Acabou a farra. Devemos, e peço que atentem para a ironia, ser de algum modo gratos a Fabrício Queiroz por continuar, mesmo escondido, a ser quem era. Imaginem se Jair Bolsonaro fosse mesmo um homem reto, fanaticamente apegado àqueles valores que ele solta da boca para fora, cercado de amigos de moralismo não menos severo, apegados a uma vida espartana, vocacionados para a moralização do processo político. A esta altura, só o chicote nos contemplaria, não é mesmo?
Até quarta-feira da semana passada, bastava que Bolsonaro se zangasse um pouco — e ele tende a se zangar por qualquer coisa —, e logo se falava em golpe. Como ele se expressa mal em português, com alguma frequência, a gente nem sabia o motivo da braveza.
Carlos, por seu turno, dizia coisas que nem pareciam deste mundo nas redes sociais, mas sempre convocando a voz das trevas. E Eduardo, o intelectual da família — para o padrão do clã, é claro —, soltava seus borborigmos filosóficos sobre ruptura institucional, ao mesmo tempo em que fazia lobby em favor de uma empresa de armas, tentando arrastar o Exército para o, digamos assim, negócio. E pronto!
Lá íamos nós, da imprensa, a fazer, sim, a nossa parte, mas ecoando, de algum modo, as ameaças imundas, ajudando a criar o caldo em que se cultivavam, além de coronavírus, outros patógenos — estes a ameaçar a democracia.
Lá íamos nós, da imprensa, a ouvir militares em off a anunciar que, com efeito, parte dos fardados andava mesmo insatisfeita com o STF, que estaria invadindo a competência do Executivo.
Lá íamos nós a interpretar sinais da caserna, ora porque os fardados falavam em excesso — os do governo —, ora porque silenciavam: os da ativa.
Eis que vem à luz o decreto de prisão de Fabrício Queiroz na quinta-feira. E, então se assiste a uma espécie de conversão rápida de Bolsonaro à democracia, ainda que pela via do silêncio. Pronto! Acabou a vontade de falar em golpe. Imagino a melancolia de alguns fardados, com ou sem pijama, quando ficaram sabendo de detalhes do despacho do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau.
Fabrício estava homiziado numa casa de Frederick Wassef, em Atibaia, advogado de Flávio Bolsonaro (consta que não mais desde este domingo) e, jurava ele, também do presidente, de quem é amigo e interlocutor habitual, sendo frequentador do Palácio. A família o chama "Anjo".
Apresentou-se de pronto para defender Fabrício o advogado Paulo Emílio Catta Preta, um defensor dos caros, que também advogava para miliciano já morto Adriano Magalhães da Nóbrega, chefão do tal Escritório do Crime.
Ficamos sabendo que a mulher de Fabrício, Márcia Oliveira de Aguiar, igualmente com prisão decretada, mas foragida, estivera em Minas com Raimunda, mãe de Adriano, para planejar, segundo o Ministério Público, a fuga de Queiroz. Participou da reunião Luís Gustavo Botto Maia, advogado de Flávio em causas eleitorais e um de seus homens de confiança.
Coloquem aí na conta: tanto a mulher de Adriano como Raimunda constavam da folha de pagamentos do gabinete de Flávio quando deputado estadual. O miliciano fez repasses para a conta de Fabrício no valor de R$ 400 mil.
O despacho de prisão traz a imagem de Fabrício pagando em dinheiro vivo mensalidades escolares das filhas de Flávio. Entre 2013 e 2018, 53 boletos passaram pelo mesmo expediente, totalizando R$ 153.237,65. O mesmo se deu com plano de saúde: 63 boletos em grana viva, num total de R$ 108.407,98.
Mesmo escondido em Atibaia — de onde saiu algumas vezes —, Fabrício procurava mexer seus pauzinhos. Ao receber uma mensagem de voz da própria mulher relatando dificuldades que um amigo do casal tivera com milicianos no Rio, ele promete intervir, deixando claro que tem acesso à cúpula da bandidagem. Instava, segundo conversas captadas, os envolvidos na rachadinha a não depor e coordenou, ao menos em um caso, o esforço para fraudar provas, tentando forjar assinaturas retroativas do ponto na Alerj para simular vida real de funcionários fantasmas.
O passado arrombou a fantasia golpista de Bolsonaro, o suposto moralista que teria vindo para acabar com os males do mundo. Golpe? Então o partido verde-oliva botaria suas armas a serviço do crime organizado, para entronizar o poder paralelo das milícias e para, em nome da pátria, oficializar o banditismo no poder?
Acho que não! Em matéria de desonra, ainda que indiretamente, as Forças Armadas já chegaram ao fundo do poço. É hora de bater em retirada, voltando às funções estritas que lhes reserva a Constituição. Fabrício é um problema de Bolsonaro, não do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. E quem se encarrega da questão, numa face, são o Ministério Público, a Polícia e a Justiça; na outra, é a política.
Todo golpe na democracia é uma desonra. Mas é preciso haver ao menos uma desculpa verossímil. Nesse caso, seria qual? A defesa da hora das forças paramilitares de Rio das Pedras?
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