domingo, maio 20, 2012

O camarada que pôs fogo na crise - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 20/05/12

Um Tsipras sozinho decerto não é capaz de mover tantos fundos e mundos - nem ele nem mesmo apenas a pequena Grécia


Fazia tempo que um político de esquerda radical não causava tanto estrago nas hostes capitalistas quanto Alexis Tsipras. Trata-se do líder do partido que fez a segunda maior bancada na eleição grega de 6 deste mês, que enfim "não valeu" porque não permitiu a formação de uma coalizão de governo.

Se vitorioso na eleição de 17 de junho, Tsipras promete dar fim ao arrocho exigido pela União Europeia, "ajuste" que ao final deste ano terá deixado a economia grega quase 20% menor do que era em 2007.

Mesmo assim Tsipras pretende que a falida e ineficiente Grécia continue a receber empréstimos europeus. Caso contrário, dá o calote final, seu país sai do euro, bancos vão à breca na Europa, o crédito global seca e o mundo entra em recessão.

A mera promessa de Tsipras renovou o tumulto na economia mundial. A ameaça renovada de que a Grécia caia fora do euro levou ainda gregos a sacar dinheiro de seus bancos (por medo de que seus euros virem dracmas). Teme-se que portugueses e espanhóis, os próximos da fila, se mirem no exemplo dos cidadãos de Atenas e esvaziem e quebrem seus bancos.

Um Tsipras sozinho decerto não é capaz de mover tantos fundos e mundos - nem ele nem mesmo apenas a pequena Grécia.

A Espanha, por exemplo, ora corre o risco de se ver sufocada pelo desmoronamento da maioria de seus bancos. A crise europeia, de resto, tinha sido apenas anestesiada pelo trilhão de euros que o Banco Central Europeuemprestou a juro menor que zero aos bancos do continente desde dezembro de 2011.

Mas Tsipras foi o detonador dessa bomba financeira e também ponta de lança das revoltas populares que, embora raras nesta crise, colocam a finança em polvorosa.

Talvez entre para a história como um mero Gavrilo Prinzip, o pobre e obscuro bósnio que em 1914 assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria, derrubando o primeiro dominó que daria na Primeira Guerra Mundial. Talvez nem isso. Por ora, porém, deve liderar o show pirotécnico até junho, mesmo que seu partido não esteja mais à frente das pesquisas eleitorais, como estava até semana passada.

Como Lula, Tsipras chama colegas de partido e fé política de "companheiros" - ou a tradução melhor seria "camaradas", pois é de origem comunista. É, claro, antineoliberal e pela aliança verde-vermelha (ambientalistas e neocomunistas).

Lidera o Syriza, na verdade uma coalizão de partidos de esquerda (Coalizão da Esquerda Radical, marxistas variados, ex-comunistas, ex-trotskistas e verdes).

O principal partido dessa coalizão é o Synaspismos (palavra que, em grego, quer dizer "aliança" ou "coalizão") ouCoalizão dos Movimentos de Esquerda e Ecologia.

Tsipras, de apenas 37 anos, chefia o Synaspismos, formado por dissidentes do "partidão" grego e de uma reunião de correntes da nova esquerda. O partido não levava muito mais de 5% dos votos até ganhar a simpatia de 17% do eleitorado neste ano. É engenheiro civil e "casado" (tem um "acordo de convivência") com a namorada do colegial.

Enfim: um partido revolucionário até ontem minúsculo, da pequena Grécia, fez o mundo balançar. O que é mais uma prova do tamanho da lambança que os financistas armaram nos últimos 20 ou 30 anos.

A outra verdade - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 20/05

Veja só. Como lembrou o historiador José Murilo de Carvalho, o Brasil já teve outra espécie de Comissão da Verdade. Foi em 1946, por insistência do general Euclides Figueiredo (pai do presidente João Figueiredo), então deputado da UDN. Criaram comissões de inquérito sobre os “atos delituosos da ditadura” do Estado Novo (1937-1945).

Ditadura Vargas...

Houve depoimentos como o de Carlos Marighela, elogiado pelo próprio Euclides, que dividira cela com o líder comunista. Mas as comissões não deram em nada. Nem relatório fizeram.

Vingança de Agnelli

Uma das causas do degaste entre Lula e Roger Agnelli, quando presidia a Vale, foi a pressão do governo para a mineradora construir uma usina em Marabá.

Pois bem...

Murilo Ferreira assumiu o lugar de Agnelli, em abril de 2011, prometendo tocar a usina do Pará e outras. Só que o mundo mudou. Há um excedente de 530 milhões de toneladas de aço. E até a CSA (a Vale tem 25%), da ThyssenKrupp, está à venda.

Deve ser terrível

Dias atrás, um brasileiro comprou uma joia na Cartier do Faubourg St. Honore, em Paris, e recebeu um saco de papel para pôr ali a bolsa com a logo da grife. Explicaram que vários clientes, ao sair da loja com a bolsa da Cartier, já foram... assaltados.

Asa branca
A Flip deste ano vai homenagear o poeta Drummond. Mas o Instituto Moreira Salles, que terá, de novo, uma casa de cultura em Paraty, celebrará o centenário de Luiz Gonzaga com um trio que tocará músicas do Rei do Baião.

O DOMINGO É
das belas e talentosas Fernanda Torres, 46 anos, e Andréa Beltrão, 48. As duas têm feito o brasileiro mais feliz, às terças, com suas trapalhadas na série “Tapas & Beijos”, da TV Globo. As aventuras de Fátima e Sueli, agora casadas, refletem o talento das atrizes, que, fora de cena, são tão amigas quanto as personagens. Nos bastidores, a dupla troca experiências e até canta pelos corredores. Canta pra eu

Lembrando Jânio
Fernando Collor, na CPI do Cachoeira, tem chamado mais atenção pelo... linguajar circuncisfláutico. Quinta, ao justificar a estapafúrdia tentativa de convocação do coleguinha Policarpo Jr., da “Veja”, declamou: — Não se me acoime de ter comportamento alapado, lançadiço ou rafeiro em relação ao hebdomadário em tela. Hã?

Gois explica...

“Acoimar”, segundo o “Aurélio”, é castigar, punir, censurar. “Alapado” é escondido. “Lançadiço” é desprezível. “Rafeiro” é o indivíduo que acompanha sempre o outro, como cão de guarda, vigiando-o, defendendo-o. “Hebdomadário” é semanário, caso da “Veja”.

Em tempo...

“Circuncisfláutico” quer dizer rebuscado, pretensioso.

Poeta do carnaval

Hoje, faz 40 anos que o carnaval perdeu seu maior poeta, Silas de Oliveira (1916-1972), autor de versos magistrais ainda hoje cantados até por crianças. Um deles: “E o asfalto, como passarela, será a tela do Brasil em forma de aquarela...” (“Aquarela brasileira”, Império Serrano, 1964).

Memórias do Vale

O advogado Antônio Alberto Gouvêa Vieira, irmão de Eduardo Eugênio, da Firjan, concluiu um livro sobre o Vale do Cuiabá, em Itaipava, RJ, onde tinha uma pousada que, nas chuvas de 2011, foi dizimada, causando sete mortes.

Cota para louras!

Dia destes, uma carioca de 25 anos pediu emprego de vendedora numa loja de moda praia, em Ipanema. Mas ouviu da supervisora da grife, com dez filiais na cidade, que só a contrataria se ela... escurecesse os cabelos. Segundo a chefe, “fios louros não estão no DNA da marca”.

Cena carioca

Aconteceu com a coleguinha de Recife Paula Schver, de férias no Rio. Quinta, ela tirava fotos dos Arcos da Lapa quando... vupt!... levaram seu celular. Mas um, digamos, “vingador da Lapa” foi atrás do pivete e voltou com o celular e... o ladrão!, que, acredite, apertou a mão dela e... “Perdão, não sabia que você não era daqui.” Ah, bom!

Torpedo pode ampliar CPI - JOÃO BOSCO RABELLO


O Estado de S.Paulo - 20/05


O torpedo do deputado Candido Vaccarezza ao governador Sérgio Cabral compromete a estratégia do PT de limitar as investigações da empresa Delta ao Centro-Oeste e escancara o propósito do partido de transformar a CPI num tribunal exclusivo para réus adversários. O que já estava difícil parece agora improvável e reforça em setores do partido a sensação de que a criação da comissão pode ter sido uma iniciativa politicamente equivocada.

A mensagem do deputado não é o único fator a conspirar contra o limite por ora imposto pelo PT. Na avaliação de parlamentares com ampla experiência em CPIs passadas, a investigação da Delta no Centro-Oeste produzirá informações sobre a movimentação financeira entre a matriz da empresa e suas filiais, tornando inevitável a extensão do processo a outros Estados, onde estarão também as digitais do contraventor Carlos Cachoeira.

O torpedo que virou sensação não fragiliza apenas seu autor, mas todo o partido, por sintetizar o comportamento do PT na CPI, de blindar aliados e eliminar adversários. O episódio abre espaço para a pressão da sociedade em favor da ampliação das investigações, o que deverá ser estimulado pela oposição.

O PT agora joga com o tempo para reduzir os danos colaterais de uma CPI que pretendeu controlar. A quebra de sigilo de dezenas de personagens secundários no esquema de corrupção de Carlos Cachoeira, depoimentos que pouco acrescentam ao que já se sabe, o questionamento permanente do procurador-geral, Roberto Gurgel, e a insistência em criminalizar a mídia funcionam como elementos diversionistas, mantendo a CPI em banho-maria.

Arapongagem no governo do DF

Blindado, por ora, na CPI do Cachoeira, o governador Agnelo Queiroz (PT) tornou-se alvo da Comissão de Segurança Pública da Câmara, que aprovou a realização de audiência pública para analisar as denúncias de arapongagem no governo do Distrito Federal, a partir de uma central de grampos instalada na Casa Militar. A pedido do deputado Fernando Francischini (PSDB-PR), serão ouvidos o chefe da Casa Militar, coronel Rogério Leão, tenentes coronéis da PM-DF e os jornalistas Edson Sombra e Mino Pedrosa. A audiência está programada para junho.

Plenos poderes

O presidente da CPI do Cachoeira, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), e o relator, deputado Odair Cunha (PT-MG), vêm sendo criticados pela concentração de poderes e controle excessivo. Após um mês de funcionamento da comissão, ainda não indicaram os vice-presidentes e sub-relatores. Segundo colegas, para não dividir o poder e os holofotes nem com aliados nem com a oposição.

Efeito Delta

Investigado pelo Ministério Público por causa da compra da Delta Construções, o Grupo J&F Participações, que controla o frigorífico JBS, terá de dar explicações no Senado sobre outra operação - o monopólio na comercialização da carne. Senadores dizem que a concentração do setor leva à manipulação do preço da arroba e ao fechamento de pequenos frigoríficos. O debate na CAE e na Comissão de Agricultura está previsto para junho, com a participação do BNDES, acionista do JBS, e do Cade.

Mais um

Aliados de Michel Temer já articulam sua recondução para novo mandato de presidente nacional do PMDB na eleição programada para março de 2013. Temer vem sendo reeleito sucessivamente, desde 2001. Em 2008, enfrentou Nelson Jobim, que na última quinta-feira acusou o partido de "se curvar" diante do PT.

Urge desentupir as veias da banca - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 20/05


Sem uma solução para as desconfianças em torno do sistema financeiro não haverá crescimento



O presidente Barack Obama subiu à onda pró-crescimento que está encorpando no mundo desenvolvido, ao se preparar para a cúpula do G8, ontem encerrada em Camp David.

Não chega a ser novidade, a não ser pelo fato de que tem, agora, um companheiro de certa força, o presidente francês, François Hollande, quando antes a França subordinava-se, com Nicolas Sarkozy, à rigidez da Alemanha de Angela Merkel.

Pequena recapitulação: desde que a grande crise de 2008/09 pareceu dar uma amainada, havia um debate no G20, de que o G8 passou a ser uma espécie de trailer, entre os que defendiam a necessidade de manter as medidas de estímulo adotadas no auge da crise (EUA e Brasil, principalmente) e os que achavam que já era hora de passar para outra conversa, a da redução das dívidas e dos deficit (Alemanha à frente). Não foram poucos os auxiliares de Obama a lembrar que, na grande crise anterior (1929), a retirada prematura dos estímulos conduzira a um repique terrível que arrastou o problema por anos a fio. Temiam um repeteco agora.

Tinham razão, embora possa se discutir se o repique da crise se deu por culpa exclusiva da supressão dos estímulos, que, de resto, nem foi universal. A Europa, sim, entrou na trilha da austeridade e, por coincidência ou não, é a única área do planeta realmente encalacrada.

O problema é que o crescimento -ou a falta dele- é apenas um dos lados da equação. O outro -a crise do sistema financeiro- pouco é mencionado, ainda que seja igualmente grave. O fato é que os bancos, pelo menos os europeus, não estão cumprindo a sua função essencial, a de engraxar as rodas da economia, por um problema de desconfiança entre eles próprios.

Só pode haver desconfiança quando o "Financial Times" informa o seguinte: a unidade do JPMorgan no centro das perdas de US$ 2 bilhões construiu posições que totalizam mais de US$ 100 bilhões em produtos complexos e arriscados, "que estiveram no centro da crise financeira de 2008".

Tais posições -completa o jornal- somam-se aos créditos em derivativos que levaram às perdas e, em consequência, a uma investigação sobre o banco.

Posto de outra forma: o JPMorgan ainda tem em suas entranhas os tais ativos tóxicos que foram a verdadeira causa da crise.

A dívida e o deficit dos Estados, salvo no caso da Grécia, só se tornaram críticos porque o poder público foi obrigado a socorrer o sistema financeiro para evitar o colapso. Essa é a narrativa da crise que a banca escamoteia.

Como o JPMorgan não é caso único, ou se enfrenta o entupimento da banca ou não se consegue realmente crescimento sustentável e forte.

É por isso que Randall Henning (Peterson Institute, Washington) escreve que os países não europeus do G8 (EUA, Canadá e Japão) deveriam convencer a Europa da necessidade de uma agenda de crescimento, mas também a de mover-se rumo a uma solução pan-europeia do problema bancário, de modo preventivo.
Está claro, pois, que crescimento e saneamento da banca andam de mãos dadas.

A portinhola - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 20/05



A oposição quer aproveitar esta temporada eleitoral para tentar jogar as mazelas municipais no colo de Dilma e minar um pouco a popularidade da presidente

Depois de muito bater cabeça, a oposição considera ter encontrado finalmente uma fresta capaz de lhe fazer enxergar um futuro promissor: o fraco desempenho da economia projetado nos últimos dias pelo Banco Central — associado às vaias que a presidente Dilma Rousseff recebeu na última quarta-feira, na Marcha dos Prefeitos —fez com que os tucanos começassem a trabalhar um jeito de tentar usar a força de Dilma contra ela mesma. Não por acaso, o senador Aécio Neves, apresentado como pré-candidato do PSDB, começou a semear esse discurso justamente pelo Nordeste, onde Lula é tido como o rei.

A semeadura de Aécio no território de Lula teve seu primeiro ensaio na capital pernambucana, na última sexta-feira. Um dos alvos foi o Brasil Carinhoso, o programa que a presidente Dilma Rousseff lançou na última quarta-feira. E é interessante notar como desfere golpes, sem sequer citar Dilma ou o programa. O senador apenas disse que um gesto realmente carinhoso para o Brasil seria cobrar menos impostos das empresas de saneamento para que elas pudessem investir nesse serviço mais do que pagam de impostos de forma a cobrir o Brasil com uma ferramenta fundamental para a saúde — hoje, apenas 50% do Nordeste tem saneamento básico.

Por falar em impostos…
O encontro no Recife foi obra do PSDB Mulher e deveria apenas aquecer as candidatas para as eleições que vêm por aí. Mas para a oposição, em busca de um discurso capaz de tocar fundo na alma das pessoas, o teste para ver se a fala de Aécio surte algum efeito no eleitorado foi mais além, no sentido de sensibilizar os prefeitos e candidatos da oposição e de aliados. Nunca é demais lembrar que muitos partidos desmanchados em juras de amor à presidente no Planalto não veem a hora da troca de comando.

Por isso, nessas eleições municipais, Aécio surgirá defendendo a “refundação da federação” junto a candidatos dos mais variados partidos quando estiverem coligação com o PSDB. Esse nome pomposo traz embutido um processo ainda no nascedouro. Basicamente, consiste em secar o caixa com o qual o PT inunda as bases políticas enquanto as obras do PAC perdem ritmo.

A ideia é espalhar pelo país a chama da descentralização, denunciando a concentração de recursos nas mãos da União, onde quase 70% dos impostos terminam. E quando há algum incentivo ao contribuinte, seja para compra de carros, ou a chamada linha branca, o corte se dá justamente naqueles impostos que a União — toda poderosa — divide com os municípios.

Por falar em municípios…
Ok, leitor, você pode achar que essa conversa de divisão dos impostos é antiga e que o Congresso jamais vai mexer nas contribuições exclusivas da União para reparti-las com os estados e municípios. Mas tudo é uma questão de oportunidade. Terminadas as eleições municipais, os prefeitos sempre correm para Brasília em busca de projetos. Ao contrário da marcha desse mês, recheada de “patos mancos”, ou seja, prefeitos em final de mandato sem direito à reeleição, os que virão no período pós-eleitoral chegarão cheios de moral. Recém-eleitos, serão peças da engrenagem da eleição dos próprios congressistas em 2014.

Imaginem eles chegando em Brasília com um senador jeitoso no trato da política abraçado à pauta municipalista? Você pode até achar que isso não terá efeito algum, mas não dá para esquecermos que tudo no Brasil é um processo de amadurecimento, no estilo água mole em pedra dura. E tudo isso somado à irritação da própria base parlamentar de Dilma no Congresso pode estar aí o caldo grosso para empurrar essa descentralização de verbas para fortalecimento dos municípios, hoje repleto de responsabilidades sem a contrapartida financeira para realização dos serviços.

Por falar em dureza...
É interessante notar a forma como Aécio apresenta esse discurso. Sem raiva ou ódio nos olhos. Ele se coloca de forma firme, porém leve. Jamais deixa de se mostrar de forma positiva nos eventos públicos, carregando invariavelmente um sorriso — um contraponto ao comportamento da presidente da República, mais fechado e impaciente por natureza.

Se isso vai dar certo, não se sabe, mas Aécio agora parece mais imbuído dessa missão de liderar o PSDB pelo país afora. Caberá a ele tentar levar ao público já nesta temporada eleitoral a imagem de um governo federal com obras arrastadas no tempo, apesar de ficar com quase todos os impostos. A ordem é jogar no colo do governo federal as mazelas municipais. Afinal, se Dilma tem as verbas, a oposição quer que ela fique também com a mancha do insucesso.

Os benefícios de não ser o melhor - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 20/05

Meu pai sempre jogou tênis,desde que me conheço por gente. Lembro de uma vez em que ele comentou que o adversário ideal é o de mesmo nível, mas que se fosse preciso escolher entre jogar com alguém melhor ou com alguém pior do que ele, preferiria jogar com alguém melhor, porque gratificante não era vencer fácil aquele que sabe menos, e sim aprender com quem te exige algum esforço.

É um verbo em desuso que merece ser revitalizado: aprender. A verdadeira postura competitiva não é a daquele cara que almeja atingir o topo de qualquer maneira, e sim daquele que extrai de um superior o estímulo para encontrar o próprio caminho para vencer a si mesmo. Porque não são poucos nossos adversários internos: a ignorância, o comodismo, a ferrugem. É preciso treinar bastante para flexibilizar os movimentos, todos: do corpo e da mente.

E dessa forma avançar, sempre buscando mais, numa estrada hipoteticamente sem fim. Prefiro ler livros de quem escreve bem melhor do que eu. De quem tem mais a dizer do que eu. Além do prazer que isso me dá, não vejo outra maneira de aprimorar meu trabalho. Prefiro conversar com pessoas mais vividas que eu, mais inteligentes, com melhores histórias para contar.

Talvez algumas delas sintam o mesmo em relação a mim (pensem que sou eu a mais-mais), porém o que importa não é essa quantificação, que, aliás, é totalmente subjetiva. O que estimula é ter consciência do quanto a nossa vida se enriquece com a experiência do outro. Não por acaso, adoro programas de entrevistas, onde posso enxergar a emoção do entrevistado, seu humor, sua ironia, sua indignação – entrevistas por escrito nem sempre destacam essas sutilezas.

Adoro jantar com quem conhece mais gastronomia do que eu, salientando temperos que normalmente eu não perceberia. Gosto de viajar com quem já viajou bastante e desenvolveu um olhar para certos lugares que para mim é novo. Prefiro dançar com quem sabe me conduzir.

Mas com a condição de que esses iluminados transmitam sua sabedoria naturalmente, sem intenção, sem didatismo – senão vira aula, xaropice, perde a graça. Gosto de aprender sem que o outro perceba que está me ensinando. Claro que competidores profissionais devem tentar eliminar seu oponente – nhac! Menos um na escalada ao pódio. Nenhum atleta profissional treina tanto, investe tanto, pra não se importar em perder em nome do benefício do aprendizado.

Que aprendizado, o quê. Rubinho, Neymar, Cielo, não desapontem a torcida. Mas os amadores deveriam perceber que, em vez de se fingirem de campeões duelando com derrotados, mais vale tornarem-se melhores com a passagem do tempo, através de vitórias conquistadas no silêncio da observação. É um troféu oferecido por você a você mesmo – todos os dias.

Ignorância clássica - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 20/05


A história, reconheço, não me deixa bem, mas ao menos tenho a atenuante de que a ideia não foi minha.

Ainda mais vagabundo do que eu, o que não deixava de ser um feito, o primo Fernando parecia decidido a restaurar sua imagem, tanto que resolveu prestar o exame de madureza - um ancestral do supletivo -, numa cidade do interior de Minas. Como não estivesse a fim de viajar sozinho, me convidou para ir com ele.

Nem pensar, descartei eu, sem a menor disposição para o safári que o Nandinho me propunha: se no bem-bom da capital eu já passava humilhação nas provas escolares, por que iria dar vexame também naquela lonjura, conferindo alcance intermunicipal à minha ignorância? Eram seis disciplinas, e entre as obrigatórias havia duas, matemática e biologia, que eu nunca tinha estudado, pois, justamente para fugir delas, optara pelo clássico - o ramo "humanas" do curso colegial. Não foi, aliás, má opção; ainda hoje, questionado sobre qualquer coisa que desconheça, e são tantas, me basta dizer:

-Não sei, eu fiz o clássico.

Nem assim o primo desistiu da minha companhia, e recorreu a um golpe baixo - foi fazer a cabeça de meu pai, terminando por convencer o velho a me pressionar para aderir à expedição. Não tive como resistir, pois meu aberrante prontuário escolar acumulava três estrepitosas reprovações. Sim, por três vezes tomara bomba direto, sem ao menos fazer jus à repescagem da "segunda época". Deveria estar, àquela altura, no segundo ano de alguma faculdade, mas em vez disso tartarugava na metade do clássico. Se dali saltei, poucos meses depois, para a universidade, foi graças ao primo Fernando.

Não direi o nome da cidade onde fomos prestar os exames, para não comprometer com a minha a reputação daquele acolhedor município. Digo apenas que lá se chegava numa interminável, abafada, suarenta viagem de trem. Comigo e o Nandinho, seguiram dezenas de rapazes, bem uns 50, que vinham a ser, ainda mais do que nós dois, a fina flor da vagabundagem escolar belo-horizontina. Não espanta que na chegada nos esperasse um pelotão policial, pois alguns de nossos elementos haviam depredado o carro-restaurante.

As seis disciplinas do madureza deveriam ser matadas de duas, no máximo três vezes. Significava que naquela primeira rodada eu poderia fazer até cinco exames, deixando o derradeiro para mais adiante. Como me restasse um mínimo de noção das coisas, decidi me inscrever em três matérias apenas. Qual não foi a minha surpresa, porém, quando, lá chegando, me encontrei inscrito para cinco provas - entre elas, as impenetráveis matemática e biologia. Até hoje não entendi o que aconteceu.

Não me perguntem, por favor, como foi que, ao cabo de exames orais e escritos, pude voltar para casa, naquele remoto mês de agosto, aprovado, para pasmo geral, a começar do meu, em cinco disciplinas. Para valorizar minha façanha, digo apenas que, no caso da matemática, a prova oral se desdobrava em três, uma para cada ano do curso colegial. Ainda bem que, sorteado o ponto, o candidato tinha alguns minutos para prepará-lo num canto da sala, o que lhe aumentava as chances de êxito - sobretudo se naquele momento pudesse sentar-se nas proximidades de um primo razoavelmente conhecedor da matéria. Fiz melhor figura, em todo caso, que alguns de meus comparsas, um dos quais, no exame oral de biologia, instado a dissertar sobre os musgos, limitou-se a balbuciar que eles serviam para enfeitar presépios.

Sete meses depois, tomei de novo o trem para liquidar a última fatura, que consistiria num exame oral de história. Horas e horas de viagem para que o examinador me propusesse um paralelo entre Ramsés II, o Grande, e o presidente Juscelino Kubitschek.

- As obras faraônicas... - principiei eu, mas não pude ir além destas três palavras, pois o velhinho, de quem me haviam falado como sendo crítico feroz do construtor de Brasília, se abriu num sorriso e me cortou a fala:

- Muito bem, o senhor pode ir.

Fosse outra a pergunta e eu talvez tivesse respondido:

- Sei não. Estou fazendo o clássico.

Embrulho verde - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 20/05

A presidente Dilma vai anunciar no Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, um pacotão ambiental que está sendo preparado pelas ministras Miriam Belchior (Planejamento) e Izabella Teixeira (Meio Ambiente). Ele prevê a criação de novas Unidades de Conservação (em negociação com os estados), um decreto de compras sustentáveis a ser adotado por todo o governo (nas licitações, além do menor preço, haverá critérios ambientais), e um pacto pelo gerenciamento das águas.

O patrimônio de Demóstenes
O senador Demóstenes Torres terá que explicar ao Conselho de Ética as discrepâncias entre as prestações de contas ao TRE-GO e ao Imposto de Renda. Na eleição de 2006, declarou ter R$ 508,4 mil entre uma casa, quatro apartamentos, carros e aplicações. Quatro anos depois, o patrimônio caiu para R$ 374,9 mil. Sumiram casa e apartamentos. Em 2002, seu patrimônio era de R$ 269,7 mil, segundo o TSE. Os custos de suas campanhas aumentaram 15 vezes de 2002 a 2010. Quando se elegeu há dez anos, declarou despesas de R$ 614 mil. Para o governo de Goiás, R$ 2 milhões. Na reeleição ao Senado gastou R$ 9,2 milhões.

Nesta CPI não tem jeito de poupar ninguém. Mas precisamos reunir dados, porque ninguém vai lá para confessar” — Walter Pinheiro, líder do PT no Senado (BA)

COSMOPOLITA.
 Uma emenda à Constituição do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) pretende dar direito a voto nas eleições municipais a todos os estrangeiros residentes no país, mesmo para aqueles que não tenham visto de permanência. O tucano argumenta que os portugueses já votam nas eleições locais brasileiras. E que não há por que não permitir o mesmo para os que vieram de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique ou de outros países da América Latina.

Corredor da morte

Pela praxe, o julgamento obedece a ordem da denúncia. Se isso ocorrer, a primeira defesa é de José Dirceu. Depois vem Genoino, Delúbio e Marcos Valério. O 15, é o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) e o 29, é o presidente do PTB, Roberto Jefferson.

Pela ordem

O julgamento do mensalão começa com o voto do relator, Joaquim Barbosa, e do revisor, Ricardo Lewandowski. Após, votam domais novo ao mais antigo: Rosa, Fux, Toffoli, Cármen, Peluso, Gilmar, Marco Aurélio, Celso de Mello e o presidente Ayres Britto.

Sistema sem memória

Com a Lei de Acesso à Informação, dados do governo se tornaram públicos para pesquisa desde a semana passada. Mas o sistema tem falhas. Todos os documentos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula não estão acessíveis porque, ao deixarem o governo, eles levaram tudo o que foi produzido nos mandatos para criarem seus institutos. O Planalto já recebeu pedido de atas de reuniões da presidente Dilma. Não serão disponibilizadas porque não são produzidas.

Nova forma

Os deputados do Rio também decidiram avalizar proposta do petista Alessandro Molon (PT) mudando o critério de distribuição dos royalties. Ele deixaria de ser feito com base no FPE e passaria a ser de acordo com a população.

Rio e royalties

A bancada fluminense na Câmara vai obstruir qualquer tentativa de votar a Lei dos Royalties antes das eleições municipais. Quer evitar que o clima eleitoral contamine o debate. Ela votará contra a redistribuição das receitas do já licitado.

R$ 14 MILHÕES. Se o PSD obtiver no TSE acesso ao Fundo Partidário, será o sétimo partido em volume de recursos, atrás do PT, PMDB, PSDB, PR, PSB e PP.

O DEM 
é o que mais perde dinheiro. Sua fatia cai de 7,05% para 4,94%. Os demais partidos não chegam a reduzir 1% de sua participação no fundo.

O PRESIDENTE
 do PSDB do Rio, Luiz Paulo Corrêa da Rocha, ligou para dizer que a tendência mais provável é dos tucanos apoiarem a candidatura de Rogério Lisboa, do DEM, para a prefeitura de Nova Iguaçu.

Agenda econômica em fase de mudança - EDITORIAL O GLOBO


O GLOBO - 20/05

Dilma Rousseff assumiu para fazer um governo de "continuidade". Não poderia ser diferente. Eleita pela força do carisma de Lula, a presidente não teria motivos, até pela boa avaliação popular da gestão anterior, de que ela foi ministra, para mudar rumos. Mas os fatos precisam ajudar os planos. Quando não ajudam, é preciso agir.
No plano político, Dilma passou o primeiro ano em faxina. Quisesse ou não, afastou ministros atingidos por denúncias irrespondíveis.
Seis deixaram o ministério e, na substituição, a presidente usou método próprio: com a equipe montada segundo as regras do toma lá dá cá do fisiologismo, os partidos continuaram com as respectivas pastas, mas não só a presidente fez questão de escolher o novo ministro, como esteve, e está, atenta ao segundo escalão de cada ministério. Teve substanciais ganhos de popularidade, com índices superiores aos de Lula em início de primeiro mandato.
Na agenda econômica, a vida real também conspira para o governo Dilma fazer um ajuste de rota. Que, de alguma forma, já começou. Na gestão Lula, o governo pôde surfar a onda histórica do crescimento mundial sincronizado, no vácuo do salto da China num modelo de "socialismo de mercado", executado sob as armas de uma férrea ditadura política.
Num primeiro momento, as exportações rebocaram o país, que, depois, tracionou pela força do mercado interno, anabolizado pela política de aumentos reais do salário mínimo, benesses assistencialistas, estímulo ao crédito.
Na Era Dilma, a economia mundial mudou de sinal, com o agravamento da crise iniciada nos EUA, e o modelo de crescimento impulsionado pelo consumo interno se mostra de fôlego rarefeito.
O BC tem feito cortes substanciais na taxa básica de juros e o governo pressiona para reduções nas taxas de mercado. O endividamento do consumidor, porém, parece ter atingido um limite. Em abril, segundo o Serasa, a inadimplência subiu 4,8% em relação a março, o maior salto deste 2002. Os bancos, por sua vez, veem ampliarem-se os atrasos nos financiamentos à compra de veículos, enquanto lotam os pátios nas fábricas. Tudo leva a previsões de que a economia, no máximo, crescerá 3% este ano. Bateu no teto.
Há baixa produtividade na indústria, fechamento de mercados num mundo em crise, entre outros problemas que a desvalorização do real não resolverá — além de produzir inflação. Sintomático que Dilma comece a falar em nós estruturais, como os elevados impostos. Depois de começar a reduzir o peso de encargos trabalhistas em alguns setores, a presidente mira no custo de energia, fator negativo na competitividade brasileira no mercado externo. Com astronômicas alíquotas de ICMS que estados impõem sobre as contas de energias, sem contar os gravames federais, não há mesmo câmbio que compense custos: 43% em Minas, 47% no Rio de Janeiro e 33% em São Paulo. Isso torna a carga tributária sobre a energia uma das mais elevadas do mundo: 53% acima da média de todos os países.
Usem ou não o termo, o "custo Brasil", enfim, parece entrar na agenda oficial. Para desatar os nós, o Planalto terá de encarar reformas inexoráveis, cedo ou tarde: tributária, legislação trabalhista onerosa, previdência (INSS), desburocratização.
Ao mesmo tempo que desonera os custos de produção, será preciso conter o crescimento real constante dos gastos em custeio, para dar espaço à expansão dos investimentos públicos e da própria poupança interna.
Este é um projeto estratégico de governo.

A mulher, a ciência e o coco - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O ESTADÃO - 20/05


Sim, cativante leitora, gentil leitor, fiquei devendo algumas explicações, depois da deplorável barafunda de assuntos com que os tenho vitimado, nos últimos domingos. Mas, apesar de tudo, creio que acabei esclarecendo mais ou menos a questão da gordura do coco e discorrendo um pouco sobre a inconstância do que nos apresentam como perenes e irretorquíveis verdades científicas. Não cheguei, contudo, a dizer direito o que via nisso de relevante para as mulheres. Hoje essa grave lacuna, como é destino de todas as lacunas, será preenchida.

No domingo passado, escrevi que havia novidades científicas para as mulheres, relacionadas com o coco. Disse também que não sabia se era caso de as mulheres desconfiarem de mais esse achado científico. De minha parte, creio que sim - e não somente porque os achados vivem se contradizendo, mas porque minhas contemporâneas sofreram bastante, por causa da verdade científica. A maioria das queridas leitoras, todas na flor da idade, talvez não possa recordar o tempo em que a gente se referia às mulheres, a sério, como "o sexo frágil" ou "o belo sexo" e as considerava umas instintivas mais ou menos destituídas de real inteligência. Claro que essa maneira de ver se originava na ciência vigente. Sem achar que estavam ofendendo ninguém, os homens e muitas mulheres repetiam uma porção de besteiras sobre as mulheres, nenhuma delas abertamente desmentidas pela ciência e algumas até confirmadas.

As besteiras se estendiam sobre todas as áreas, inclusive aquela em que o óleo de coco está ganhando destaque, ou seja a tensão pré-menstrual. Pois é, a cada dia aparece uma matéria em algum jornal ou noticiário, anunciando essa maravilha. Desconheço a posologia e não estou receitando nada, mas li que, num porcentual altíssimo, as mulheres que sofrem de TPM ficam curadas ingerindo óleo de coco diariamente, do qual já existem não sei quantas marcas em circulação. Espero que as sofredoras fiquem boas mesmo, mas, como disse domingo passado, tenho algumas lembranças do progresso da ciência e do conhecimento comum sobre a questão, que talvez devam ser ponderadas.

No começo, não havia menstruação. Ou seja, não se falava nisso na presença de homem algum, a não ser o médico, a cujos consultórios as mulheres só iam acompanhadas. Geralmente eram os homens que tinham irmãs que começavam a revelar aos outros a existência desse estranho fenômeno, encarado por muitos com ceticismo. Os mais sofisticados pegavam anúncios de Modess na revista O Cruzeiro, em que apareciam misteriosas mensagens cifradas, dirigidas às mulheres e mencionando "as antiquadas toalhinhas". Mas não se mostrava nem a toalhinha, nem o secretíssimo produto anunciado. Havia grandes discussões masculinas sobre o que seriam as antiquadas toalhinhas e até hoje não faço delas uma ideia clara. Neném, um amigo de infância, certa vez abriu um pacote de Modess para ver como era e o descreveu como "um travesseiro de gato", o que não contribuiu muito para o entendimento. E a moça não ficava menstruada, ficava "incomodada", ou até "doente".

O conhecimento comum e o conhecimento científico sobre o assunto, tanto quanto eu saiba, diferiam apenas na terminologia. Em Itaparica, não se usava a expressão na presença de alguém do sexo oposto, mas a menstruação era designada como "boi", em falas como "acho que o boi dela chegou, você precisa ver como o feijão está salgado e mal catado", "ele disse que vai casar com ela e eu retruquei que não tinha nada contra, só fiz lembrar que a família dela tem os bois mais brabos da ilha e ele que se precate, porque vai tomar porrada todo mês". Quando eu era menino e ficava na quitanda de Bambano para ouvir as conversas dos adultos, a finada Lindaura, de finado Cartésio (nomes mudados por uma questão de discrição), às vezes passava batendo os tamancos e assoprando forte e Bambano comentava que "compadre Cartésio hoje vai se ver, espere só ela abrir a cancela e soltar esse boi". E de fato, quando sentia que o boi de Lindaura estava perto, Cartésio sempre arranjava uma viagenzinha de negócios a Salinas e ficava por lá até ele acalmar.

Era mais ou menos o que a ciência dizia, com outras palavras. Questão de personalidade da vítima de bois brabos, histeria. Quando a infeliz se queixava de cólicas que a deixavam rolando na cama, o médico, como eu vi acontecer, só faltava dar uma risadinha de condescendência para com o eterno feminino (sim, havia também o eterno feminino) e explicava que as cólicas eram psicológicas. "Está tudo em sua cabecinha", dizia o médico a uma paciente que evidentemente não tinha dor nenhuma na cabeça, mas na barriga mesmo.

Agora, ao que parece, as cólicas não são mais psicológicas e a ciência reconhece a existência da TPM. Segundo me contam, entidades científicas questionam essa existência, mas outras não só a aceitam, como ainda acharam algo pior, chamado Transtorno Disfórico Pré-Menstrual. Pela descrição, a mulher nas vascas do TDPM é capaz de metralhar a vizinhança ou jogar o gato no liquidificador. Óleo de coco nela, atual palavra de ordem. Como eu disse antes, espero que dê certo mesmo e, a julgar pelo material que me mandaram depois que falei nele, deveremos entrar em breve na Era do Coco. Aliás, lá na ilha já entramos, com resultados ainda duvidosos, o que dá pra rir dá pra chorar e até cheiro bom tem sua hora. Um toureiro (marido ou amancebado com mulher de boi brabo) lá do Bar de Espanha se ofereceu para um teste e, de fato, o boi da sua dele santa esposa amansou muito, depois que ela passou a tomar leite de coco várias vezes por dia.

- Mas eu suspendi o tratamento - disse ele. - Muito antes um boi brabo do que o sujeito ir deitar e achar que está dormindo com uma moqueca.

De sacolinhas e pieguices - DANUZA LEÃO


FOLHA DE SP - 20/05

Se forem proibidas, você pode comprar uma no próprio supermercado. Que bom para os donos

Há uma eternidade venho lendo nos jornais a polêmica sobre as sacolinhas de plástico dos supermercados e confesso que nunca me interessei muito pelo assunto.

Houve uma trégua, agora falam de novo, e continuo sem refletir, quando vou ao supermercado, se devo levar sacola ecológica ou não.

É claro que todos queremos um mundo menos poluído, que um saquinho de plástico leva 400 anos para desaparecer etc. etc., mas não posso deixar de pensar.

Praticamente todos os produtos que se compram em qualquer supermercado já vêm embalado, da fábrica, em plástico; se eu comprar duas mangas e uma bandejinha de frango, as mangas serão colocadas dentro de um saquinho de plástico e o frango já estará embrulhado em plástico, numa bandejinha de isopor. Mas para levar as mangas e o frango para casa, devo ter uma sacolinha de palha, é isso?

Se a compra é grande, e eu peço para levarem em casa, tudo o que eu tiver comprado -absolutamente tudo- chegará, separadamente, em sacolas plásticas, as mesmas que não se deve usar quando se leva o produto. Então, que história é essa de sacolinhas biodegradáveis?

Algum plástico deixará de ser usado nas feiras, nos hortifrútis, nas papelarias, nas embalagens de louça, de quadros, onde o plástico bolha é fundamental?

Os plásticos continuarão cobrindo os alimentos na geladeira, os sacos de lixo continuarão sendo de plástico, e mais 1 milhão de coisas de que não me lembro vão continuar exatamente como são, mas há quem ache que as sacolinhas dos supermercados, se eliminadas, vão salvar a vida do planeta.

Se as sacolinhas forem proibidas, você pode comprar uma, no próprio supermercado, mas vai pagar por ela R$ 0,17, e aí tudo bem. Mais um produto a ser vendido, que bom para os donos.

Está aí uma discussão que me escapa, que não consigo compreender, por favor, que alguém explique.

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É muito bom um governo que cuida dos mais necessitados, que pensa nas crianças, na moradia para os mais pobres etc. etc. Mas será que é mesmo necessário que cada uma das bondades que o governo atual proporciona seja chamada por títulos tão piegas?

Não seria possível melhorar essa nova renda para os que têm filhos de até seis anos sem precisar chamá-lo de Brasil Carinhoso?

Mais do que nunca, deve-se perguntar quem é o criativo autor encarregado de inventar esses nomes.

Isso se chama pieguice, coisa que existe para provocar, nos mais ingênuos, a sensação de "ah, como esse governo é bonzinho" -se possível, com os olhos marejados. Mas no dia em que esses mesmos ingênuos tiverem mais escola, mais educação e lido os livros, vão entender que a pieguice é um apelo (excessivo) aos sentimentos; é o sentimentalismo ainda pior do que o sentimentalóide, beirando o ridículo.

Por falar nisso, ainda não ouvi nenhum ministro da Educação anunciar a abertura de escolas para atualizar professores que estudaram no século passado, e outras para que os futuros professores possam ensinar aos alunos todas as modernidades do mundo atual, única maneira de fazer um país crescer. Eles acham que comprar computadores para as escolas -e mostrar na televisão- é ser Primeiro Mundo.

Mas se isso um dia acontecer, tremo em imaginar que essa "bondade" virá -se vier- com a foto de uma criança sorrindo, com um slogan no qual prefiro não pensar.

O pieguismo é muito brega.

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O que se pode esperar de um garotão dirigindo um carrão? Que ele ande a 60 km por hora?

O que dinossauros nos ensinam - MARCELO GLEISER

FOLHA DE S.PAULO - 20/05


A história das colisões na Terra mostra que, se a história tivesse sido outra, não estaríamos aqui


Às vezes, a morte vem de lugares inesperados. Para um dinossauro que vivia há 65 milhões de anos, o maior perigo eram outros dinossauros, especialmente o "T. rex", que só temia outros como ele.
Porém, mesmo que algumas populações de dinossauros estivessem em declínio já antes da extinção, o que deu cabo deles foi a colisão cataclísmica de um asteroide de 10 km de diâmetro.
O impacto deixou uma cratera de 150 km na península de Yucatán, no México. É difícil imaginar que uma única colisão possa causar tamanho dano. Mas uma rocha que viaja a 30 km por segundo (150 vezes mais veloz do que um jato) deposita uma energia no seu impacto equivalente a 100 mil vezes a energia da detonação simultânea de todas as bombas termonucleares que existiam na Guerra Fria. O refluxo de matéria viajou até a metade da distância entre a Terra e a Lua.
Nuvens de poeira bloquearam o sol durante meses e a temperatura caiu vertiginosamente. Após a poeira se assentar, um efeito estufa acelerado fez com que a temperatura subisse rapidamente; mais de 50% das espécies desapareceram.
Esse não foi o único impacto na Terra ou o que mais destruiu a vida. Felizmente, esse tipo de colisão é raro, ocorrendo em média a cada 30 milhões de anos. Uma das mais recentes ocorreu em 1908 em Tunguska, na Sibéria, destruindo cerca de 30 km2 de floresta com a energia de 185 bombas de Hiroshima. Esse tipo de impacto, com frequência média de cem anos, pode causar sérios danos, mas não extinções globais. (No caso de Tunguska, o fragmento explodiu antes do impacto.)
Será que isso pode acontecer de novo? A Nasa tem um programa dedicado à caça de asteroides e cometas, com eficiência de cerca de 75%.
Asteroides ou cometas considerados ameaças globais podem ser detectados com dois anos de antecedência. Uma missão poderia ser enviada com o intuito de desviar a órbita do asteroide, evitando o impacto, como explico no livro "O Fim da Terra e do Céu".
A história das colisões que ocorreram na Terra nos ensina algo crucial sobre a vida: se a história tivesse sido outra, a vida aqui teria evoluído de forma diferente e não estaríamos aqui. Nossa existência é produto de eventos cósmicos de dimensão apocalíptica, acidentes que causaram mudanças drásticas nas condições terrestres, afetando as espécies e destruindo muitas delas.
Quando o balanço ecológico muda, mudam o equilíbrio dinâmico entre presa e predador e a distribuição de alimentos. A pressão ambiental leva a novas condições que vão beneficiar certas espécies em detrimento de outras.
Como cada planeta tem a sua história e nenhuma é idêntica, mesmo supondo que outras "quase-Terras" existam pela galáxia afora e que a vida exista nesses planetas, ela terá características diferentes. Consequentemente, humanos só existem aqui, resultado dos detalhes da história única de nosso planeta.
A história da vida num planeta reflete a história da vida do planeta. Como histórias planetárias não são duplicáveis num universo finito, somos únicos no Universo. Uma boa lição que os dinossauros nos ensinam, especialmente naqueles dias em que você não se sente lá muito importante.

Daqui a 50 anos - ELIANE CANTANHÊDE

FOLHA DE SP - 20/05


BRASÍLIA - Sabe-se tudo de Getúlio Vargas, mas ele continua sendo um desafio, 82 anos depois de ter chegado ao poder e 58 após a sua morte.
Personagem político mais biografado da história brasileira, ele não para de ser objeto de lançamentos, num grau crescente e desafiante de sofisticação e de detalhes.

Para citar três: "Os tempos de Getúlio Vargas", de José Carlos Mello, editora Topbooks, "Getúlio", de Lira Neto, Companhia das Letras, e "A Esfinge dos Pampas", de Richard Bourne, Geração Editorial.

Isso remete à força simbólica da imagem da primeira mulher presidente com os antecessores pós-1985 para a instalação da Comissão da Verdade e o início da Lei de Acesso à Informação. Momento histórico.

Sarney foi o abre-alas inesperado e atrapalhou-se na economia, mas deixou a redemocratização fluir.

Collor foi uma perplexidade, um episódio que a história ainda não mastigou e digeriu. Boi de piranha?

Itamar e Fernando Henrique patrocinaram o Real e FHC quebrou monopólios e tabus. Mudou o país.

Lula fez uma revolução social e tornou-se quase um novo Getúlio na adoração popular.

Dilma mantém a dinâmica do processo, tentando ser a síntese de tudo isso, mas fazendo correções.

Toda essa história, de 27 anos, é ainda sentida mais por corações, bolsos e corporativismos do que pela razão, pela realidade e pelo todo.

Talvez só daqui a 50 anos, visto sob perspectiva e por quem está por nascer, esse círculo virtuoso e seus percalços possam ser avaliados, escritos e vistos como eles são. (Lira Neto nasceu em 1963, nove anos após a morte de Getúlio.)

Será a hora, então, de ajustar uma balança desequilibrada entre a percepção de hoje sobre FHC e Lula. O melhor livro aliás, não será sobre um ou outro, mas o que retratar a realidade: FHC, Lula e Dilma fazem parte de um mesmo processo e, portanto, são capítulos da mesma obra.

Mapa da inclusão digital - MARCELO NERI

FOLHA DE S.PAULO - 20/05


Os principais motivos da exclusão são desinteresse (33%) e incapacidade de usar a internet (31%)

O último dos objetivos de desenvolvimento do milênio (MDGs) da ONU fixados para 2015 discute parceria entre governos, setor privado e sociedade civil. A evidência é que quando há alinhamento de interesses entre diferentes atores, a sinergia obtida faz com que o todo seja maior do que as partes. A internet é a maior guardiã da promessa de alinhar a aldeia global, de colocar todos na mesma página.
Entretanto, temos dado as costas para metas de conectividade. Integro um grupo de especialistas de vários países que propõem novos objetivos para depois de 2015. Iremos sediar na FGV, em setembro, conferência sobre os Post-2015 MDGs. A última meta da ONU em curso inclui acesso à internet. Os novos objetivos já propostos sugerem meta específica de conectividade.
Buscando subsidiar o debate, nesta semana lançamos o primeiro de uma série de estudos sobre conectividade fruto da parceria entre o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas e a Fundação Telefônica no sentido de mapear as diversas formas de acesso à tecnologia digital, sua qualidade, seu uso e seus retornos proporcionando uma perspectiva de atuação integrada com outras ações que buscam o norte do desenvolvimento inclusivo sustentável.
Nesta primeira etapa (vide www.fgv.br/cps/telefonica), respondemos a perguntas diversas: Como evoluiu o binômio inclusão/exclusão digital no Brasil? Saiu de 8% de domicílios com internet para 33% em um período de dez anos.
Esse nível atual coloca o país na exata média mundial, sendo o 63º lugar entre os 158 países mapeados. É sintomático que o nosso estudo de dez anos atrás se chamava mapa da exclusão digital; o atual, mapa da inclusão digital, por sugestão de Antonio Valente.
O Brasil tem um mundo dentro de si desde São Caetano (SP), que apresenta o maior índice do país de acesso à internet em casa (74%, similar ao do Japão), a Aroeiras (PI), que tem zero virtual.
O líder mundial é a Suécia, com 97% de domicílios conectados, índice similar ao da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Já Rio das Pedras, a favela vizinha, tem o menor percentual da cidade (21%), parecido com o do Panamá.
Os cinco primeiros do ranking global são países nórdicos, os mesmos que lideram o ranking de felicidade reportada pelas próprias pessoas. Não que um cause o outro, mas ambos integram a mesma cena.
Como medir a conectividade? As bases supracitadas identificam apenas o acesso das pessoas a computador, conectado ou não à internet, em suas casas, e não o efetivo uso da rede mundial de computadores.
No âmbito das políticas públicas, é preciso monitorar o efetivo uso da internet e seus respectivos locais, podendo haver mais de um local entre os incluídos: casa, 57%; LAN houses, 35%; trabalho, 31%; casa de amigos, 20%; escola, 18%; locais públicos gratuitos, 5,5%.
No que se refere à qualidade de acesso domiciliar, 80,7% foram feitos em banda larga e o grosso restante por meio de acesso discado.
Quais são as razões dos sem-rede? Elas são diversas, variando de lugar para lugar. Na capital mais incluída, Florianópolis, que é líder da banda larga, vigora a falta de interesse (62% de respostas da minoria excluída). Lá é, sintomaticamente, a capital da classe AB. Se a carteira de trabalho é o símbolo da nova classe média, ou classe C, a internet banda larga é o da classe AB. Como item de consumo, mas acima de tudo para educação, para trabalhar e em busca por trabalho.
A distante Rio Branco é a capital do motivo falta de estrutura (42%). Já na hospitaleira João Pessoa é onde as pessoas não acessam mais por falta de conhecimento (47%). Talvez por isso, lá é aonde as pessoas acessam mais a internet em casa de parentes e de amigos.
Olhando a média nacional, o principal motivo da exclusão é a falta de interesse (33%), seguido pela incapacidade de usar a internet (31%). Ambos decorrem dos problemas educacionais vigentes.
Não basta que computadores caiam de paraquedas na vida das pessoas. Se navegar na rede é preciso, educar também é preciso!

Um pequeno grande jornal - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 20/05


O 'Diário Carioca' introduziu no jornalismo brasileiro a técnica redacional norte-americana do lide e sublide



O "Diário Carioca" (1928-1965) nunca esteve entre os grandes jornais brasileiros mas, ainda assim, marcou época e contribuiu para a modernização de nossa imprensa. É o que está evidente no livro que Cecília Costa acaba de publicar e cujo título diz exatamente isso.

Conforme nos conta, foi por acaso que soube desse jornal, de que mal ouvira falar, já que ninguém o lia em sua casa. Foi atrás, pesquisou, ouviu jornalistas que nele haviam trabalhado e nos deu um livro feito com indiscutível empenho, rico de informações e pleno de lucidez.

O assunto também me diz respeito, muito embora o "DC" nada me deva. Muito pelo contrário, fui eu que muito aprendi no pouco tempo em que ali trabalhei. Lembro esse tempo com muito prazer e saudade, uma vez que nunca pertenci a uma Redação de gente tão bem-humorada quanto aquela. Esse bom humor se refletia nos textos, nos títulos e às vezes na escolha dos assuntos noticiados. O principal responsável por isso era Luiz Paulistano.

Já me referi, aqui mesmo, noutras crônicas, a esse ambiente de camaradagem que nos contaminava a todos. Mas o "DC" não se limitou a isso: implantou no jornalismo brasileiro a técnica redacional norte-americana do lide e do sublide, que veio substituir, em nosso jornalismo, o velho "nariz de cera".

A nova técnica introduzia o leitor de imediato no fato que estava sendo noticiado, já que, em dois parágrafos de quatro linhas cada, saberia o fato que se queria contar, quem era o autor da ação, onde e quando ocorrera e por quê, se fosse o caso.

Mas o livro de Cecília Costa não se limita a nos contar a história do "Diário Carioca". Vai adiante ao nos informar do desdobramento que aquela experiência jornalística conheceu, quando alguns daqueles redatores transferiram-se para o "Jornal do Brasil", em 1958, no momento em que se iniciou a renovação do velho jornal, então transformado num veículo de anúncios classificados. Nem Redação tinha mais, e as notícias eram transcrições do que publicava a agência oficial do governo federal.

A renovação do "Jornal do Brasil" começou, de fato, com o suplemento literário (o "SDJB"), criado por Reynaldo Jardim no ano de 1956. O êxito desse suplemento estimulou a condessa Pereira Carneiro, sua proprietária, a renovar o próprio jornal. Chamou Odylo Costa Filho para fazê-lo.

O acaso, como se sabe, é um fator decisivo na existência dos fatos e das pessoas. E assim foi que, por acaso, fui parar na Redação do "JB", por indicação de Carlos Castelo Branco. É que, àquela altura, já o "DC" atrasava pagamento dos salários, e eu necessitava daquela grana para as despesas da família.

Assim foi que, por acaso, me tornei chefe do copidesque do "JB". Para compô-lo, sugeri a Odylo a contratação de dois redatores: Jânio de Freitas e José Ramos Tinhorão, ambos ex-colegas meus no "DC". A vinda de Jânio -que era meu amigo desde quando trabalhamos na revista "Manchete"- foi decisiva.

Com a colaboração de Amílcar de Castro, começou uma revolução gráfica no "JB". Já falei aqui, mas acho importante repetir: naquela época, as primeiras páginas dos jornais eram ocupadas por matérias que continuavam nas páginas de dentro, quaisquer páginas.

Jânio mudou isso, ocupando a primeira página com resumos das notícias principais, que estariam completas numas mesmas páginas, conforme o assunto. Isso obrigou a escrever as matérias em tamanho definido. Assim nasceu o papel diagramado: cada redator tinha que ater-se a um número exato de linhas.

O jornal ganhou em organização e em clareza. Pode ser que exagere. A verdade, porém, é que os demais jornais pouco a pouco absorveram essas inovações surgidas no "Jornal do Brasil".

Cabe ressaltar que uma parte importante do livro de Cecília são depoimentos que nos mostram, sem mistificação, o que eram os jornais daquela época.

Epidemia oculta - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 20/05


Já há alguns anos o autismo tem representado uma grave crise pública nos Estados Unidos. O caráter emergencial aumentou no fim de março, quando um respeitado estudo relatou que a possibilidade de uma criança ser diagnosticada com autismo aumentou em 20%. De acordo com o estudo, uma em cada 88 crianças foi diagnosticada com autismo em 2008. Dois anos antes, a proporção era de uma criança a cada 110. Em 2002, o diagnóstico era dado a uma em cada 155 crianças.

Ninguém sabe se o rápido aumento na incidência desse diagnóstico decorre do fato de a doença ter perdido seu estigma social, de o chamado "espectro" do distúrbio ter sido alargado, ou de um número cada vez maior de pessoas realmente apresentarem autismo. (Alguns países têm maneiras mais indiretas de lidar com a doença. Na Coreia do Sul, quando os médicos encontram o distúrbio, eles o atribuem à negligência e ao abuso por parte dos pais. Assim, as crianças são poupadas de um temível estigma.) A causa por trás da crescente incidência do autismo não importa tanto. Os pais estão aterrorizados.

Em 1998, um médico britânico chamado Andrew Wakefield publicou um estudo numa importante revista científica de medicina afirmando que certas vacinas dadas durante a infância causavam o autismo. O resultado foi um grande movimento de pais que se recusaram a vacinar os filhos. Embora a pesquisa de Wakefield tenha sido totalmente desacreditada e suas afirmações, refutadas - entre outras, pela própria revista que as publicou -, o movimento contra a vacinação continua a prosperar com a força de um culto. Um conhecido meu, crítico, romancista e poeta extremamente talentoso, ainda se recusa a vacinar os filhos pequenos. Em vez disso, ele e a mulher levam as crianças nas viagens que fazem pelo mundo, conhecendo lugares onde doenças já eliminadas no Ocidente ainda sobrevivem.

Uma criança autista pode partir o coração de pais amorosos, trazer sofrimento aos irmãos, acabar com os laços que unem as famílias. Corremos o risco de parecer levianos na tentativa de refletir a respeito do significado cultural da doença. Mas a incrível vulnerabilidade sentida agora pelos pais pede para ser analisada num contexto mais amplo.

O espectro do autismo é bastante amplo, com crianças com incapacidade na fala ou no funcionamento mental num dos extremos, e aquelas no outro extremo sofrendo da síndrome de Asperger, um quadro altamente funcional caracterizado pela obsessão por objetos como trens e aspiradores de pó, pela dificuldade na interação social e pela incapacidade de ler as emoções dos demais. Mas os dois traços partilhados por crianças de todo o espectro do autismo são uma facilidade radical para a distração e a falta de empatia. Por acaso, estas são qualidades que hoje afligem a população em geral.

Faz cerca de 60 anos que assistir televisão se tornou um modo de vida, mas a consciência leva certo tempo para ser transformada. Somente agora estamos sentindo os efeitos decorrentes de mergulhar a cabeça numa tela, de sermos reduzidos a receptores passivos de ondas de inanidade, de termos a atenção puxada para lá e para cá por imagens em rápida sucessão. Cada vez mais vejo-me conversando com pessoas que começam a assoviar para si mesmas enquanto estou falando. (É claro que isto pode ser decorrência da qualidade do meu papo; este tema fica para outra coluna.) Cada vez mais ouvimos falar no aumento do número de divórcios, assassinatos em massa em escolas e ambientes de trabalho, ou simplesmente nas sociopatias mais mundanas, como a ingratidão e a traição. Assustadoramente, as propriedades clínicas do autismo parecem ser a vanguarda de uma epidemia oculta e mais comum.

Poderíamos dizer que a internet cumpriu a promessa anômica da televisão. O afastamento das demais pessoas tem agora uma estrutura que se sustenta sozinha: podemos estar ao mesmo tempo sozinhos e acompanhados pelos outros. Na internet, a distração absoluta se assemelha ao envolvimento absoluto. E, quando estamos na rede, a falta de empatia é um estado de espírito que permeia tudo. Um número cada vez maior de pessoas parece tentado, pela tela e pela solidão, a maldizer, aterrorizar e até destruir outros que estão presentes no mundo online apenas como fantasmas, como projeções da atormentada imaginação de outrem.

É claro que não estou dizendo que existe um elo entre a TV, os computadores e o autismo. Está se tornando cada vez mais evidente que o autismo e os distúrbios a ele relacionados têm a ver com um gene defeituoso, com uma trágica falha na estrutura genética que nada tem a ver com o ambiente nem com o histórico genético dos pais. E, no mínimo, a crescente incidência do autismo tem a ver com a aplicação desse diagnóstico a um comportamento que era antes considerado apenas estranho ou excêntrico. De acordo com a definição clínica atual, Dom Quixote, Werther e Pierre Bezukhov, personagem de Tolstoi, eram todos portadores de Asperger. Provavelmente, 80% dos personagens de Dickens existem em algum ponto do espectro do autismo.

Mas o que se tornou claro é que o autismo é a contraparte patológica de um fenômeno sociológico. Se ambas as realidades contêm algo além de uma coincidência, ou se são atributos significativos de uma sociedade em transformação, é um segredo que, por enquanto, permanece trancado no futuro.

O que move a História - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

O ESTADÃO - 20/05

Os pais de Adolph Hitler teriam sido aconselhados a levar o menino para uma consulta com um médico que estava revolucionando o tratamento de distúrbios mentais, em Viena. Mas decidiram que o que o Adolphinho fazia com insetos era normal para a idade dele e não procuraram o Dr. Freud. O resultado foi o que se viu.

Karl Kraus escreveu que a Viena do começo do século 20 era o campo de provas da destruição do mundo. A derrocada do império Austro-Húngaro foi o fim de um certo mundo, mas acho que Kraus quis dizer mais do que isto. Para ele, as revoluções do pensamento postas em movimento na Viena da sua época trariam o fim do longo dia do humanismo europeu que durara desde a Renascença, e o novo século restauraria a idade das trevas.

O encontro que não houve entre o intelectual judeu que radicalizou o estudo da consciência e o homem que quis eliminar as duas coisas, o judeu e a consciência, da História simboliza este prenúncio, ou esta intuição de Kraus, sobre o século. Seria fatalmente o século do desencontro entre as duas formas de modernidade, a que liberava o pensamento pela investigação científica e a que o aprisionava pelo mito do estado científico.

A questão é até onde coisas vagas como o clima intelectual de uma cidade, ou clínicas como a maluquice de alguém, influenciam a História, ou até que ponto uma boa terapia pediátrica teria evitado o Holocausto. A História teria sido diferente sem Hitler, ou com um Hitler no poder mas tratado por Freud? A ideia do nazismo como uma anomalia patológica, como coisa de loucos, é uma ficção conveniente que absolve boa parte da direita cristã europeia da sua cumplicidade.

Mas a ideia de um determinismo neutro, independente de qualquer escolha moral, também é assustadora. Precisamos de vilões mais do que de heróis, de culpados muito mais do que de inocentes. Nem que seja só para preservar o autorrespeito da espécie.

O materialismo histórico rejeita a ideia de sujeitos regendo a História e marxistas ortodoxos reagem a qualquer sugestão de que as ideias justas venham de um discernimento moral inato. Assim a História como um relato de mocinhos providenciais em guerra com bandidos doentes sobra para a literatura, ou essa categoria de ficção sentimental que é a História convencional.

Pois gostamos de pensar que é a iniciativa humana que move a História, e que o seu objetivo, mesmo que tarde, seja moral e justo, e que ela tenha uma cara e uma biografia.

A nova ordem e a força social - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 20/05


Maquiavel dizia: "Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas". E o cardeal Richelieu lembrava em seu testamento político: "O que é apresentado de súbito em geral espanta de tal maneira que priva a pessoa dos meios de fazer oposição, ao passo que quando a execução de um plano é empreendida lentamente a revelação gradual do mesmo pode criar a impressão de que está sendo apenas projetado e não será necessariamente executado". Entre as trilhas abertas por esses dois grandes formuladores da ciência política caminha o Brasil.

Quem garante que o País não se tem esforçado para abrir uma nova ordem de coisas pode estar acometido de cegueira partidária, essa que confere aos adversários (momentâneos) dos governos a capacidade de enxergar apenas por um olho, o da oposição. E quem defende a tese de que o edifício das reformas já está construído - e que tudo anda às mil maravilhas - é um habitante passional do condomínio governamental. Por sua lupa de lentes grossas, os feitos batem nas alturas. Nem uma coisa nem outra. O País faz consertos, sim, nas estruturas, mas o trabalho é lento. Os avanços não seguem o modelo "arrombar a porta" da Blitzkrieg. Por aqui a estratégia lembra mais a do general Quintus Fabius (275 a.C.-203 a.C.), conhecido por fustigar o cartaginês Aníbal Barca nas guerras do sul da Itália, nunca recorrendo ao confronto direto, mas "comendo pelas bordas". Faz mais nosso estilo. Quem não se lembra da angústia causada pelo abrupto confisco da poupança na era Collor?

Nas últimas duas décadas avançamos no terreno da racionalidade. Implantaram-se sistemas, métodos e programas voltados para o aprimoramento da gestão pública, da moralização dos padrões da política, da defesa dos direitos humanos, da igualdade entre classes e gêneros. Nossa democracia foi bastante lapidada. Na última semana mesmo, o País instalou a Comissão da Verdade, com o objetivo de investigar crimes perpetrados por agentes públicos, e ganhou a Lei de Acesso à Informação, pela qual os cidadãos tomarão conhecimento do que se passa nos municípios, Estados e União, em todos os Poderes. No rol de mecanismos para moralizar a gestão pública vale destacar a Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000, que condiciona gastos de Estados e municípios à capacidade de arrecadar tributos. É mecanismo central para barrar a gastança de administradores que tentam pendurar-se na gangorra eleitoral. Mesmo assim, não é pequeno o número de entes federativos que levantam dificuldades para aplicar na plenitude aquele dispositivo, sob o argumento de que os orçamentos se têm estreitado. Como se vê, por aqui a cultura moralizante baixa a conta-gotas. E sob muita lentidão.

Ainda na trilha dos direitos humanos e da cidadania se pode apontar um conjunto normativo de muita significação, como a Lei Maria da Penha, contra agressões à mulher no ambiente doméstico e familiar; a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis candidatos e governantes às voltas com a Justiça; o Estatuto da Criança e do Adolescente; a lei das cotas, que garante reservas em vestibulares para negras e negros; o dispositivo que pune empresas por estabelecerem menor remuneração para mulheres que exercem a mesma função que homens; e a lei para o refugiado, considerada uma das mais avançadas do mundo no gênero, que deverá ampliar os direitos dos imigrantes. O acervo de instrumentos legais, como se pode concluir, é vasto e contempla os mais variado núcleos, categorias e esferas. Ao longo das legislaturas vão ganhando reparos, passando por ajustes e se incorporando às culturas administrativa e política. Moldam-se, paulatinamente, às pautas cotidianas e mesmo as leis que recebem protestos de setores organizados - caso da Lei Seca - acabam sendo aplaudidas. Chama a atenção o fato de que a nova ordem que se esboça resulta de uma forte ação social. Essa é a boa nova. O País alarga o caminho do aperfeiçoamento das instituições sob o empuxo de uma efervescente democracia participativa, como se vê na mobilização de caravanas que comparecem às audiências públicas no Congresso e às sessões do STF, cuja sintonia com a sociedade nunca foi tão afinada.

O movimento centrípeto - das bases para o centro da política tradicional - sinaliza horizontes promissores, eis que abre a perspectiva de uma sólida democracia participativa. Ou seja, funcionando como aríete contra os vetustos bastiões dos exércitos que tomam assento no Congresso, os polos de poder que nascem nas vanguardas sociais forçam partidos a assumir posições inovadoras e a desconcentrar a velha política. O Estado oxigena suas estruturas e a Nação passa a ganhar altas taxas de civismo.

Exemplo dignificante dessa força centrípeta é a vassoura ética simbolizada pela Lei da Ficha Limpa. Construída nas oficinas sociais, foi levada ao Parlamento com o registro de mais de 1,3 milhão de assinaturas. A conclusão emerge: o Brasil não é mais um gigante dormindo em berço esplêndido. Está desperto. Uma bandeira reformista tremula por todos os espaços. Claro que a representação política faz a sua parte. Daí se aduzir que vivemos hoje sob o signo de uma feliz interação da macropolítica, sob as cúpulas do Parlamento, com a micropolítica, sob o império dos novos circuitos de representação (organizações, núcleos, grupos, etc.).

Outra hipótese floresce. A mudança, a inovação, a renovação são processos que começam a inspirar a sociedade em sua caminhada. Um Brasil racional, mais justo e ético, está sendo plasmado nos fornos sociais. Ao contrário do que alguns ainda verberam, as massas não desejam apenas pão e circo. Querem serviços de qualidade. Se a democracia representativa não atende ao seu clamor, levantarão com vigor a bandeira da democracia supletiva. Uma leitura dos eventos de nossa política mostra que o aviso é para valer.

Dialética da originalidade - JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O Estado de S.Paulo - 20/05


Fernando Henrique, ganhador do Prêmio Kluge, abordou criativamente nossa diversidade histórica


O Prêmio John W. Kluge, de 2012, concedido pela Biblioteca do Congresso, de Washington, ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, é-lhe outorgado "por uma vida de realizações no campo dos estudos humanísticos e das ciências sociais que não são abrangidos pelo Prêmio Nobel". Foi intenção do falecido magnata da comunicação, que dá nome ao prêmio e o criou, equiparar essa premiação à concedida pela Academia Sueca, fixando-o no montante equivalente, que é de US$ 1 milhão. Fernando Henrique Cardoso é o primeiro sociólogo e o primeiro brasileiro a recebê-lo. Anteriormente, foram premiados quatro historiadores, dois filósofos e um teólogo, sendo dois americanos, um francês, um irlandês, um polonês, um chinês e uma indiana.

O comitê do Prêmio Kluge ressaltou na obra de Cardoso o equilíbrio da profundidade da análise em relação com a evidência empírica. Ele é o primeiro ganhador do prêmio cuja obra científica é marcada pela interdisciplinaridade, abrangendo a sociologia, a ciência política e a economia, de que resulta uma análise sociológica original e profunda. No anúncio da premiação, o diretor da Biblioteca do Congresso ressaltou: "Sua aspiração fundamental é a busca da verdade sobre a sociedade do melhor modo que possa ser determinada, ao mesmo tempo que permanece aberto à revisão de conclusões na medida em que novas evidências se acumulam em decorrência de novas pesquisas ou de mudanças na realidade política e econômica".

Como ocorre com o Prêmio Nobel, a premiação de Cardoso é reconhecimento da qualidade da produção científica no Brasil na área das ciências sociais. Sua obra é o coroamento da linha de trabalho científico da chamada "escola sociológica paulista", que resultou da contribuição de cientistas como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Antônio Candido, Gioconda Mussolini, entre outros, da maioria dos quais Cardoso foi aluno e com os quais trabalhou.

Na obra de Fernando Henrique Cardoso, a interdisciplinaridade permitiu-lhe tratar de maneira criativa a diversidade histórica da sociedade brasileira e seu desenvolvimento desigual. Sua tese de doutorado sobre Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional é um marco na adoção do método dialético em estudos sociológicos. Ele conseguiu estabelecer, com originalidade, a relação entre capitalismo e escravidão, apesar do desencontro histórico que os opõe, e articular um caminho para a compreensão sociológica das determinações profundas de nosso crônico atraso social, político e econômico.

Por essa época, um dos temas dos cientistas sociais brasileiros era o do nosso atraso, o que chamavam de resistências à mudança. O grupo de Florestan Fernandes, na USP, do qual Cardoso fazia parte, dedicou-se aos diferentes agentes dessa resistência - operariado, jovens, Estado, empresariado. Coube a Cardoso realizar a pesquisa sobre os empresários e conhecer como eles próprios compreendiam mal seu papel histórico no desenvolvimento brasileiro. Ele termina seu livro sobre Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico com uma indagação que expõe o problemático impasse do Brasil de então e é o elo com seus estudos posteriores sobre a dependência: subcapitalismo ou socialismo?

Obrigado ao exílio no Chile pelo golpe de Estado de 1964, compreendeu que a nova realidade política e econômica, que se tornava a de toda a América Latina, pedia reinterpretação sobre as leis e tendências na cambiante situação histórica. Com Enzo Faletto, desenvolve uma das interpretações teóricas da chamada dependência. No seu entender, a dependência não fechava o caminho ao desenvolvimento econômico num cenário de consolidação do mercado interno e de globalização da economia. Ainda havia na situação de dependência lugar para uma práxis desenvolvimentista e transformadora, para crescimento econômico e desenvolvimento social. Sua versão da teoria, que se tornou referência de pesquisadores em muitos países, é um dos pontos destacados em sua biografia intelectual pelo comitê do Prêmio Kluge.

Uma característica da obra de Cardoso é a do conhecimento sociológico sobre a competência social de cada categoria para no conjunto da sociedade traduzir suas possibilidades históricas em realidade política, na construção da nação moderna e democrática. Ressalta a nota da premiação que o acerto de suas análises se confirmou na política modernizadora que imprimiu ao Estado quando ocupou a Presidência da República e na continuidade política que suas ações tiveram nos governos que o sucederam. Florestan Fernandes, seu professor, dizia que, não sendo a sociologia uma ciência experimental, a verificação do acerto de suas análises se dá na política.

No anúncio da premiação de FHC e na enumeração das razões em que se baseia, o diretor da Biblioteca do Congresso expõe uma biografia intelectual que em boa parte lembra o título de um livro de Max Weber, decisivo na formação de Fernando Henrique Cardoso: Ciência e Política - Duas Vocações, a vocação como chamamento e missão.

Sobre a Comissão da Verdade - CELSO LAFER


O Estado de S.Paulo - 20/05


A Comissão Nacional da Verdade, cujos qualificados membros foram empossados na semana passada, insere-se no âmbito do que se denomina justiça de transição, que diz respeito aos modos como, na passagem de regimes autoritários para a democracia, uma sociedade lida com um passado de repressão e violência. Comissões de Verdade são uma instância ad hoc com objetivo básico de apurar, num prazo determinado (dois anos no caso desta), fatos sobre graves violações de direitos humanos. Partem do pressuposto de que podem oferecer mais benefícios para a consolidação da vida democrática de uma sociedade do que a judicialização de processos políticos.

A Comissão da Verdade não é o marco zero da justiça de transição no Brasil. Tem como antecedentes a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, do governo Fernando Henrique Cardoso, bem-sucedida experiência de reparação aos familiares de mortos e desaparecidos entre 1961 e 1985, e a Comissão de Anistia, que desde o governo Lula propicia medidas indenizatórias de reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988.

A Comissão da Verdade deverá examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um direito à memória e à verdade histórica. Suas atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Ou seja, ela nem pune, pois não é justiça de transição retributiva (em consonância com a Lei da Anistia de 1979, que o STF considerou válida), nem indeniza, até porque da justiça de transição de reparação trataram as duas comissões acima mencionadas. Seu foco recairá sobre as circunstâncias que cercaram a vigência do regime autoritário e deverá cumprir papel de relevo para a afirmação dos valores democráticos, que é a sua razão de ser.

No que diz respeito à função da justiça, lembro que a comissão poderá receber testemunhos. A amplitude desses testemunhos lhe permitirá fazer uma justiça asseguradora das múltiplas vozes do sofrimento das vítimas e de seus familiares, a quem restituirá institucionalmente dignidade, por obra, para falar com Hannah Arendt, do poder redentor da narrativa e da diferença entre o descrever e o ouvir.

O papel da comissão não se confunde com o da anistia. Anistia, palavra de origem grega, significa esquecimento e tem proximidade semântica, e não apenas fonética, com amnésia. A anistia coloca-se desde Atenas, depois da vitória da democracia sobre a sangrenta oligarquia dos 30, sob o signo da utilidade política de apaziguamento das tensões de uma sociedade, e não sob o signo da verdade. Não é um perdão. É um esquecimento, juridicamente comandado, de atos cometidos de natureza penal. Esse esquecimento comandado, que alcança atos do governo e dos que a ele resistiram, foi, nesses termos, juridicamente reconhecido como válido pelo STF. Não exclui, no entanto, a afirmação de um direito de titularidade coletiva da cidadania brasileira, a memória da verdade factual de graves violações de direitos humanos. Para assegurar este direito a comissão foi criada.

A natureza da verdade que cabe à comissão apurar não é a verdade jurídica proveniente da judicialização de processos políticos. É, para recorrer novamente a Arendt, a verdade factual dos fatos e eventos, que é a verdade da política. Esta se caracteriza porque o seu oposto não é o erro, a ilusão ou a opinião, mas sim a falsidade da ocultação ou a mentira na manipulação dos fatos. Por isso seus modos de asserção não são os de evidência da verdade racional, mas o desvendamento dos fatos pelo testemunho e pelo acesso à informação escondida. Seu papel é, assim, e esta é a função principal da comissão, o de impedir o esquecimento por apagamento de rastros da violação de direitos humanos.

Para tanto ela deverá indicar as maléficas consequências, para a vida política democrática, do criptopoder, tanto no Estado quanto na sociedade, que age na sombra, porque tanto se oculta quanto oculta, isto é, esconde, pelo sigilo, o que fez em matéria de violência e violação de direitos humanos. Realçará, assim, a comissão, a validade do princípio de transparência do poder, que é constitutivo de um regime democrático.

A verdade factual a ser buscada com objetividade e imparcialidade pela comissão deverá ser uma contribuição para a História. Não é, no entanto, a História. O seu papel é constituir um local de memória da verdade factual da violação dos direitos humanos no Brasil no período que lhe incumbe averiguar, representativo de uma institucionalizada vontade de memória coletiva cidadã dos males dessa violação. Mas a memória não é História, pois escolhe, seleciona e é vivida no presente, com a preocupação do futuro.

A memória da repressão e o direito à verdade do sofrimento de suas vítimas são tanto uma comprovação de que não se manda impunemente quanto um componente indiscutível do que caracterizou o regime autoritário no Brasil. Este, no entanto, tem outros aspectos e escrever e interpretar sua história requer tomar em conjunto outras facetas do período, na coerência narrativa de uma síntese do heterogêneo. O que estou querendo dizer é que a avaliação histórica do período e de suas circunstâncias é uma indagação que passa por pesquisas e reflexões que não têm a característica da coisa julgada da verdade jurídica num processo penal. Explico-me com dois exemplos: o período do Estado Novo de Getúlio Vargas e a gestão presidencial de Floriano Peixoto foram períodos de significativas violações dos direitos humanos. Têm, no entanto, outras dimensões que a História vem examinando e avaliando de maneira mais ou menos positiva.

Em síntese, a factualidade para a qual contribuirá a Comissão da Verdade é o limite da liberdade de interpretação. Porém a realidade histórica é esquiva. Por ser humana, é equívoca e inesgotável, como observou Raymond Aron ao tratar dos limites da objetividade histórica.

MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO


FOLHA DE SP - 20/05


Alphaville prepara expansão com mais de 80 projetos
Negócio mais rentável do grupo Gafisa, que teve prejuízo de R$ 945 milhões no ano passado, a Alphaville Urbanismo trabalha em um projeto de expansão agressivo.

São 80 empreendimentos em desenvolvimento e três lançamentos previstos para este semestre. Cada um demanda aporte de R$ 50 milhões em média.

Até junho, a empresa anunciará condomínios em Teresina e Belo Horizonte, além da segunda etapa do empreendimento de Brasília.

Os três projetos seguem linhas diferentes de produtos da empresa.

Em Teresina, o residencial é voltado para a classe média. Terá mil lotes com cerca de 300 m2 cada um e preços a partir de R$ 80 mil.

Esse modelo econômico, que hoje corresponde a 25% do total dos produtos, deve alavancar o crescimento da empresa. "Em dois ou três anos, atingirá 40%", diz Marcelo Willer, diretor-executivo.

O projeto de Brasília envolve a construção de 15 condomínios e R$ 1 bilhão em investimentos. Pronto, deve ser ocupado por 200 mil pessoas e terá o dobro do tamanho do de São Paulo.

"É quase uma nova cidade", diz Fábio Valle, da empresa.

Empreendimentos similares, mas de menor porte, com capacidade para até 50 mil moradores, serão lançados em Fortaleza e Natal. Um terceiro está em andamento em Recife.

O projeto de Belo Horizonte, que consumirá R$ 90 milhões, segue o padrão original da Alphaville, com terrenos de cerca de R$ 250 mil.

DILMA DA DILMA
Conhecida como gestora rigorosa, a presidente da Petrobras, Graça Foster, não contente em mudar parte da diretoria, alterou também a rotina da empresa.

Reuniões de diretoria executiva sempre foram às quintas-feiras, quase sempre o dia todo. Desde que assumiu, em fevereiro, Graça vem dando uma canseira na sua equipe.

Os sete diretores passaram a se sentar com a chefe também às segundas-feiras, à tarde, por duas ou três horas, para discutir desempenho e plano de negócios (atual e de 2013 a 2017).

Nas reuniões que começam pela manhã, Graça, que está acostumada a almoçar em sua mesa de trabalho, emenda a refeição e dispensa o pessoal só no fim do dia. Já chegaram a sair às 11 da noite.

O QUE ESTOU LENDO
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Em recente viagem ao Oriente Médio e à Europa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse, brincando, ter levado "um monte de bobagens" para ler, entre elas "o fantástico 'L'Oeuvre au Noir" ("A Obra em Negro"), de Marguerite Yourcenar.

"É em um francês difícil", observa. "Mas é muito bom."

Na bagagem foi também "Listening to Unfamiliar Voices - the Arab Democratic Wave" (Ouvindo Vozes Pouco Familiares - A Onda Democrática Árabe), de Álvaro Vasconcelos, escrito em inglês, sobre a primavera árabe.

"E trouxe um livro mais simples, sobre Florença, um apanhado de memórias, de 'Cosimo de Medici', escrito por Luiz Felipe D' Ávila." Sem contar o "Le Monde Diplomatique", para ler uma longa entrevista de Stéphane Hessel, autor de "Indignai-vos!".

SINERGIA 'FAST'
Após comprar, na semana passada, a marca de frozen iogurte Yoggi, a holding BFFC, planeja expansão da rede. Está previsto abrir, em cinco anos, 150 novos pontos, segundo o presidente Ricardo Bomeny. A BFFC detém também as marcas Bob's, a gestão da rede Doggis, a de franquias de Pizza Hut na Grande SP e de KFC em SP e Rio. "Vamos ganhar escala e oferecer a franqueados a possibilidade de operar outras marcas do grupo", diz.

RESÍDUOS
Com previsão de investimento de cerca de R$ 120 milhões, a Sabesp fará parceria com cinco municípios do alto Tietê para implantar uma unidade de tratamento de resíduos sólidos.

A operação deve começar em 2015 e atenderá Arujá, Biritiba Mirim, Guararema, Mogi das Cruzes e Salesópolis.

O projeto, que fará tratamento térmico de lixo e geração de energia, será feito via PPP (parceria público-privada) e terá capacidade para 500 toneladas por dia.

"É um empreendimento para destinação adequada de lixo, com uma concepção do século 21, que é a de não criar passivos", diz a presidente da Sabesp, Dilma Pena.