meio de boa estruturação, conseguir emprestar menos, mas atraindo outros [bancos], vamos conseguir viabilizar mais projetos.”

Trocando de pele - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 28/04

Bolsonarismo já se movia para a ruptura em tempos de paz


Sob regência da mentalidade autoritária e crispado pelo espírito do tempo lavajatista, também autoritário, a que Sergio Moro dá materialidade, o Brasil está em depressão política profunda desde, pelo menos, 2013; doença de que Jair Bolsonaro, a ascensão da revolução reacionária bolsonarista, é a mais grave infecção.

Infecção, um projeto de poder autocrático, que se vale da linguagem totalitária, que enfraquece as imunidades do organismo institucional, que progride disparando estímulos musculares contraditórios, desequilibrantes, atrofiantes, que se espalha induzindo choques entre órgãos, que se implanta produzindo inimigos artificiais, pequenas e frequentes convulsões, transformando o sangue — as gentes daquele sistema — em elemento hostil ao corpo que lhe dá circulação, até que a engrenagem, corrompida pela exaustão, sucumba, submetida pelo vírus, submissa à doença.

O bolsonarismo é isso. Já se movia para a ruptura em tempos de paz. A pandemia apenas faz acelerar o processo destrutivo em que se enraíza seu projeto de poder. A Covid-19 é oportunidade; assim como se Bolsonaro, o núcleo difusor das pestes dentro da peste, instrumentalizasse a responsabilidade alheia para dar vazão a seu intento autocrático. A aposta em que seus arreganhos autoritários estarão protegidos— enquanto durar a pandemia — pelo receio ponderado de que a deflagração de processos contra si resultasse no trauma da ingovernabilidade em meio aos já tantos traumas da crise atual e àqueles derivados das crises dentro da crise forjadas pelo presidente.

Bolsonaro compreendeu que o estado de exceção ora mobilizado o blinda para que radicalize mais intensa e rapidamente. Identificando essa janela, explora o tempo que ganhou para cooptar os apoios que (crê) o defenderão adiante no Parlamento, intensificar o ritmo dos conflitos que promove e avançar sobre a institucionalidade de um Brasil anestesiado.

Está trocando de pele — aprofundando incertezas — em plena pandemia. Surpreendente seria que se comportasse como agente estabilizador. A peste é oportunidade — reforço. E ele adianta suas peças. Talvez finalmente inaugure, ainda antes de concluído o 16º mês desde que empossado, o verdadeiro governo Bolsonaro — um que deixaria o governo narrativo para trás, esse, engana-trouxa, que se sustentava em mitos inconciliáveis, os do lavajatismo e do guedismo, com a mitologia bolsonarista.

Então, em pouco mais de mês, a pandemia poderosamente entre nós, vimos o presidente debulhar a persona eleitoral precária que compusera para si. Já não há mais, pós-Mandetta, a fantasia do ministério técnico. Tampouco a do combate incondicional à corrupção; depois de escancarado o ímpeto bolsonarista por incorporar a Polícia Federal e ante o fato de o critério para a escolha dos que comandarão Ministério da Justiça e PF ser — aula magna de patrimonialismo — a condição de amigo da família.

Bolsonaro faz seu jogo. Deixa pelo caminho a pele meramente narrativa que o elegeu. Não o faz sem fundamento no calor das redes. A aposta é alta. Moro não é Mandetta. Tem base social sólida, fincada na classe média, o mesmo solo em que o próprio presidente firma seus pilares, entre os quais o da anticorrupção — uma coluna bolsonarista mais recente, de ocasião mesmo, sol para o qual o girassol publicitário que é Bolsonaro se orientou ao ler para onde ia a demanda jacobinista da sociedade. É esse o pilar que o presidente abala ao abrir mão de Robespierre. Repito: não o faz sem cálculo; sem indicativos de que possa equilibrar o prejuízo com alguma conquista territorial.

É esta a equação que já torna prescindível outro pilar bolsonarista de ocasião, sem qualquer fundação orgânica, o guedista, escorado no terreno da elite: o de um governo reacionário, comandado por um populista, liberal na economia. Paulo Guedes está prestigiado — quer comunicar o desagravo de Bolsonaro ao ministro da Economia. O gato subiu no telhado —o que comunica a necessidade de fazer tal gesto.

O presidente nunca foi crente da fé liberal. Ao contrário. Se, porém, o santo lhe promete um milagre, e se essa promessa arrebanha os que podem reformar a igreja, por que não se mudar para o templo e colher o dízimo enquanto se espera — um pouco — pela graça? Vai que o santo entrega… Não entregou. E ainda veio a praga.

O presidente é Brasil Grande. Toma gosto por gastar. A empreitada de enfrentamento da Covid-19 deu o ensejo. Abriu a porteira. A política econômica desenvolvimentista vende um milagre bolsonarista e tem como principal vitrine um vigoroso auxílio à população pobre, inclusive no Nordeste, extrato dasociedade ao qual Bolsonaro nunca se voltou; mas que, segundo apontam pesquisas, em função da ajuda emergencial, o Bolsa-Família do Jair, ora segura a sua popularidade em patamar competitivo.

Bolsonaro troca de pele. E aposta em novo chão.

POR QUÊ? POR QUÊ? POR QUÊ? - ELIANE CANTANHÊDE

FOLHA DE SP - 28/04

A quem interessa derrubar portarias do Exército sobre armas e dobrar a munição de civis?


Não são mais apenas os próprios militares e a Polícia Federal que estranham a canetada do presidente Jair Bolsonaro derrubando três portarias do Exército sobre controle de armas de civis, como destacado na coluna “Fazendo água”, de sexta-feira. Agora, o MP quer explicações e a oposição inclui mais essa decisão do presidente nos pedidos de impeachment que se multiplicam. Bolsonaro vai empilhando, assim, a mesma pergunta: Por quê?

Por que a demissão do diretor-geral da PF agora, em meio ao caos na saúde, na economia, na política? Por que empurrar porta afora o ministro mais popular do governo? Por que bater de frente com o ministro da Saúde até demiti-lo na hora decisiva da pandemia? Por que confrontar a OMS, epidemiologistas e o mundo inteiro com as cenas patéticas e infantis contra o isolamento social? E por que, afinal, o presidente da República foi prestigiar manifestações pedindo golpe militar? Justamente diante do Quartel-General do Exército?

Assim como no pronunciamento de sexta-feira ele não respondeu objetivamente a nenhuma das acusações que o ex-juiz e agora também ex-ministro Sérgio Moro acabara de lhe fazer, Bolsonaro não responde, não explica e não dá o sentido de suas ações mais absurdas. Por isso, ele, seu governo e o País estão envoltos numa nuvem de incertezas.

É aí que entra a decisão voluntariosa e mal (ou não) explicada de suspender – aliás, pelo Twitter – as três portarias do Exército. Além de, cinco dias depois, também como registrado na coluna de sexta-feira, mais do que dobrar as munições de cada arma de civis por mês. Por que derrubar as portarias? E por que aumentar de 200 para 550 as munições?

Bolsonaro e o governo não respondem, mas militares do Exército, policiais federais e assessores do Ministério da Justiça não gostaram, juristas e especialistas em Defesa acharam estranho. E todos eles dizem exatamente, claramente, o “porquê”: porque, na opinião deles, quem saiu no lucro, lépidos e fagueiros, foram o crime organizado e as milícias. Mais armas sem controle de entrada, sem rastreamento, sem fiscalização e com muito, mais muito mais munição legalmente permitida… A quem interessa?

É claro que Bolsonaro nunca escondeu, e até fez disso discurso prioritário de campanha, seu amor e o amor dos filhos pelas armas e que muitos neste país praticam tiro desportivo ou são colecionadores. Mas – e aí vem novamente o por quê? – derrubar as três portarias do Exército foi só para agradá-los? E mais do que dobrar a munição mensal por arma também?

A procuradora Raquel Branquinho alega que o presidente “viola a Constituição” e faz uma referência particular à base da família Bolsonaro. “A cidade do Rio de Janeiro é a face mais visível dessa ausência de efetivo controle no ingresso de armamento no País”, diz ela em ofício ao qual o repórter Patrik Camporez teve acesso e que foi manchete do Estado na segunda-feira, 27.

Pois é… Rio, armas, controle, munição… Isso tudo vai se embolando com a demissão de Valeixo da PF, a queda de Moro e as acusações que o ministro fez ao sair, de que o presidente queria ter acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. E ele, o ministro, também citou especificamente o Rio, neste caso, o Estado do Rio.

Moro, Mandetta e Valeixo saem por uma porta do governo e o Centrão entra pela outra, trazendo, entre outros, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto. Isolado no Supremo e na cúpula do Congresso, perdendo apoios no empresariado e nas finanças e enfrentando uma guerra inglória na internet com Moro, Bolsonaro corre o risco de se apoiar só em dois pilares: os militares e os líderes do Centrão, que não têm nada a ver. Quem diria? Aliás, por quê?

A calmaria - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 28/04

“A preocupação de Bolsonaro era acabar com os boatos de que Paulo Guedes estaria desembarcando da equipe, em razão das divergências com os militares”


O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), jogou um balde de água fria nas articulações para dar início a um processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o que depende dele. Uma de suas atribuições é aceitar ou arquivar, monocraticamente, os pedidos de impeachment. “Processos de impeachment e possibilidade de CPIs precisam ser pensadas e refletidas com muito cuidado. Acredito que o papel da Câmara dos Deputados neste momento, nos próximos dias, é que a gente volte a debater, de forma específica, a questão do enfrentamento ao coronavírus”, afirmou, em entrevista coletiva na Câmara. Nesta semana, acaba o seu prazo de 10 dias para informar ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello sobre os pedidos que já chegaram à Câmara, que acusam Bolsonaro de crime de responsabilidade, tanto na demissão de Moro como na postura diante da epidemia de coronavírus.

A comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) para investigar as denúncias do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre tentativas de interferências indevidas de Bolsonaro na Polícia Federal (PF) está no telhado. Segundo o ex-ministro, Bolsonaro queria informações sobre inquéritos policiais e relatórios de inteligência, o que não foi aceito pelo ex-juiz da Lava-Jato, que se demitiu da pasta fazendo muito barulho. Nos bastidores da Câmara, a coleta de assinaturas para a instalação da CPMI já foi iniciada, mas há resistências de parte do Centrão e dos deputados bolsonaristas. Maia mantém distância regulamentar da mobilização, não quer tomar partido.

Bolsonaro, ontem, também tratou de esvaziar a crise. Continua decidido a nomear o delegado Alexandre Ramagem, atual diretor da Agência Brasileira de Informações (Abin), para a diretoria-geral da Polícia Federal, no lugar de Maurício Valeixo, que foi exonerado à revelia de Moro. Entretanto, a indicação do ministro Jorge Oliveira, secretário-geral da Presidência, para o cargo de ministro da Justiça também estava no telhado. A mobilização contra as duas indicações, devido a ligações pessoais de ambos com os filhos do presidente da República, parece ter levado Bolsonaro a avaliar melhor a situação. Oliveira também estaria reticente sobre mudar de posto. Não será surpresa se Bolsonaro indicar outro nome para a pasta, com maior trânsito junto aos tribunais superiores, no caso o ministro André Mendonça, da Advocacia-geral da União (AGU)

A preocupação de Bolsonaro era acabar com os boatos de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, estaria desembarcando da equipe, em razão das divergências com os militares do Palácio do Planalto, que apresentaram um plano de retomada da economia que não passou por seu crivo. Em entrevista coletiva, Bolsonaro garantiu que Guedes continua dando a linha da política econômica para todo o governo. “Acabei mais uma reunião, aqui, tratando de economia. E o homem que decide a economia no Brasil é um só: chama-se Paulo Guedes. Ele nos dá o norte, nos dá recomendações e o que nós realmente devemos seguir”, disse.

Centrão

Ao lado de Bolsonaro, Guedes afirmou que o governo segue firme em sua política econômica de responsabilidade fiscal e garantiu que os gastos públicos extraordinários feitos em decorrência da crise do coronavírus são uma “exceção” na condução da política econômica. “Queremos reafirmar a todos que acreditam na política econômica que ela segue, é a mesma política econômica”, ressaltou Guedes. Estavam na entrevista o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, um dos autores do Plano Pró-Brasil; o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que muitos veem como alternativa para a Economia, e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que sofre um ataque especulativo da ala ideológica do governo e dos ruralistas ligados ao Centrão, que a acusam de ser aliada da China.

As negociações para articular uma base mais robusta para Bolsonaro, a cargo do ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, vão de vento em popa. Roberto Jefferson (PTB), Valdemar da Costa Neto (PR), Ciro Nogueira (PP) e Gilberto Kassab (PSD), os caciques do Centrão, querem garantir a presidência da Câmara, na sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ), para o deputado Arthur Lira (PP-AL), com apoio do Palácio do Planalto. O Banco do Nordeste, a Funasa, o DNOS, o FNDE e o Porto de Santos estão no balaio do “é dando que se recebe”, mas Kassab pleiteia também o Ministério da Agricultura. Em troca, Bolsonaro estaria blindado contra qualquer tentativa de impeachment.

Ou seja, a operação política do Palácio do Planalto avançou no Congresso, amainando a crise política. A postura cautelosa de Rodrigo Maia e o silêncio do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que estão jogando juntos, refletem isso. Em contraste com a calmaria política, porém, a epidemia de coronavírus avança, com o ministro da Saúde, Nelson Teich, ainda “estudando os dados” de sua propagação, enquanto o novo secretário executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, critica a imprensa (que não levaria em conta a diversidade do país) e fala em “planejamento centralizado” num sistema tripartite — União, estados e municípios —, onde qualquer planejamento bem-sucedido precisa ser situacional e participativo. Já são 4.543 mortes, 338 mortes a mais do que no domingo, com 66.501 casos confirmados, ou seja, 4.613 casos a mais. Foram mais 1.802 mortes em apenas uma semana, e o general reclama da imprensa porque noticia o avanço da epidemia.

O governo claudicante - ANDREA JUBÉ

Valor Econômico - 28/04

Disputa na PF pode desencadear guerra de vazamentos


Quando o governo Bolsonaro começou, gerando altas expectativas sobre o combate à corrupção e às reformas estruturantes, predominava a percepção de que se sustentava sobre três pilares: os dois superministros Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia), e o núcleo militar.

Passados 16 meses, o primeiro pilar ruiu com a saída de Moro, símbolo da Lava-Jato, enquanto os outros dois entraram em processo de erosão.

Com o governo agora claudicante, Bolsonaro tenta se equilibrar sobre uma base tão sólida como areia movediça, formada pelo Centrão e um bloco de deputados sem partido, exilados no PSL, que aguardam o Aliança pelo Brasil.

Se o governo coxeia, Sergio Moro caiu de pé, como revelou a recente pesquisa digital da Consultoria Atlas Político, mostrando que sua popularidade continua mais alta que a do presidente.

O ex-ministro saiu atirando, guardou munição para o futuro e levou com ele uma ala expressiva da Polícia Federal, que não abdicará do combate à corrupção e não aceitará o risco de esvaziamento da Lava-Jato.

Esse recado foi transmitido pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), em carta aberta ao presidente Jair Bolsonaro. A entidade alertou que a exoneração de Maurício Valeixo e a demissão de Moro instalaram uma “crise de confiança”, e por isso, o próximo diretor-geral terá de demonstrar que assumirá para cumprir “missão politica”.

O pule de dez para o lugar de Valeixo, como já divulgado, é o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, que tem laços de amizade com Bolsonaro e seus filhos. Confrontado na rede social sobre essa relação, Bolsonaro desdenhou: “e daí?”

O desdém é arriscado como um salto de paraquedas. A associação dos delegados recordou que o último comandante da PF que assumiu o órgão em contexto semelhante “teve um período de gestão muito curto”. Escolha pessoal do então presidente Michel Temer - alvo de investigações da PF - o delegado Fernando Segóvia passou três meses no cargo.

A entidade também explicou ao presidente que as atividades da PF são sigilosas, somente os responsáveis em promovê-las acessam os documentos, e o mesmo se aplica aos relatórios de inteligência. Mas ontem Bolsonaro discordou da associação no Twitter: “A Polícia Federal... é parte do Sistema Brasileiro de Inteligência, que alimenta com informações o Presidente da República para tomada de decisões estratégicas”.

A se consumar a nomeação de Ramagem em meio à “crise de confiança”, pode desencadear uma disputa interna na Polícia Federal entre lavajatistas e bolsonaristas, com o risco de abalar ainda mais o governo, emparedado por três crises graves simultâneas: política, econômica e sanitária. A pandemia da covid-19 já fulminou quase cinco mil brasileiros - muitos sem acesso à infraestrutura, como respiradores ou leitos de UTI, que poderiam poupar vidas.

O embate interno na PF pode provocar uma guerra de vazamentos na imprensa, com a exposição de informações sigilosas que podem prejudicar o governo ou seus antagonistas. O primeiro tiro foi disparado: um dia após a saída de Moro, a imprensa veiculou a informação de que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) seria o “mentor” do esquema de notícias falsas impulsionadas nas redes sociais contra adversários do governo, segundo investigação da Polícia Federal no inquérito das Fake News em andamento no Supremo Tribunal Federal, sob a guarida do ministro Alexandre de Moraes.

Impossível inferir a origem do vazamento, mas foi um tiro de advertência. A presença de Carlos como investigado nesse inquérito, até então, era uma suposição. Há farto material de conteúdo político explosivo e suscetível de vazamentos sob a guarda da PF, do Ministério Público e do STF.

A técnica de vazamentos estratégicos na imprensa marcou a Lava-Jato e era considerada uma arma para conquistar o apoio da opinião pública. Moro já registrou que a tática, empregada na Operação Mãos Limpas, serviu a um propósito útil. “O constante fluxo de revelações manteve o interesse do publico elevado e os lideres partidários na defensiva”, argumentou, em artigo publicado em 2004.
Bolsonaro está convencido de que o inquérito das Fake News é artilharia do STF para abreviar o seu mandato. A tese não se confirma, mas o cerco judicial cresce em torno do governo.

Em uma semana, abriram-se duas novas investigações que, direta ou indiretamente, miram o presidente: a primeira, para apurar quem organizou e financiou os atos antidemocráticos do último dia 19, de que Bolsonaro participou. E a segunda, relativa às denúncias de Sergio Moro, de que Bolsonaro tentou interferir politicamente na PF. Essa investigação é considerada sensível para ambos os lados: se o ex-ministro não comprovar as acusações, pode responder por crime de denunciação caluniosa.

Em meio ao confronto com a PF, Bolsonaro agiu rápido para conter a escalada dos rumores de perderia outra perna do governo, com a iminente saída de Paulo Guedes. O “Posto Ipiranga” foi escanteado e desafiado diante do anúncio do Plano Pró-Brasil, apoiado pelo núcleo militar, que colocou em xeque o teto dos gastos públicos e o compromisso de ajuste fiscal.

“O homem que decide a economia é um só: chama-se Paulo Guedes”, ressaltou Bolsonaro ontem logo pela manhã, na porta do Alvorada. Foi a segunda vez em dois meses que Bolsonaro teve que sair em defesa de Guedes. Tanto empenho é alarmante por se tratar de um dos pilares de sustentação do governo.

Em fevereiro, o presidente disse ter a convicção de que Guedes fica com ele até o fim. “O Paulo Guedes não pediu para sair. Aliás, eu tenho certeza que, assim como ele é um dos poucos que conheci antes das eleições, ele vai continuar conosco até o último dia”.

Na outra ponta, emerge a ala militar, cada vez mais expressiva no primeiro escalão. Depois da saída de Moro, pelo menos um ministro do núcleo militar palaciano telefonou para alguns jornalistas para assegurar que os militares não abandonarão Bolsonaro. Estes auxiliares podem não sair, mas há representantes da cúpula das Forças Armadas que nunca entraram no governo, não o apoiam cegamente e não dão sinais de mudar de ideia.

Em suma, sem Moro, Bolsonaro fica sem uma das pernas do tripé original de sustentação do governo, mas pode perfeitamente caminhar com duas. Mas se perder Paulo Guedes, o governo Bolsonaro terá de pular como um saci.

Na pandemia e sem plano - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 28/04

Guedes anunciou que tudo segue como antes


Há quatro semanas, Jair Bolsonaro recebeu um esboço de plano para criação de 1.008.635 empregos nos próximos dois anos. Encomendara o projeto a assessores, militares na reserva, e aos ex-deputados Rogério Marinho (PSDB-RN), ministro do Desenvolvimento, e Onyx Lorenzoni (DEM-RS), da Cidadania.

Bolsonaro entregou o programa ao chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto. Atravessaria os próximos dois anos em campanha pela reeleição, inaugurando obras com 42 mil novos empregos a cada mês. A pandemia já delineava um cenário tétrico, com 200 mortes, mas ele se mantinha no modo ignorância desdenhosa: “Outros vírus já mataram muito mais”. Já decidira demitir Luiz Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça).

Marinho e Onyx estavam ajudando-o a abrir as portas do governo a lideranças políticas notórias pelo clientelismo. Se reuniram com Paulo Guedes, da Economia. Sobraram divergências e ressentimentos, com excesso de acidez entre Guedes e Marinho. A “agenda única” escanteava Guedes, e invertia sua proposta liberal, impondo protagonismo ao Estado na saída da crise. Era uma rasteira no “Posto Ipiranga”, dada pelo presidente, sob o bastão de comando ao chefe da Casa Civil.

Guedes dissimulou em público com a passividade de monge budista. Assistiu, quieto, ao presidente comandar uma sessão de slides sobre 65 obras rodoviárias, 42 aquaviárias, 32 aeroportuárias e sete ferroviárias. No silêncio efervesceram conversas sobre sua demissão.

Ontem, Bolsonaro recuou. Guedes agradeceu-lhe a “confiança” e anunciou que tudo segue como antes. O presidente já colecionava 24 pedidos de impeachment, dois inquéritos criminais no Supremo e a caminho de um novo, por improbidade. Em três semanas o número de mortos pelo vírus subiu de 200 para mais de mais de 4.500 — mais de 2.150% no registro oficial. Ainda não há indício de que o governo tenha um plano, além do pandemônio político criado em plena pandemia.


O bolsonarismo está nu - RENIER BRAGON

FOLHA DE SP - 28/04

Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro

O bolsonarismo raiz, fanatizado, sempre tentou esconder seu verdadeiro rosto. Essa gente que tem aversão a pobres, exala ódio, ignorância, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, autoritarismo e um sem-fim de ignomínias sabia que não podia sair ao sol com sua pavorosa face sem algum manto de cobertura.

Com isso, pilantras os mais variados, que não pensariam duas vezes em embolsar o troco a mais no caixa de supermercado, passaram a propagar a sua arenga anticorrupção.

Todos de braços dados no conhecido último refúgio dos canalhas, em uma orgia verde e amarela de uma devoção tão incontida à pátria que só lhes faltava deitar ao chão e enfiar torrões de terra goela adentro. E, nesse teatro, os canastrões da própria vida buscavam convencer o mundo e a si mesmos da sua nobreza de sentimentos.

Mas agora a pornografia está explícita. Bolsonaro está nu. E o bolsonarismo terá que defender seu asqueroso modo de pensar a vida sem a desculpa esfarrapada de que quer um Brasil livre de corrupção.

A mamata acabou. Não necessariamente pela saída de Sergio Moro. O xerife da Lava Jato tem sérias contas a prestar com a história por ter pulado na nau bolsonarista logo após a eleição, quando nenhum adulto com mais de três neurônios poderia alegar inocência sobre quem era Jair Bolsonaro e o que ele representava.

Refiro-me especialmente a dois outros fatores: o primeiro, a aliança que o capitão busca agora com o centrão, que há anos ele tratou como coisa mais suja do que pão que o diabo amassou com o rabo. Velha política corrupta. Agora querem ser um só. Saem os bonecões infláveis de Moro super-homem e entram os de Roberto Jefferson, o vingador. O segundo, a escancarada tentativa de manietar a Polícia Federal em nome de interesses inconfessáveis.

Outra vez recorro a João Montanaro e sua charge em que Scooby-Doo e sua turma revelam a real face do presidente. Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro. Todos sabiam disso.
Charge de João Montanaro de 27.abr.2020.

Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Presidencialismo inepto - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 28/04

Os custos do regime presidencialista


A dificuldade que o presidente Bolsonaro encontrou para nomear o substituto de Sérgio Moro no ministério da Justiça é mais uma demonstração do que o cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, chama de “degradação do presidencialismo”. O próprio presidente admitiu que lhe faltava “tinta na caneta”, o que significa que estava bloqueado por circunstâncias políticas que o impediam de nomear seus preferidos.

Temia que o Judiciário ou o Congresso barrassem a nomeação de Jorge Oliveira para o ministério e do delegado Ramagem para a Polícia Federal, por serem amigos de seus filhos, que são objeto de investigações.

Os presidentes eleitos a partir de Dilma Rousseff em 2014, passando por Michel Temer e chegando até Bolsonaro hoje encontraram dificuldades para governar diante de crises com o Legislativo e o Judiciário.

Cercados por processos de impeachment, os dois primeiros viram seus poderes serem desidratados por decisões como a de fevereiro de 2016, quando Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, em decisão monocrática, a nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil.

Em janeiro de 2018, o juiz Leonardo da Costa Couceiro, titular em exercício da 4ª Vara Federal de Niterói, decidiu suspender a nomeação de Deputada Federal Cristiane Brasil para chefiar o Ministério do Trabalho de Temer, decisão avalizada pelo STF.

Octavio Amorim Neto lembra que o presidencialismo é um regime que investe o Poder Executivo na “pessoa” do Presidente da República, que é, simultaneamente, chefe de Estado e de governo. “Donde decorre que atributos da personalidade presidencial são fatores muito relevantes para o bom funcionamento do presidencialismo”.

Ministros precisam da confiança presidencial – não da parlamentar – para serem nomeados e mantidos nos seus cargos, gerando grande potencial de conflito entre Legislativo e Executivo, “sobretudo quando o presidente reivindica para si uma legitimidade superior à do Poder Legislativo por ter sido sufragado pela maioria popular, como alertou o grande politólogo espanhol Juan Linz”.

Quanto aos atributos da personalidade presidencial, Octavio Amorim Neto lembra que em quatro das oito eleições presidenciais diretas realizadas desde 1989, “escolheram-se pessoas ineptas para o exercício vertical e horizontal do Poder Executivo: Fernando Collor em 1989, Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e Jair Bolsonaro em 2018”.

No Brasil, tivemos o impeachment de Collor e Dilma e tentativas de impedir Temer. Não apenas no Brasil isso ocorre, pois nos Estados Unidos, desde Nixon, que renunciou para não ser punido pelo Congresso, já tivemos tentativas de impeachment de Bill Clinton e recentemente de Trump.

Se o impeachment fosse tratado como um instrumento normal do presidencialismo democrático, sem essa carga golpista que carrega, seria a versão do voto de desconfiança do parlamentarismo, que não provoca crises institucionais graves.

Mas o cientista político Octavio Amorim Neto, mesmo reconhecendo que o uso do impeachment “começa a assemelhar-se ao voto de desconfiança no parlamentarismo”, considera que o recurso a esse procedimento continua a ser traumático pelas seguintes razões:

1) Porque significa contrariar a vontade popular expressa na eleição presidencial, o único pleito de base territorial exclusivamente nacional no Brasil (deputados e senadores têm base territorial estadual);

2) A suspensão do mandato presidencial é, simultaneamente, um processo jurídico e político, sendo, portanto, muito mais complicado do que um voto de desconfiança; e

3) Por conta do seu caráter complicado e da exigência de maioria qualificada de 2/3 para ser aprovado pelo Congresso, a destituição legal de um presidente implica a mobilização de um enorme e desgastante esforço político, o qual toma muito tempo.

Neste momento em que a principal ação do país deveria ser enfrentar a Covid-19, não é hora de entrarmos em nova crise institucional, como advertiu ontem, depois de dias de silêncio, o presidente da Câmara Rodrigo Maia.

Em suma, diz Octavio Amorim Neto, “o presidencialismo tem sido degradado pela frequente eleição de presidentes ineptos e pela ação direta do Legislativo e do Judiciário. Ou paramos de degradar nosso sistema de governo ou é melhor trocá-lo por outro”.

Estrutural e conjuntural - BERNARD APPY

O Estado de S. Paulo - 28/04

O momento de discutir o financiamento do custo fiscal da crise não é agora, na fase aguda da crise



O necessário aumento da atuação do governo durante a crise do coronavírus tem dado margem a diversas propostas de aumento da receita pública, voltadas a financiar o déficit resultante da elevação das despesas e da queda da arrecadação.

Algumas dessas propostas – como a criação de um empréstimo compulsório sobre as grandes empresas – são completamente inconsistentes. De um lado, porque não é hora de reduzir a liquidez das empresas, já muito afetadas pela crise. De outro, porque o governo consegue se financiar voluntariamente no mercado, não havendo razão para um financiamento compulsório.

Outras propostas – em especial projetos que buscam tornar o Imposto de Renda mais progressivo – podem até ser bem-intencionadas, mas estão muito mal desenhadas. Se aprovadas, quase certamente resultariam em distorções econômicas, maior litígio entre os contribuintes e o Fisco, além de deixar abertas várias brechas para sonegação.

O Brasil tem problemas sérios em seu sistema tributário, inclusive no Imposto de Renda, que resultam em iniquidades distributivas e em ineficiências econômicas que prejudicam o crescimento. Mas a solução para esses problemas precisa ser muito bem construída. Tentar resolver um problema fiscal conjuntural com medidas elaboradas às pressas visando a resolver um problema específico – a baixa progressividade do Imposto de Renda – quase que certamente resultará num sistema tributário ainda pior que o atual.

O momento de discutir o financiamento do custo fiscal da crise não é agora. No curto prazo, o financiamento tem de ser feito por meio do aumento do endividamento público. Passada a fase aguda da crise, aí, sim, é preciso definir como esse custo será equacionado, ou, mais precisamente, o que será necessário fazer para que a trajetória da dívida pública não seja explosiva no longo prazo.

Mas essa discussão tem de ser feita de forma ampla, contemplando não apenas medidas de aumento da arrecadação, mas também medidas de contenção do aumento de despesas. É preciso, sobretudo, separar de forma clara mudanças de caráter estrutural de medidas conjunturais.

Assim como é preciso evitar que medidas conjunturais de aumento de despesas decorrentes da crise se tornem permanentes, é preciso tomar muito cuidado para que o financiamento do custo da crise não comprometa o modelo brasileiro de tributação – até porque a melhora estrutural do sistema tributário brasileiro pode contribuir de forma decisiva para o financiamento da dívida pública.

Mudanças estruturais na tributação que tornem a economia mais eficiente contribuem para o equacionamento da crise fiscal, na medida em que o maior crescimento gera mais arrecadação, mesmo mantendo a carga tributária constante como proporção do PIB.

Mudanças estruturais que tornem o sistema tributário mais progressivo são importantes, pois, além de tornarem a tributação socialmente mais justa, sinalizam que é a parcela mais abastada da população que incorrerá com a maior parte do ônus do financiamento da crise.

Medidas estruturais de contenção de despesas são essenciais para que o aumento da arrecadação resultante do maior crescimento não se converta em maiores gastos públicos. Se forem bem desenhadas, tais medidas também podem contribuir para melhorar a distribuição de renda, focando o ajuste nas despesas que beneficiam a parcela mais rica da população e preservando as despesas que beneficiam os mais pobres.

Todas essas medidas já estavam na agenda antes da crise sanitária. A crise apenas as torna mais urgentes e necessárias.

Dependendo do custo fiscal da crise, é possível que tais mudanças não sejam suficientes para garantir o seu financiamento num prazo adequado. Neste caso, pode ser necessário recorrer a medidas conjunturais de aumento da arrecadação. Mas tais medidas deveriam ser temporárias e claramente separadas das mudanças estruturais necessárias para tornar o sistema tributário brasileiro mais justo e eficiente.

Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal

Em perigo, Bolsonaro prestigia Guedes – EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 28/04

Presidente decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro, seu fiador diante do mercado e trava contra um surto de pânico financeiro



Acuado por investigações e ameaçado por graves denúncias, o presidente Jair Bolsonaro decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro da Economia, Paulo Guedes, seu fiador diante do mercado e trava de segurança contra um surto de pânico financeiro. “O homem que decide economia no Brasil é um só, chama-se Paulo Guedes”, disse o presidente, ontem de manhã, na saída do Palácio da Alvorada. Ninguém pode dizer quanto tempo essa disposição vai durar. No fim de semana o ministro ainda era apontado por analistas políticos e por fontes do mercado como a provável bola da vez, depois da saída do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro.

Cinco dias antes, sem a presença de um único membro da equipe econômica, o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, havia lançado o plano de investimentos Pró-Brasil. “Nada está descartado”, respondeu o presidente, na ocasião, quando jornalistas quiseram saber se haveria afrouxamento do ajuste fiscal. O ministro Guedes e seus companheiros estavam sendo claramente desqualificados como condutores da política econômica. Em contrapartida, pareciam ganhar peso nas decisões econômicas o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

Uma nova crise política em poucos dias mudou o cenário. Ao tentar interferir na Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro perdeu o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro. Foi mais um lance custoso para a imagem presidencial, já prejudicada pela demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Nesses dois episódios o presidente deu prioridade a seus interesses privados – eleitorais e familiares. No primeiro, tentou subordinar a política da saúde ao objetivo de rápida abertura das atividades econômicas. O ministro Mandetta, mais alinhado aos critérios da Organização Mundial da Saúde, propunha política mais prudente. Seria necessário, segundo ele, programar cautelosamente, e de acordo com as condições de cada região, o abandono do isolamento social. A reativação mais veloz poderia obviamente servir aos interesses eleitorais do presidente, se nenhum desastre sanitário ocorresse. Mas Bolsonaro parece nunca ter levado a sério esse risco.

No segundo episódio, o presidente buscou acesso a investigações sobre pessoas próximas. Desde o ano passado ocorriam manobras semelhantes, sempre com tentativas de interferência em organismos envolvidos em investigações de pessoas próximas ao presidente, especialmente seus filhos.

O Pró-Brasil, lançado na semana passada, também poderia produzir ganhos eleitorais, se permitisse uma reativação sensível nos próximos dois anos. Haveria o risco, também menosprezado pelo presidente e por vários ministros, de efeitos desastrosos para os fundamentos da economia. O programa dependeria em boa parte de investimentos custeados pelo Tesouro, apesar da notória escassez de dinheiro nos cofres federais.

Não haveria como combinar essas despesas com o ajuste programado para o pós-pandemia. Diante da emergência, o governo relaxou a disciplina fiscal, para proteger a saúde e apoiar empresas e trabalhadores diante dos piores efeitos econômicos do coronavírus. Mais gastos e perda de receita produzirão um déficit primário (isto é, sem os juros) muito maior que o programado. A dívida pública também ultrapassará o nível planejado. Será essencial, portanto, segundo a equipe econômica, encerrar em 2020 o afrouxamento fiscal, típico de uma fase de calamidade, e logo retomar a austeridade.

De novo prestigiado como condutor da política econômica, o ministro Paulo Guedes voltou a afirmar, ontem, seu compromisso com a responsabilidade fiscal, embora evitando, diplomaticamente, desqualificar o Pró-Brasil. Acuado, o presidente precisa revalorizar seu Posto Ipiranga, o ministro Guedes, enquanto busca apoio do Centrão contra um possível processo de impeachment. Esse acordo com o Centrão pode ser duradouro. Previsões são mais difíceis no caso do Posto Ipiranga.

Assim que quebrarem, Estados devem mandar conta a Alcolumbre. Ele resolverá - REINALDO AZEVEDO

UOL - 28/04

Sabem o que há de errado com o plano de ajuda aos Estados aprovado pela Câmara? Nada! Paulo Guedes resolveu enroscar com ele por falta de imaginação — afinal, sabem como é, seu credo dito liberal tem de ser mantido... E Jair Bolsonaro se opõe porque está na sua cruzada contra Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Casa. O Planalto, então, decidiu apelar a Davi Alcolumbre.

O presidente do Senado (DEM-P) vai relator um projeto alternativo de socorro aos Estados. De quanto, não se sabe. Vai propor, por exemplo, o congelamento dos salários dos servidores federais, estaduais e municipais por 18 meses. Até aí, vá lá. A esmagadora maioria dos trabalhadores da iniciativa privada ou perdeu emprego ou teve salário reduzido. Em dias como os que vivemos, penso, no entanto, que isso caracteriza falta de foco. Mas é defensável.

O problema é a forma da reposição. Os números vão aparecendo ao sabor de quem faz a conta. Aqueles R$ 40 bilhões que Guedes dizia querer repassar aos Estados eram, na verdade, R$ 22 bilhões. Como se diz em Dois Córregos, não preenche nem a cova do dente. O governo acena com a reposição por quatro meses, não mais por três. Mas o valor ainda não está definido. Nem os critérios de distribuição.

A Câmara votou o texto mais objetivo possível: faz-se simplesmente a reposição segundo a arrecadação do ano passado. Incluindo renegociação de dívida com bancos estatais, calcula-se que custaria, em seis meses, R$ 89,5 bilhões. O governo faz contas mirabolantes por aí. Chegou a espalhar a bobagem de que a proposta da Câmara poderia custar R$ 280 bilhões.

Em 2019, o ICMS de todos os Estados arrecadou R$ 509,79 bilhões. Como se trata de reposição por seis meses, se a arrecadação fosse zero, metade desses R$ 509,79 ainda fica longe de R$ 280 bilhões... O número era obviamente mentiroso.

O que mais espanta a lógica é o governo afirmar que não pode fazer a reposição segundo a arrecadação porque, não sabendo de quanto será a queda, fica-se no indeterminado. Mas é indeterminado mesmo. E não se trata de argumentar que, sob o coronavírus, vale tudo. Ocorre que a União tem um colchão de que os Estados não dispõem: a PEC do Orçamento Paralelo, ou de Guerra, criada na Câmara e dada de presente para Bolsonaro e Guedes. O que tiver de gasto extra, joga-se nos ombros (!!!) do vírus e se pode brincar que o teto de gastos está valendo.

Mas os Estados e municípios não têm essa licença. A eles sobraram as despesas extras brutais por causa da pandemia — e o socorro na União nesse particular é sempre insuficiente, além de demorado — e os cofres vazios de quem não pode emitir título. De onde vão tirar o dinheiro?

O Brasil anda tão esquisito — e isso, obviamente, não quer dizer que seja bom — que deveria ser o Senado, a Casa que representa as unidades da Federação, a se ocupar com mais cuidado da solvência dos entes federativos. Em vez disso, mergulhado em sua guerra mesquinha, o governo federal — um desastre em várias frentes — consegue meter uma cunha no Congresso, jogando uma Casa contra a outra.

Bem, que os senadores arquem, então, com a responsabilidade pelo que virá caso resolvam se alinhar com o governo federal nesse caso. Se e quando faltar dinheiro para pagar PMs e médicos, os governadores podem adotar aquele estila Bolsonaro de ser e recomendar: "Vão cobrar do Davi. O Guedes disse pra ele que o dinheiro era suficiente, mas acabou".

De resto, não entendi também como funciona o congelamento. É "per capita"? Não pode aumentar e pronto? Ou se vai congelar o valor da folha de salários? Como se vai operar o controle de gastos de serviços terceirizados? Também estão congelados, por vontade de Guedes, os contratos com prestadoras de serviço? Mais: pensa-se ainda numa fórmula mista para compensar os Estados que misture critérios de arrecadação e de população... É feitiçaria.

Em lugar de uma fórmula simples, que tem como referência o que arrecadaram entes federativos que não dispõem da generosa PEC do Orçamento Paralelo, tenta-se uma charada grega, redigida em aramaico e interpretada por leitores de búlgaro antigo.

O resultado, daqui a pouco, serão Estados quebrados, com o pires na mão.

É assim que vão chegar os bilhões prometidos por Paulo Guedes nesta segunda...

Estamos diante de uma curiosa fórmula, e não é inédita neste governo, que consiste em fazer tudo errado na esperança de que o resultado seja bom.

Uma pena ver Alcolumbre cair nessa conversa. Há outros temas para buscar protagonismo. Ser protagonista da quebra dos Estados parece ter mérito duvidoso.

A menos que o Senado consiga um pacote ainda melhor para os Estados e cidades, aí vou aplaudir, as duas Casas do Congresso se dividem em favor de um governo insano.

O Congresso vinha sendo uma espécie de âncora de confiança do sistema. Os patógenos da loucura já começaram a colonizá-lo também.