segunda-feira, junho 22, 2020

Os quatro cavaleiros do terror - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 22/06

Só a destruição em massa de populações e instituições altera a desigualdade


Uma expressão que me causa especial desgosto é “o novo normal”. Não porque não ocorram mudanças decorrentes de epidemias, maiores ou menores, mas porque no mundo de hoje, no qual o marketing é a ciência fundamental, tudo fica ridículo quando a intenção primeira é a venda de uma visão de mundo açucarada para deixar as pessoas ainda mais infantilizadas do que já estão.

Hoje vou indicar um dos antídotos que temos à mão: um livro. O autor, o historiador Walter Scheidel tem uma hipótese muito consistente, chamada de “os quatro cavaleiros da igualdade social”, contra o montante de bobagens que anda circulando por aí, confundindo, como de costume, pensamento público com marketing de ideias.

Ele foi recentemente entrevistado nesta Folha, por ocasião do lançamento, no Brasil, do seu “The Great Leveler”, lançado pela Princeton University Press em 2018 e que aqui ganhou o título de “Violência e a História da Desigualdade – Da Idade da Pedra ao Século 21”.

Segundo o autor, a normalidade social por longos períodos sempre tende a acumular riqueza nas mãos dos mais ricos e a aumentar a desigualdade social. Só grandes devastações em larguíssima escala alteram a desigualdade —e, mesmo assim, após a normalização que se segue, a desigualdade retoma seu curso.

Para quem não lembra o que é desigualdade social ou pobreza em larga escala (sei da diferença conceitual entre as duas, mas não vou dar atenção a isso por aqui porque não é necessário), eu lembro: desigualdade social é o que faz com que políticas sanitárias na América Latina conhecidas como “lockdown” sejam, basicamente, cercar bairros periféricos ou favelas com alto índice de transmissão da Covid-19 e impedir que seus moradores circulem pela cidade, fazendo com que, assim, não contaminem o resto da população, inclusive parte da inteligência pública alienada.

Sei que belas almas entendem esse processo de maneira diferente, pois sempre confundem o Brasil com a Dinamarca, mas nada temos a fazer em relação a isso. Aliás, no mínimo dois países na América Latina colocaram esse tipo de política em prática, cercando seus bairros pobres.

Voltemos aos quatro cavaleiros da igualdade social. Segundo Scheidel, a desigualdade caminha passo a passo com a normalidade social. Os fatores dessa desigualdade surgiram já desde o Neolítico e se acentuaram com o tempo.

A sorte biológica (que se materializa em mais saúde e em boa hereditariedade tanto em relação a sua origem quanto em relação a sua descendência), as leis que normatizam a transmissão de riquezas materiais e imateriais (fator essencial para a tal segurança jurídica e comercial), as vantagens geográficas, a capacidade técnica de colher, cuidar e assegurar a riqueza acumulada, os governos e as religiões (instituições que trazem exatamente essa segurança), tudo isso são elementos da normalidade social e histórica.

A interrupção desse curso normal das coisas, contudo, só ocorre quando quatro fenômenos acontecem.

O primeiro são as guerras profundas, capilarizadas, amplas, industrializadas, duradouras —caso das duas guerras mundiais, das guerras napoleônicas e da Guerra Civil Americana, por exemplo. São conflitos com capacidade de matar pessoas em um nível gigantesco e de destruir a estrutura social, política e econômica existente.

O segundo fator são as revoluções, como a soviética e a chinesa, que mataram pessoas aos milhões e geraram uma guerra civil de capacidade devastadora.

O terceiro, a falência absoluta do Estado em uma determinada sociedade, levando ao caos social, político e econômico e debilitando a sociedade ao ponto de quase extinção.

O quarto? Pandemias. Porém, não esta pela qual estamos passando, que, até onde vemos, não terá nenhum efeito devastador se comparada a outras tantas. Trocando em miúdos, uma epidemia só consegue mudar alguma coisa de fato se matar milhões e milhões de pessoas, destruindo a sociedade de forma a ela não conseguir se retomada do ponto em que se encontrava.

Sim, apenas a destruição em massa de populações inteiras, instituições, redes de circulação de produtos e infraestrutura produtiva pode alterar a desigualdade social —e, mesmo assim, após a normalidade retomada a duras penas, a desigualdade tende a voltar.

Portanto, você e seu narcisismo brincando de home office não vão alterar nada na ordem desigual em que vivemos. Aliás, pelo contrário: deve piorar.

Estantes no vídeo - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 22/06

Ninguém dá entrevistas online na frente da geladeira ou do armário das panelas


Aldir Blanc, uma das grandes perdas impostas pela Covid, não podia ver uma foto em jornal de alguém diante de uma estante. Saía de lupa a ampliar a foto para ler os títulos nas lombadas dos livros. Aldir queria saber o que aquela pessoa gostava de ler e se tinha livros que ele ainda não tivesse e talvez precisasse ter. Lia dia e noite, sem parar. As fotos o mostravam em seu apartamento, na Muda da Tijuca, quase soterrado por eles. Se Aldir não tivesse sucumbido ao coronavírus, estaria hoje dando entrevistas online cercado por seu mundo de livros. Não seria exibicionismo e nem ele teria escolha. Eles tomavam os aposentos.

Transmissões online abundam agora na programação, e todo mundo aparece com uma estante ao fundo razoavelmente suprida de livros. Ou as pessoas lêem mais do que imaginávamos ou descobriu-se que a estante é o móvel mais nobre da casa, donde ser o cenário ideal. Não vi até agora ninguém se postar na frente da geladeira ou do armário das panelas. Não que não sejam também móveis da maior dignidade --- mas talvez uma parede com caçarolas não tenha o mesmo appeal de uma prateleira de livros.

Devido à alta incidência de estantes no vídeo, eu próprio passei a tentar decifrar os títulos nas lombadas e, pelo que já vi, cada entrevistado está bem servido de livros sobre sua especialidade. Os comentaristas políticos têm biografias de políticos; os esportivos têm histórias sobre futebol; os economistas, teorias econômicas.

Com uma exceção. Sempre que vejo o ministro da Economia Paulo Guedes na TV, ele está, sim, diante de uma estante, mas tristemente vazia exceto por alguns bibelôs e objetos não identificados. Zero livros.

Como o ministro se gaba de conhecer todas as teorias econômicas --- “no original”, frisou ---, imagino que tenha feito isso por correspondência. O que sua prática no ministério de Jair Bolsonaro, por sinal, demonstra.


Acreditem, caros! Devemos ser gratos por Bolsonaro e Queiroz serem quem são - REINALDO AZEVEDO

UOL - 22/06


Acabou a farra. Devemos, e peço que atentem para a ironia, ser de algum modo gratos a Fabrício Queiroz por continuar, mesmo escondido, a ser quem era. Imaginem se Jair Bolsonaro fosse mesmo um homem reto, fanaticamente apegado àqueles valores que ele solta da boca para fora, cercado de amigos de moralismo não menos severo, apegados a uma vida espartana, vocacionados para a moralização do processo político. A esta altura, só o chicote nos contemplaria, não é mesmo?

Até quarta-feira da semana passada, bastava que Bolsonaro se zangasse um pouco — e ele tende a se zangar por qualquer coisa —, e logo se falava em golpe. Como ele se expressa mal em português, com alguma frequência, a gente nem sabia o motivo da braveza.

Carlos, por seu turno, dizia coisas que nem pareciam deste mundo nas redes sociais, mas sempre convocando a voz das trevas. E Eduardo, o intelectual da família — para o padrão do clã, é claro —, soltava seus borborigmos filosóficos sobre ruptura institucional, ao mesmo tempo em que fazia lobby em favor de uma empresa de armas, tentando arrastar o Exército para o, digamos assim, negócio. E pronto!

Lá íamos nós, da imprensa, a fazer, sim, a nossa parte, mas ecoando, de algum modo, as ameaças imundas, ajudando a criar o caldo em que se cultivavam, além de coronavírus, outros patógenos — estes a ameaçar a democracia.

Lá íamos nós, da imprensa, a ouvir militares em off a anunciar que, com efeito, parte dos fardados andava mesmo insatisfeita com o STF, que estaria invadindo a competência do Executivo.

Lá íamos nós a interpretar sinais da caserna, ora porque os fardados falavam em excesso — os do governo —, ora porque silenciavam: os da ativa.

Eis que vem à luz o decreto de prisão de Fabrício Queiroz na quinta-feira. E, então se assiste a uma espécie de conversão rápida de Bolsonaro à democracia, ainda que pela via do silêncio. Pronto! Acabou a vontade de falar em golpe. Imagino a melancolia de alguns fardados, com ou sem pijama, quando ficaram sabendo de detalhes do despacho do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau.

Fabrício estava homiziado numa casa de Frederick Wassef, em Atibaia, advogado de Flávio Bolsonaro (consta que não mais desde este domingo) e, jurava ele, também do presidente, de quem é amigo e interlocutor habitual, sendo frequentador do Palácio. A família o chama "Anjo".

Apresentou-se de pronto para defender Fabrício o advogado Paulo Emílio Catta Preta, um defensor dos caros, que também advogava para miliciano já morto Adriano Magalhães da Nóbrega, chefão do tal Escritório do Crime.

Ficamos sabendo que a mulher de Fabrício, Márcia Oliveira de Aguiar, igualmente com prisão decretada, mas foragida, estivera em Minas com Raimunda, mãe de Adriano, para planejar, segundo o Ministério Público, a fuga de Queiroz. Participou da reunião Luís Gustavo Botto Maia, advogado de Flávio em causas eleitorais e um de seus homens de confiança.

Coloquem aí na conta: tanto a mulher de Adriano como Raimunda constavam da folha de pagamentos do gabinete de Flávio quando deputado estadual. O miliciano fez repasses para a conta de Fabrício no valor de R$ 400 mil.

O despacho de prisão traz a imagem de Fabrício pagando em dinheiro vivo mensalidades escolares das filhas de Flávio. Entre 2013 e 2018, 53 boletos passaram pelo mesmo expediente, totalizando R$ 153.237,65. O mesmo se deu com plano de saúde: 63 boletos em grana viva, num total de R$ 108.407,98.

Mesmo escondido em Atibaia — de onde saiu algumas vezes —, Fabrício procurava mexer seus pauzinhos. Ao receber uma mensagem de voz da própria mulher relatando dificuldades que um amigo do casal tivera com milicianos no Rio, ele promete intervir, deixando claro que tem acesso à cúpula da bandidagem. Instava, segundo conversas captadas, os envolvidos na rachadinha a não depor e coordenou, ao menos em um caso, o esforço para fraudar provas, tentando forjar assinaturas retroativas do ponto na Alerj para simular vida real de funcionários fantasmas.

O passado arrombou a fantasia golpista de Bolsonaro, o suposto moralista que teria vindo para acabar com os males do mundo. Golpe? Então o partido verde-oliva botaria suas armas a serviço do crime organizado, para entronizar o poder paralelo das milícias e para, em nome da pátria, oficializar o banditismo no poder?

Acho que não! Em matéria de desonra, ainda que indiretamente, as Forças Armadas já chegaram ao fundo do poço. É hora de bater em retirada, voltando às funções estritas que lhes reserva a Constituição. Fabrício é um problema de Bolsonaro, não do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. E quem se encarrega da questão, numa face, são o Ministério Público, a Polícia e a Justiça; na outra, é a política.

Todo golpe na democracia é uma desonra. Mas é preciso haver ao menos uma desculpa verossímil. Nesse caso, seria qual? A defesa da hora das forças paramilitares de Rio das Pedras?

Por que o Zoom cansa tanto? - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 22/07

Por mais que a imagem tente nos enganar, o fato é que não estamos olhando para ninguém


Circulou pela rede nos últimos dias um vídeo do ministro Gilmar Mendes que captura o momento após ele participar de videoconferência por Zoom. Nos segundos finais da reunião, o ministro está ainda sorridente e cordial. Tão logo a reunião termina, sem saber que a câmera e o áudio estavam ativos, o ministro bufa alto e solta um sonoro palavrão.

Acredito que a maioria das pessoas irá se identificar com essa exasperação. O fim de uma videoconferência é realmente um momento singular, que mistura sentimentos como raiva, cansaço, estresse e alívio.

Surgiu até uma expressão em inglês para definir esse momento: “Zoom fatigue” (fadiga de Zoom), em referência à cada vez mais popular plataforma. A origem dessa fadiga tem razões que merecem análise. Fazer uma videoconferência longa com câmera ligada envolve um esforço de comunicação que não é nada natural.

Por mais que a imagem queira nos enganar que estamos olhando e interagindo com pessoas, a verdade é que não estamos olhando para ninguém, mas sim para uma tela.

Nas relações pessoais físicas, a interação em “tempo real” permite construir confiança mútua pela leitura de sinais como expressões faciais, postura corporal e o fato de os envolvidos estarem vivendo uma mesma experiência de tempo e espaço.

Já a convivência em uma videoconferência é sempre dissociativa. O tempo até pode ser o mesmo. Mas o espaço e as experiências compartilhadas são radicalmente diferentes. Uma pessoa pode estar fazendo a reunião da cozinha de casa, outra do escritório, outra do carro e assim por diante, cada uma em um contexto social e emocional totalmente distinto.

Além disso, é impossível ler com precisão os sinais de quem está do outro lado. O emissor não sabe como o receptor reage à sua mensagem. Ao mesmo tempo, todos ficam prisioneiros de um quadrado virtual fixo, determinado pela câmera.

Para piorar, há o problema de para onde olhar. Se o participante olha para a câmera, isso produz um efeito positivo no receptor, que fica com a sensação de estar sendo olhado “nos olhos”. No entanto, gera um efeito contrário no emissor, que se desconecta da expressão facial da pessoa e passa a focar não um olho humano, mas sim o minúsculo e perturbador buraco negro da câmera, posicionada no topo da tela.

Se a decisão é olhar para o rosto da pessoa, ela pode estar posicionada no canto inferior esquerdo da tela. O ouvinte se conecta aos olhos dela, mas, para quem está falando, fica parecendo que a pessoa está com o olhar enviesado. Um desencontro total. O resultado de tudo isso é o cansaço, o estresse, a raiva e a frustração causados pela artificialidade das reuniões virtuais.

Ficam aqui duas singelas sugestões para mitigar o problema. Para os designers das plataformas, quando alguém falar, coloque o quadradinho da pessoa exatamente ao lado de onde a câmera estiver, e nunca em lugar oposto a ela.

Já para todos nós, que tal combinarmos o seguinte: é totalmente aceitável fazer uma videoconferência sem ligar a câmera. Isso reduz a dissociação entre tempo e espaço, o estresse e o desencontro entre os participantes. O ministro Gilmar Mendes e eu agradecemos.

READER

Já era Achar que assinaturas digitais são um tema de menor importância

Já é
 Modelo de assinaturas digitais no Brasil que depende do “Certificado Digital”

Já vem
 Medida provisória que pode levar a lei que melhora as assinaturas digitais no país

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

O governo Bolsonaro esfarela - LEANDRO COLON

Folha de S. Paulo - 22/06

Vendo o precipício se aproximando, o presidente se segura no centrão


O governo de Jair Bolsonaro acelera cada vez mais o passo para um esgotamento político irreversível. Fica a questão sobre até quando o país suportará essa sangria.

Sem ministros efetivos na Educação e na Saúde, o governo é negligente e omisso no combate a uma pandemia que já matou 50 mil e atingiu 1 milhão de pessoas em três meses.

O presidente foi encurralado pelo escândalo do ex-assessor do filho, o agora senador investigado no esquema de desvio de salário de assessores nos tempos de Assembleia no Rio.

Empresários e políticos aliados do Planalto são personagens principais dos inquéritos no STF que apuram atos antidemocráticos e disseminação de notícias falsas, as fake news.

Acuado, o governo lança mão de subterfúgios diplomáticos para facilitar a saída do país de um ministro demissionário para os Estados Unidos.

O presidente é alvo de investigação no Supremo pelas acusações de interferências no comando da Polícia Federal para atender a interesses pessoais e familiares.

Nem a economia salva. Afinal, por onde anda o natimorto Pró-Brasil, anunciado com pompa na escandalosa reunião de 22 de abril? Assim como não sabia onde estava Queiroz, Bolsonaro também não deve ter ideia do destino do programa.

Vendo o precipício se aproximando, o presidente se pendura no centrão. O mesmo centrão que fingiu prometer apoiar Dilma Roussef na véspera da votação que abriu seu processo de afastamento em 2016.

Bolsonaro emite escassos sinais de fôlego e tem exibido um semblante abatido, como ocorreu na quinta-feira (18) no vídeo da demissão de Abraham Weintraub e na live semanal.

Enfim, o Brasil vai aguentar mais dois anos e meio de um governo esfarelado?

As ações de cassação de chapa que correm no TSE são lentas e dependem de novos fatos, sobretudo do caso das fake news no STF. Outro processo impeachment certamente seria doloroso e desgastante para o país, mas Bolsonaro parece buscá-lo diariamente.

Modos sobrevivência e governabilidade - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 22/06

O presidente não foi eleito para cuidar dos filhos, mas para orientar um projeto nacional


O presidente Bolsonaro entrou no modo sobrevivência, que deve ser distinguido do modo governabilidade. Conforme o primeiro, ele orienta todas as suas ações para se manter no poder, sem nenhuma preocupação com o Brasil, procurando apenas conservar o mandato. Pelo segundo, ele teria de ter projetos, ideias e meios de execução, o que implicaria um governo moderado, sem conflitos e provocações, voltado para a articulação política.

A parceria com o Centrão, por exemplo, se faz sob o modo sobrevivência, mediante a distribuição de cargos em órgãos e empresas estatais, em flagrante contradição, aliás, com sua própria narrativa. Não importa, visto que necessita em torno de 200 deputados para evitar o processo de impeachment e sempre pode haver desfalques. Entre o mandato e a narrativa, o presidente já fez a sua opção, com evidentes prejuízos perante a sua rede de apoiadores digitais.

Daí não se segue, porém, que ele adquira governabilidade, pois isso significaria a capacidade de aprovar projetos de lei e emendas constitucionais, tendo, por sua vez, como condição a existência de ideias a serem apresentadas. Até agora, só tivemos ideias ao léu. E não se recorra à pandemia como justificativa, pois a inércia governamental é anterior a ela. O projeto de privatização e concessões apresentado com grande fanfarra mostrou-se raquítico. Também não foi apresentado nenhum projeto de reforma tributária, administrativa ou política. De novo, só falas e mais falas sem consequência, senão a demagógica.

O presidente encontra-se numa encruzilhada. Se permanecer orientado pelo confronto incessante, produzindo inimigos reais e imaginários, desgastará ainda mais o seu prestígio, pondo o modo sobrevivência em risco. O modo governabilidade, por seu lado, nem seria levado em consideração. Conseguiu ele até mesmo um prodígio: uniu o Supremo Tribunal em nome da defesa da Constituição! Até então quase tínhamos 11 Supremos, como se cada um fosse uma ilha de decisões monocráticas. Agora surge um coletivo. Nesse sentido, não tem por que o presidente reclamar da consequência de suas ações.

Seu risco aumenta ainda mais se sua erosão continuar se propagando pela opinião pública, atingindo até mesmo a sua rede de apoiadores. Muitos se sentem já abandonados, acionando, neles também, o modo sobrevivência. Se até pessoas próximas do presidente, como o ex-policial Fabrício Queiroz, são presas, o que podem esperar os demais? Se apoiadores importantes sofrem mandados de busca e apreensão ou quebras de sigilo bancário, onde fica a tão apregoada proteção presidencial ou de seu clã familiar? E se esses vierem a ser ainda mais atingidos? Até o modo sobrevivência naufragaria, pois o próprio apoio do Centrão tampouco é incondicional e perene, depende das circunstâncias. Nenhum partido ou parlamentar comete suicídio político.

Isso significa que o presidente deveria adotar o modo governabilidade. Considerando a sua família e a sua personalidade, as suas chances são pequenas, porém não desprezíveis. Ou seja, a moderação e a prática democráticas deveriam ser o seu norte, abrindo-se ao diálogo e à articulação política. Não poderia o presidente permanecer refém de sua linha ideológica, com ministros utilizando constantemente a polarização amigo/inimigo, como se o Brasil fosse uma mera preocupação lateral. O presidente deveria, nesse sentido, fazer uma reforma ministerial baseada em critérios técnicos, voltados para o progresso, abandonando suas posições anticientíficas e o confronto com os governadores. O Brasil acumula cadáveres e o presidente finge que nada é com ele, num menosprezo indizível pelo outro, pelos que sofrem e morrem aos milhares pelo País afora.

O presidente deveria olhar menos para a sua família e mais para o Brasil. Não foi eleito para ser pai e cuidar dos filhos, mas para orientar o Brasil num projeto nacional. Muitas esperanças foram nele depositadas e muitas foram as desilusões causadas. Jair Bolsonaro está cada vez mais isolado - isolado do Supremo, isolado da Câmara dos Deputados e do Senado, isolado da grande imprensa, isolado em parte dos outros grandes meios de comunicação, isolado progressivamente da sociedade em geral.

Sob o modo defesa, diz falar pelo povo, como se ele mesmo fosse o povo, ou a Constituição, numa espécie de delírio totalitário. Ou, ainda, confundindo os seus apoiadores digitais ou as pequenas aglomerações na saída do Palácio da Alvorada com expressões “populares”. O arremedo de participação, tendo como coadjuvante a mera demagogia, cobra o seu preço na insensatez crescente.

Urge que o presidente entre no modo governabilidade, pois apenas o modo sobrevivência não lhe permite aguentar mais dois anos e meio. Não aguenta porque o Brasil não aguenta. Desemprego aumentando, renda caindo e o PIB não se recuperando são fatores que podem terminar tornando viável o impeachment. A moderação e o abandono do conflito podem tornar-se, assim, condições da preservação mesma de seu mandato. Hoje está a perigo!

Do tamanho de um cometa - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 22/06

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade


Ironicamente, um governo machista que cultua armas pode descrever seu maior abalo com um poético símbolo fálico: um pênis do tamanho de um cometa. Foi assim que Fabrício Queiroz descrevia o futuro que esperava o grupo em torno de Bolsonaro.

Ironicamente, Fabrício se escondeu no sítio de um amigo em Atibaia. E a operação que o encontrou foi denominada Operação Anjo, em homenagem ao advogado da família Bolsonaro, acusado, no passado, de bruxaria.

O Brasil é um desafio para os romancistas. A tempestade perfeita acabou se abatendo sobre Bolsonaro: inquéritos sobre fake news e manifestações ilegais, militantes presos, deputados com sigilo bancário quebrado.

E, finalmente, a prisão de Queiroz. Não era o homem mais procurado do país. Mas era o mais solicitado. De todos os cantos brotava a pergunta: onde está Queiroz? Queiroz estava escondido na casa do advogado da família Bolsonaro. Para uma operação no nível de segredo de Estado, é de um amadorismo comovente.

A exposição dessas operações suspeitas de Bolsonaro talvez o enfraqueça nas Forças Armadas, bicho-papão com que ele nos ameaça a cada momento. Os militares têm aceitado tudo. Desde os ataques à República até a necropolítica de Bolsonaro na pandemia de coronavírus. Nos ataques à Proclamação da República pelo menos ficaram calados, não os endossaram. Mas a política de Bolsonaro é executada por um general da ativa que quer nos entupir de cloroquina porque seu líder assim o determinou.

A sorte é que nem sempre acertará no alvo. Confunde hemisférios e coloca o Nordeste acima da linha do Equador, e chama Rio Branco de estado. Sua imprecisa pontaria geográfica talvez nos ajude a sobreviver.

Também entre os que esperavam um combate à corrupção, Bolsonaro vai se enfraquecer. Aliás já estava se enfraquecendo com a queda do Moro. Caiu nos braços do centrão e agora vem à tona o esquema de Queiroz e seus milicianos.

Não creio, entretanto, que a situação ficou menos tensa. Ao contrário. Quem se sente encurralado tem mais chances de buscar ações desesperadas.

Antes da queda de Queiroz, comecei a escrever um artigo partindo de uma frase de Skakespeare em Hamlet: “Ai ai de mim por ver o que vejo.”

Era um artigo para lembrar que falhamos na pandemia, apesar do tempo de preparação. Perdemos mais gente, empregos e tempo por causa de nossa incapacidade nacional.

Estamos às vésperas de um novo desafio: uma profunda crise econômica e social. Onde Paulo Guedes vê um futuro brilhante, vejo suor e lágrimas, mais suor do que lágrimas, adaptando a famosa frase de Churchill aos trópicos.

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade e construção da mínima rede social num país que se dissolve.

Costumo dar como exemplo Paraisópolis. Imagino que sejam contra Bolsonaro, pois estive lá e vi como sofreram com a violência policial. Agora na crise, conseguiram uma ambulância, médicos, lugares para isolamento, criaram um sistema defensivo. Eles sabem que são tarefas do Estado, mas não podem esperar.

Uso esse pequeno exemplo para mostrar que em escala nacional não basta a grande batalha para derrotar o projeto autoritário de Bolsonaro. É uma luta que tomará tempo e, enquanto isso, o país continuará sangrando.

Tenho andado pouco pelas ruas. Mas percebo um número maior de gente em dificuldade. Conheço muitos moradores de rua do meu bairro. Alguns documento com fotos ao longo dos anos.

Nas poucas saídas, percebi que mudou a população de rua. Procuro alguns que conhecia e suspeito que morreram. Ao mesmo tempo, surgiram muitos novos, famílias inteiras.

A pandemia ainda nem acabou, e estamos diante de uma situação em que não podemos perder de novo. A imagem no exterior se evaporou. Nosso soft power — cultura, simpatia, natureza — foi para o espaço. O Brasil se isolou.

Mas ainda não desapareceu. Dai a histórica dimensão da tarefa. O único consolo é acreditar que a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.