domingo, junho 10, 2012

O som do Brasil - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 10/06

O Comitê Organizador Local da Copa de 14 deve aceitar ideia da Fundação Parque Tecnológico da Paraíba de disseminar no Mundial uma espécie de vuvuzela tupiniquim que desenvolveu e cujo som não irritaria muito.

O modelo lembra um apito indígena, comum em feira nordestina, chamado pedhuá (foto). 

Racismo não... 

Aliás, como agora na Eurocopa, uma das preocupações da Fifa para 14 é o racismo. 

Uma ideia é pôr atletas de vários países para fazer teste de DNA com o famoso geneticista mineiro Sérgio Danilo Pena e mostrar o resultado numa campanha mundial na véspera da Copa. 

Segue... 

Os testes feitos pelo Laboratório Gene mostram que todos somos um pouco mestiços. Não há raça pura. 

Luiza Brunet, por exemplo, tem 80% de ancestralidade europeia, 15,5% de ameríndia e o restante de africana. Eu apoio. 

Perna, só de mulher 

O Barra Music, reduto das funkeiras, pagodeiras, popozudas e de jogadores de futebol no bairro emergente do Rio, autoriza a entrada de mulheres com shorts minúsculos. Mas veta a entrada de homens de bermuda. 

Faz sentido. Ou não? 

Gritos de Caio 

A obra de Caio Fernando Abreu (1948-1996) vai voltar às livrarias em julho, com “A vida gritando nos cantos”, reunião de suas crônicas inéditas em livro. 

Aborda temática variada: amor, morte, política, sexo e solidão. Sairá pela Nova Fronteira. 

O DOMINGO É de Juliana Paes, 33 anos, dona de formosura sem fim, que posa aqui toda faceira como Gabriela, protagonista da nova adaptação para TV da obra magistral de Jorge Amado. Para interpretar a personagem, vivida na versão de 1975 por Sônia Braga, Juliana também se preparou fisicamente. Repare na foto. Os longos cabelos estão naturalmente cacheados, e a pele (e que pele, com todo o respeito), bem mais morena 

Choque de gestão 

Dilma deve aproveitar esta confusão no Banco do Nordeste (BNB) para trocar sua diretoria, como fez na Petrobras. 

Polícia Federal apura o desvio de mais de R$ 100 milhões no banco. 

Crise dos olhos azuis 

Esta semana, o escritor Fernando Morais, o senador Lindberg Farias e o diretor Carlos Manga Jr. voam para a Grécia. 

Participarão de um projeto de um longa sobre o tsunami econômico que se abateu sobre os EUA e a Europa.

Filme que segue... 

O título do documentário será “A crise dos olhos azuis”. 

É inspirado numa frase de Lula, a de que a crise financeira atual foi causada e fomentada por “gente branca e de olhos azuis”. 

Segurança no mar 

A partir de amanhã, o Corpo de Fuzileiros Navais começa a patrulhar a região da Ilha do Governador e do Galeão. Na Baía de Guanabara, haverá vários navios de prontidão. 

É a contribuição da Marinha para a segurança da Rio+20. 

Pianos do mestre 

Nelson Freire, nosso grande músico, importou mais um piano de cauda, agora de Nova York. 

Freire tem quatro em casa, na Joatinga, no Rio. 

O Tortura na UTI 

O Grupo Tortura Nunca Mais, que há 27 anos luta pelos direitos humanos e denuncia os crimes da ditadura no Brasil, atravessa grave dificuldade por causa, sobretudo, da crise na Europa, de onde vinha a maior parte de seus financiamentos. 

Em e-mail a uma lista de amigos, pede uma ajuda mensal fixa, em cotas estipuladas pelos próprios doadores, ou, do contrário, deve morrer. 

Brasil pirata 

Veja como o Brasil está na moda na Macy’s, a lojona de departamentos dos EUA. 

A filial Las Vegas da rede tem apresentado como coisas nossas camisetas feitas no Vietnã com a marca e as cores do Brasil, bonecas Hellow Kitty “made in China” e, entre outros, até produtos da Lancôme. 

Aliás... 

Deve ser terrível viver num país onde há pirataria... 

Água de beber, camará 

A poucos dias da Rio+20, Nelson Motta abriu a torneira de uma polêmica ambiental que está inserida no dia a dia dos habitantes de uma grande cidade como o Rio: a água da bica de casa — beber ou não beber, eis a questão. Ele lembrou que, há décadas, Nova York e Paris, por exemplo, consomem água da torneira sem qualquer problema, e não acredita que isso seja possível no Brasil. De fato, quando se vê a imagem da poluição no Rio Guandu — que abastece 80% da Região Metropolitana do Rio — é praticamente impossível sorver tranquilamente o precioso líquido que sai da torneira da própria casa. Mas o professor Paulo Canedo, coordenador do Laboratório de Hidrologia da Coppe-UFRJ, não apenas afirma que bebe, como recomenda a água da bica, tratada pela Cedae. Segundo ele, é mais limpa do que muitas outras vendidas naqueles garrafões azuis de plástico. 

O presidente da Cedae, Wagner Victer, assina embaixo. 

— Nossa água é produzida no estrito segmento das portarias do Ministério da Saúde e segue critérios muito mais rigorosos que o de países do chamado Primeiro Mundo — diz Victer, que está disposto a submeter nossa água de bica a um teste de São Tomé durante a Rio+20. Ele promete um laboratório móvel para testar a qualidade do líquido das torneiras disponíveis para delegações internacionais. 

— A água tratada é boa. No Rio, é, inclusive, fiscalizada pelo Ministério da Saúde — observa Canedo, ressaltando apenas que a Cedae controla a qualidade da água que sai de seus canos, mas não pode garantir sua qualidade após passar pela caixa d’água. 

Canedo diz que é preciso se preocupar quando a torneira fica na periferia, onde, às vezes, falta água da Cedae, que acaba misturada à de poço ou de carros-pipa. O professor afirma que a água da Cedae é bem clorada, e que isso mata bactérias e microorganismos. 

A análise mais recente, feita pelo Instituto Proteste, em abril de 2011, aprovou a água da Cedae que saiu da torneira de 25 pontos em seis áreas do Rio. A exceção foi a Ilha do Governador, onde, de uma torneira, jorraram também alumínio, ferro e manganês acima do permitido. A dúvida talvez explique por que o Brasil segue entre os primeiros países do mundo no consumo de água engarrafada. 

Jorge Antonio Barros

Novo foco de conflito - DENISE ROTHENBURG


CORREIO BRAZILIENSE - 10/06

A presidente não dá o menor sinal de que vá governar em parceria com os parlamentares. E, dessa forma, a cada dia eles escolhem um território para atacá-la. Agora é vez da Comissão Mista de Orçamento

Os parlamentares passam horas pensando em como armar algumas arapucas para causar desconforto a um governo que não realiza os desejos do Congresso Nacional. Nos últimos dias em que a CPI do Cachoeira toma conta do noticiário com os canhões de luz voltados aos governadores, a Comissão Mista de Orçamento tem se mostrado o local mais promissor para essas manobras políticas.

Quem acompanha o dia a dia da Comissão anda preocupado com o atraso deliberado na análise da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a legislação que norteará a elaboração do Orçamento da União de 2013. Para ter uma ideia da importância do tema basta dizer que a LDO é a única lei que, se não for aprovada dentro do primeiro semestre legislativo, deixa o Congresso inteiro de castigo. Ou seja, os trabalhos são prorrogados automaticamente, até a votação.

Há anos não se tem notícia de tanto atraso na votação da LDO. A culpa tem recaído sobre os oposicionistas. Mas essa versão não cola. É a base que, sistematicamente, tem feito corpo mole para avaliar a LDO. E ausência é deliberada para forçar o governo a olhar os desejos dos parlamentares com mais carinho. Convenhamos que um governo detentor de maioria expressiva no Congresso não teria dificuldades em aprovar a proposta se essa maioria estivesse consolidada e se sentindo parte do governo.

Por falar em sentimentos…
Os políticos não se cansam de reclamar da falta de tato da presidente Dilma Rousseff para tratar das questões do Congresso. Até os líderes do governo têm dificuldades de ser recebidos por ela. A sensação de deputados e senadores é a de que Dilma trata o Legislativo como se fosse um adversário a todo o tempo querendo puxar-lhe o tapete.

A presidente não dá o menor sinal de que vá governar em parceria com eles. Não deixa que tomem a linha de frente de alguns projetos, nem se mostra disposta a dar algumas vitórias à própria base. Ou seja, deixar que os parlamentares levem o crédito quando algo dá certo. Até um simples convite para acompanhá-la em viagens pelo país é raridade.

Tudo isso, somado à represa de grande parte das emendas e de indicações — ainda que técnicas — para cargos de governo, mantém Legislativo e Executivo distantes um do outro. A cada dia essa sensação de afastamento se cristaliza mais na base governista, embora a percepção do afastamento esteja amortecida no noticiário. Afinal, estamos em tempo de CPI e de proximidade do julgamento do mensalão.

Por falar em afastamento e CPI…
E, se a base não se sente parte do projeto como um todo, dificilmente responderá a contento quando a proposta for mais importante para o governo. A LDO, no momento, se encaixa nessa categoria. Ocorre que, se demorar demais, os parlamentares é que pagarão a conta do atraso. Afinal, a CPI até agora pegou parlamentares e governadores e não atingiu Dilma. O Código florestal, tema em que parlamentares apostaram para emparedar a presidente na Rio +20, deve ficar mesmo para depois da Conferência. Ela até agora tem conseguido se desviar de ou desarmar todas as arapucas que deputados e senadores tentaram colocar à sua frente. Resta saber por quanto tempo levará a melhor sobre o Parlamento. O embate da hora é a LDO. Vamos acompanhar.

Por falar em acompanhar…
Decisão judicial não se discute, cumpre-se. Mas essa saída do ex-diretor da Delta Claúdio Abreu da cadeia no meio da madrugada deixa a sensação de que alguém ajudou Abreu a escapar dos holofotes da imprensa. Como sabemos a Justiça vale para todos, vai ver que é apenas impressão.

Crescimento exige visão de longo prazo - GUSTAVO LOYOLA


O Estado de S.Paulo - 10/06


O governo anda preocupado com os números da atividade econômica. De fato, mesmo com a recuperação esperada ao longo dos próximos meses, consequência do afrouxamento monetário iniciado em agosto de 2011, parece cada vez mais difícil o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) superar este ano os 2%, quanto mais os 4,5% inicialmente estabelecidos como meta pelo ministro da Fazenda.

Diante deste quadro decepcionante, o governo reagiu com várias medidas de estímulo, praticamente todas elas direcionadas para o mercado de veículos. Houve redução do IPI e do IOF e a liberação seletiva dos recolhimentos compulsórios dos bancos para direcionamento ao crédito para aquisição de veículos.

Essas medidas terão algum efeito de curto prazo. Devem propiciar a antecipação das decisões de compra dos consumidores, que vão querer se aproveitar das condições temporárias mais favoráveis de preço e crédito. Contudo, esses estímulos são efêmeros, nem de longe tocam os problemas de fundo que estão impedindo o crescimento sustentável do PIB brasileiro a taxas maiores. Além disso, da maneira como adotadas, as medidas trazem distorções à economia e adicionam desnecessariamente riscos ao processo de intermediação financeira.

Um sem-número de economistas tem mostrado que a dinâmica que impulsionou o crescimento do País nos últimos anos perdeu força. De um lado, esgotaram-se os efeitos do aumento das transferências do setor público, por meio de programas como o Bolsa-Família e aumentos reais dos benefícios previdenciários. De outro, o endividamento das famílias brasileiras chegou a um nível em que parece pouco provável esperar que a expansão do crédito tenha o mesmo papel no aumento dos gastos de consumo como o observado na última década. Ademais, as perspectivas para o mercado de "commodities" não se afiguram mais tão favoráveis nos próximos anos.

Neste contexto, e na ausência de novas reformas microeconômicas que impulsionem o crescimento da produtividade e o aumento do investimento, era de esperar um arrefecimento do crescimento do PIB brasileiro, independentemente das condições conjunturais desfavoráveis acarretadas pelas incertezas em relação à Europa e pela queda da demanda externa. Medidas puramente de estímulo ao consumo trazem algum alívio imediato, porém a insistência nelas pode levar a desequilíbrios macroeconômicos sérios, como, por exemplo, o aumento das pressões inflacionárias no futuro e o excessivo endividamento das famílias.

Desse modo, é imprescindível que as políticas públicas passem a refletir a necessidade de aumentar o potencial de crescimento da economia brasileira nos próximos anos, sem que isso signifique abrir mão dos estímulos à demanda, quando cabíveis e necessários. Ao mesmo tempo, as políticas voltadas para a demanda devem ser tais que não provoquem distorções que venham a prejudicar o próprio potencial de crescimento econômico.

Os números recentes do comportamento do PIB brasileiro atestam que houve uma retração importante do investimento, já historicamente baixo para as necessidades do País. Parte disso, evidentemente, é resultado das incertezas conjunturais, mas há também causas estruturais. O ambiente de negócios no Brasil é prejudicado pela ineficiência do Estado, pela elevada carga tributária, pela incerteza jurídica em determinados setores de atividade, assim como pela baixa disponibilidade de mão de obra especializada, entre outros fatores.

Embora existam obstáculos políticos relevantes à implementação de reformas que exijam mudanças constitucionais, há espaço para medidas incrementais que podem estimular o investimento e elevar o crescimento da produtividade nos próximos anos. Entre elas, mencionam-se a simplificação tributária e da burocracia a que estão sujeitas as empresas no Brasil, a redução dos custos trabalhistas e a melhora da qualidade da educação pública. Além disso, os estímulos governamentais devem direcionar-se preferencialmente para a inovação tecnológica, englobando ações que contribuam para o aumento da produtividade.

A Grécia e a Europa - MARIO VARGAS LLOSA


O Estado de S.Paulo - 10/06


Naquela cena, ocorrida anos atrás, indicaram-me a cadeira ao lado de uma senhora de idade que cobria os olhos com grandes óculos escuros. Era amável, elegante, falava um francês primoroso e, apesar dos grandes esforços para dissimulá-lo, em tudo aquilo que dizia e opinava transparecia sua vasta cultura. Foi somente na metade do encontro que reparei, pela grande precaução dela no manejo dos óculos, que era cega ou, na melhor das hipóteses, tinha uma visão limitada. Depois de nos despedirmos, averiguei que Jacqueline de Romilly era uma grande helenista, catedrática de grego clássico na École Normale e em Sorbonne, primeira mulher a ser eleita membro do Colégio da França e uma das poucas representantes do gênero feminino na Academia Francesa.

O primeiro livro de autoria dela que li, Pourquoi la Grèce?, me deslumbrou tanto quanto sua pessoa. Por mais que aquilo que ela diga e conte no livro tenha ocorrido há 25 séculos, sua atualidade é tão extraordinária que a leitura da obra deveria ser obrigatória hoje.

O livro passa em revista o milagroso século 5 antes da nossa era, no qual a história, a filosofia, a tragédia, a política, a retórica, a medicina e a escultura alcançam na Grécia seu apogeu, assentando as bases daquilo que, com o tempo, passaríamos a chamar de cultura ocidental.

Homero e Hesíodo são muito anteriores ao século 5 a.C. e há muitos artistas, pensadores e autores de comédias posteriores a esse marco temporal. O ensaio não hesita em retroceder ou avançar para incluí-los no legado grego, ainda que a maior parte daquilo que é chamado de "visita guiada através dos textos" se concentre nesse pequeno período de cem anos no qual o reduzido espaço do mundo helênico vive uma espécie de eclosão frenética, enlouquecida, de criatividade em todos os domínios do espírito, com ideias, modelos estéticos, padrões intelectuais, invenções e descobrimentos, graças aos quais a civilização do logos se distanciaria decisivamente de todas as demais culturas do passado e de sua época e, sem ter tal intenção nem tal consciência, transformaria para sempre a história do mundo.

Desenvolvimento. Jacqueline de Romilly mostra que na Grécia nasceram, ou ganharam uma realidade e um dinamismo nunca antes observado na vida social de povo nenhum, os fatores determinantes do progresso humano, como a democracia, a liberdade, o direito, a razão e a arte emancipados da religião, as ideias de igualdade, de soberania individual, de cidadania, e uma maneira absolutamente nova de relacionamento entre o homem e o além, e os deuses, bem como uma ideia de beleza e fealdade, de bondade e maldade, de felicidade e infortúnio que, apesar dos inevitáveis matizes e adaptações que lhes foram impostos pela história, seguem vigentes.

Ficamos maravilhados ao ver que um povo tão pequeno e tão pouco coeso politicamente, cheio de numerosas cidades e colônias distribuídas pela Europa e a Ásia Menor, que conservavam entre si uma imensa margem de autonomia, um povo tão instintivamente reticente em formar um império, em praticar o imperialismo e em submeter-se à prepotência de um tirano tenha sido capaz de deixar na história da humanidade uma marca tão profunda. Isso não foi um acidente nem obra do acaso. Houve razões para esse desenvolvimento e o livro de Jacqueline as faz desfilar diante de nossos olhos. Além de uma maneira de filosofar, explica ela, os diálogos socráticos e platônicos ensinaram aos seres humanos que conversar, falar em grupo, é uma maneira mais civilizada e ética de conviver do que dar ordens e obedecê-las, uma forma de comunicação que reconhece ou estabelece desde o início uma igualdade elementar. Assim foi surgindo a liberdade, domando o lado animal do ser humano e permitindo o nascimento de sua verdadeira humanidade.

Em Pourquoi la Grèce?, essa demonstração não aparece como um discurso abstrato, e sim por meio de comentários e citações literárias, porque, como sua autora não se cansa de repetir, tudo aquilo que constitui uma cultura clássica está essencialmente representado nas suas obras literárias, e a verdadeira crítica é aquela que examina a poesia, a narrativa, o teatro, os ensaios que uma sociedade produz na busca das verdades recônditas que alimentam sua imaginação e impregnam as aventuras e os personagens aos quais seus artistas deram vida para aplacar a sede do absoluto, de viver outras vidas, de seus povos.

É verdade que a Grécia de nossos dias é muito diferente. Nos 25 séculos transcorridos desde então seu povo vivenciou mais infortúnios e catástrofes do que a maioria dos demais: guerras externas e internas, ocupações, tiranias e segregações que várias vezes ameaçaram desintegrá-la.

Li no International Herald Tribune uma chocante descrição do estado da economia do país, dos grotescos privilégios desfrutados durante todos esses anos pelos seus armadores, banqueiros e empresários mais prósperos, enquanto o povo grego segue empobrecendo.

Diante desse panorama, o surpreendente não deveria ser o fato de muitos gregos terem votado em nazistas e extremistas de esquerda nas últimas eleições, e sim que ainda haja um número tão grande de gregos que creem na democracia, e também que as pesquisas de opinião para a próxima votação indiquem que os partidos de centro-esquerda, centro e centro-direita, que defendem a opção europeia, possam obter uma maioria e formar o novo governo.

Torço para que assim seja, porque, simplesmente, a Grécia não pode deixar de formar uma parte integral da Europa sem que esta se converta numa caricatura grotesca de si mesma, condenada ao mais retumbante fracasso.

A Europa nasceu ali, no pé da Acrópole, 25 séculos atrás, e tudo que ela tem de melhor, aquilo que ela mais aprecia e admira em si mesma, assim como as instituições democráticas, a liberdade e os direitos humanos têm sua distante raiz nesse pequeno rincão do velho continente, às margens do Egeu, onde a luz do sol é mais potente e o mar é mais azul.

A Grécia é o símbolo da Europa e os símbolos não podem desaparecer sem que aquilo que eles encarnam desmorone e se desfaça nessa confusão bárbara de irracionalidade e violência da qual a civilização grega nos tirou. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Uma medida insana - JANIO DE FREITAS

FOLHA DE SP - 10/06


Médicos do setor público farão greve na terça contra MP que, na prática, reduziu seus vencimentos à metade


Cinquenta mil médicos do serviço público estão convocados para faltar às suas atividades na terça-feira, excetuados os que se ocupam dos atendimentos de emergência. A greve-relâmpago pretende lembrar ao governo a necessidade de corrigir a injustiça que, plantada em meio a uma medida provisória, na prática reduziu à metade os vencimentos dos médicos federais. Greves de médicos são sempre problemáticas, até pela resistência da classe a fazê-las, mas a convocação é justa. E, ainda por cima, lembra mais do que a MP tresloucada.

Em resumo, deu-se que o regime de 20 horas semanais dos médicos foi duplicado, mas a nova carga horária não significou a duplicação dos vencimentos. Nem correção parcial.

É justo reconhecer, porém, que o governo respeitou, para os 50 mil médicos, os 50 anos de tradição do trato dado aos médicos desde as "reformas" introduzidas nos serviços de previdência e saúde em seguida ao golpe de 64. O sucateamento da previdência e dos serviços de saúde foi acompanhado da desvalorização dos próprios médicos, cujos vencimentos têm emagrecido a ponto de estarem, como convite para os novos médicos, entre níveis mais baixos das funções exigentes de diploma universitário.

Médicos e professores. No serviço público federal, no estadual e no municipal têm a mesma condição degradada. Uns e outros com atividades exigentes, desgastantes, de nível alto de responsabilidade. O quanto um médico de hospital público trabalha e as condições precaríssimas em que o faz, como regra geral no Brasil, são dramáticos. E médicos e professores ainda têm que se sujeitar a serem os acusados de sempre, para a opinião pública, pelos serviços médicos sucateados e pelo ensino fracassado.

Como e por que ocorre a alguém, no Ministério do Planejamento, fazer mais este desatino da MP 568, eis uma questão impenetrável. E muito onerosa para Dilma Rousseff.

JOGO RÁPIDO

Tudo o que a CPI do Cachoeira conseguiu, até agora, foi consumir semana após semana discutindo como e para quem o governador goiano Marconi Perillo vendeu sua casa.
A agenda da CPI prevê para esta semana o depoimento do governador. Pode-se esperar que o mesmo assunto tome horas com perguntas e talvez algo a título de respostas. Mas, desde que, lá atrás, Perillo se declarou disponível para qualquer esclarecimento, bastaria pedir-lhe para apresentar os seus extratos bancários com a entrada dos três cheques que, diz, recebeu pela casa. Ou lá estão, e os outros depoentes a respeito mentem todos, ou Perillo é o principal a mentir. Pronto.

JOGO DURO

O jogo ainda não está jogado em Recife. A dura entrada de Lula, retirando o prefeito João Costa da perspectiva de tentar a reeleição, é importante para a composição do PT com o governador Eduardo Campos (PSB) no plano nacional, mas ainda não é vitoriosa. E, cá entre nós, é bom que ainda não seja: o jogo bruto só atrasa ainda mais, politicamente, este país politicamente tão primário.

Contribuinte paga a cooptação - EDITORIAL O GLOBO


O GLOBO - 10/06
A ampla e eclética aliança político-partidária instituída por Lula a partir de 2003, no início de seus oito anos de poder, foi sedimentada com a farta distribuição de postos no primeiro escalão entre políticos da base parlamentar do governo.
Foram dois mandatos sem grandes sustos no Congresso, com exceção do fim da CPMF, no Senado, no final de 2007, quando ficou provado que, apesar de todo o controle exercido pelo Planalto sobre o Legislativo, existia espaço para o êxito de pressões legítimas da sociedade.

O grupo que chegou com Lula ao Planalto também colocou em prática um plano de manipulação da máquina e recursos públicos para retribuir apoio a aliados e como instrumento de cooptação. Organizações como o MST (sem-terra) e similares passaram a ter grande influência no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra, num estranho modelo de "privatização" de segmentos do Estado. O mesmo aconteceu no Ministério do Trabalho, cedido a sindicatos.

Preparou-se o terreno para desvios de vários tipos. Não são poucos os casos de evidências do gasto de verbas públicas para financiar até mesmo manifestações violentas de sem-terra. No caso do Trabalho, há informações consistentes sobre a montagem de uma indústria de criação de sindicatos na gestão do pedetista Carlos Lupi, forma de se ter acesso ao dinheiro fácil do imposto sindical. O próprio Lula, no final do segundo mandato, reconheceu oficialmente as centrais sindicais, permitindo-lhes também receber parte desses recursos, indo contra o que pregara a partir do final da década de 70, quando era a favor da desmontagem do aparato varguista na área trabalhista. Faria o contrário décadas depois.

Se o MST manteve seus programas de invasões de propriedades privadas - apenas suspensas em épocas eleitorais, para não prejudicar os amigos no poder -, os sindicatos foram mais compreensivos com o governo. Até mesmo as manifestações em 1 de Maio terminaram substituídas por shows.

Os estudantes foram outro grupo domesticado com dinheiro público. A União Nacional dos Estudantes (UNE), outrora aguerrida, deixou de protestar contra a corrupção no plano nacional, por exemplo. A não ser quando o alvo é algum adversário do PT/Lula.

Agora, como noticiado sexta pelo GLOBO, surgem provas de malversação de dinheiro do contribuinte distribuído com generosidade entre organizações de estudantes. Além da UNE, a União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes), de São Paulo.

No final do mês passado, o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Marinus Marsico, pediu ao TCU que examine a prestação de contas das duas entidades sobre o gasto de R$ 8 milhões recebidos, via convênios, dos ministérios da cultura, Saúde, Esporte e Turismo.

O próprio MP encontrou notas fiscais frias entre as apresentadas pela UNE para justificar a despesa de R$ 2,8 milhões feita num convênio com o Ministério da Saúde. Ao Ministério da Cultura foram encaminhadas notas de despesas sem qualquer ligação com a finalidade do convênio, como bebidas alcoólicas. Há evidências, também, de leniência de ministérios na cobrança de prestação de contas.

Começa a ser contabilizado quanto o contribuinte pagou para Lula governar em paz.

Pobre Grande Irmão - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 10/06


Há cerca de um século a cultura, tanto a popular quanto a mais refinada, está repleta de referências à burocracia sem rosto e corporativa. De Kafka a Aldous Huxley, passando por George Orwell e incontáveis filmes de Hollywood, a robótica indiferença corporativa assombra a alma moderna. É estranho, portanto, que os americanos tenham passado a receber de braços abertos a impessoalidade sem face.

O aspecto mais frustrante de gigantes da internet como o Facebook é o fato de não podermos ver o rosto de alguém que trabalhe para essas empresas. É impossível falar com eles pelo telefone. Perante o anonimato cósmico do Facebook, o Grande Irmão de Orwell parece uma figura terna. O mesmo vale para o Google. Deparou-se com um problema na sua conta do Gmail? Boa sorte para encontrar um ser humano a quem se queixar. É mais fácil ter uma de suas preces atendidas por Deus.

Outro dia, vivenciei uma experiência distópica com uma das gigantes entidades online que governam a existência americana. Tenho uma conta da AOL desde a aurora de minha existência virtual, há cerca de 17 anos. Pelos meus cálculos, devo ter quase 200 mil mensagens - recebidas e enviadas - na minha conta de e-mail. Naquele dia, em algum momento no fim da manhã, percebi que não podia entrar na minha conta. Fui informado que, por causa de "atividades suspeitas", ela havia sido bloqueada. Fui instruído a responder a uma "pergunta de segurança" pedindo que eu informasse o nome do meu bicho de estimação.

Ora, não tenho um animal de estimação desde os 15 anos. Portanto, não poderia ter informado o nome do meu bicho de estimação como resposta à "pergunta de segurança". Mas a AOL insistiu. Sem o nome do bicho de estimação, sem acesso à conta. Tentei várias vezes. Naveguei por todo o site na tentativa de encontrar maneiras de provar que eu era mesmo eu. Nada feito. Precisava do nome do bicho de estimação. Assim, respondi com nomes de bichos que tive durante a infância, na medida em que era capaz de me lembrar deles: tartarugas, peixes dourados, hamsters e um pequeno schnauzer que batizamos de Lucky e morreu duas semanas depois de o trazermos para casa. Além de ter negado o acesso à minha conta de e-mail, na qual eu mantinha 17 mil mensagens armazenadas, comecei a me emocionar com as lembranças de Lucky. Nada parecia funcionar.

Telefonei para o número gratuito da AOL e fui atendido por uma pessoa de sotaque indiano que deveria estar sentada num cubículo em algum lugar como Nova Délhi, tentando sustentar a família com poucos centavos ao dia. O pobre sujeito repetiu a fórmula com que foi treinado: "Fico feliz em poder atendê-lo. Lamento que esteja enfrentando problemas. Estou aqui para ajudá-lo a solucioná-los". Ele finalmente concordou em deixar de lado a pergunta de segurança sobre o bicho de estimação. Perguntou-me o endereço no qual eu morava quando abri a conta. Fácil. Era 220 East 36th Street, Nova York, NY 10016. "Sinto muito", disse ele. "Essa informação não consta em nossos registros. Forneça outro endereço." Dei a ele cada um dos endereços nos quais morei nos últimos 17 anos. Nada feito. Eu estava prestes a subir pelas paredes. "O que devo fazer?" - gritei, desesperado. Ele pensou por um momento. "Qual é o nome do seu bicho de estimação?", perguntou ele.

Fiz o que qualquer pessoa civilizada faria. Pulei pela sala feito um orangotango, berrei uma série de obscenidades e arremessei o telefone na parede. Fantasias de uma violência incrível contra o monstruoso empregador daquele homem inocente inundaram minha imaginação. Mas controlei meus impulsos e fiz a mim mesmo minha própria pergunta de segurança. O que a corporação contemporânea mais teme? A mídia. Publicidade ruim. Uma reputação manchada num mercado de competitividade implacável. A calma me invadiu. O valium também estava começando a fazer efeito.

Usando a internet, que voltara a ser minha aliada, encontrei o e-mail dos principais executivos da AOL em Manhattan. Enviei a cada um deles uma mensagem simples. O texto era o seguinte: "Sou um jornalista que escreve para várias publicações. Acabo de passar por algo engraçado. Aquilo que começou como uma experiência frustrante logo se converteu numa pauta promissora". Estava falando sério. Em seguida, relatei minha saga de frustração.

Presto! A corporação sem rosto subitamente ganhou uma face. Um dos executivos me respondeu em questão de minutos, pedindo desculpas pelo inconveniente. Em questão de minutos, eu falava com dois técnicos que, em questão de minutos, conseguiram me devolver o acesso à conta. Poucos dias depois, recebi em casa uma caixa enviada pela AOL via FedEx. Dentro havia um cartão me agradecendo pela lealdade enquanto freguês da AOL (17 anos de altos e baixos) e vários brindes: uma camiseta com o logotipo da AOL; um moletom com o logotipo da AOL; um boné com o logotipo da AOL; e três ótimas canetas da AOL. A empresa tinha me convertido de freguês furioso em anúncio ambulante dos seus serviços.

É claro que não posso me queixar. A AOL me tratou bem. Mas eu me pergunto sobre o destino das pessoas que não podem responder ao abuso de poder do novo império online com sua própria demonstração de poder (ainda que pequeno e patético como o meu). Me pergunto por que os americanos aceitam toda a retórica online a respeito da "transparência" e da "acessibilidade" quando não conseguimos nem mesmo falar ao telefone com uma pessoa de verdade que represente essas entidades. Tenho medo de um futuro sem rosto no qual o próprio Grande Irmão parecerá inofensivo e simpático.

Mas bem que eu gostaria de ganhar mais algumas daquelas canetas.

Competitividade e estratégias empresariais - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS


O Estado de S.Paulo - 10/06


O relatório do IMD para 2012 revelou que o Brasil caiu, desde 2010, oito posições no ranking de competitividade elaborado pela organização, indo para o número 46, numa amostra de 59 países.

Na América Latina, Chile, Peru e México são mais competitivos do que o nosso país. Segundo a pesquisa, que entre nós é conduzida pela Fundação Dom Cabral, o País segue mal nas áreas de comércio internacional, arcabouço institucional, legislação de negócios, produtividade e eficiência e de infraestrutura básica e tecnológica. Em educação, ocupamos o "honroso" 54.º lugar entre 59 países. O resultado, infelizmente, não é nenhuma surpresa para quem acompanha a economia brasileira, como tento fazer nos artigos publicados pelo Estado.

Os dados do crescimento do País no primeiro trimestre deste ano também não foram animadores. Falo aqui menos do crescimento em si, mas do desanimador quadro do investimento, cujo resultado é negativo há três trimestres. Já tratei disso em novembro do ano passado ("O investimento perde o vigor"); entretanto, a profundidade do processo em curso sugere que devamos voltar ao assunto.

A taxa de investimento caiu para 18,7% do PIB e a de poupança para 15,7% do PIB. O futuro próximo não é também muito animador: as estimativas de inversões futuras construídas pelo BNDES vão na direção de redução.

O banco espera agora uma redução de algo como R$ 35 bilhões nos investimentos nos próximos anos, segundo sua análise (em geral exageradamente otimista) dos projetos de inversão anunciados. Muitas empresas, como a siderúrgica CSA, estão à venda.

É impossível não ver que temos aqui um problema muito maior do que uma flutuação conjuntural e que é hora de parar com avaliações triunfalistas ou a denuncia de conspirações internacionais. Num mundo que vai crescer menos, a disputa vai se elevar, e o que vai falar mais alto é a capacidade de competição de cada país. No que se segue estarei falando especificamente do setor industrial, área em que temos os maiores problemas.

É preciso reconhecer que na matéria de competitividade não existe bala de prata. Apenas um programa de prazo mais longo, e que o ataque às inúmeras frentes relevantes irá poder melhorar a posição relativa do País em alguns anos.

Como isso vai demorar, as empresas precisam avançar em estratégias que permitam traçar um caminho de expansão sustentável. Digo isso para distinguir de duas rotas muito utilizadas em situações difíceis como a que estamos vivendo, ambas levando a resultados muito limitados: a atitude puramente defensiva e a rota de Brasília.

Frente à ameaça da competição internacional e convivendo com importantes reduções de margens, muitas empresas têm se voltado para o mercado local e desenvolvido ações muito centradas no corte de gastos, especialmente daqueles ligados ao futuro, como expansão de instalações, desenvolvimento de novas linhas ou produtos, ações de marketing etc.

Embora seja óbvio que o momento é de gastar com muito cuidado e cuidar do nível de endividamento e estoques, é preciso perceber que a rota defensiva, embora possa reduzir o risco de uma eventual insolvência da companhia, muitas vezes leva à sua paralisia, perda de mercado e de valor, que nunca mais será recuperado. Já vimos esta situação em outros momentos, como no início dos anos 90, época da abertura de nossa economia.

A segunda rota de defesa é a rota de Brasília, hoje até algo congestionada. Muitas companhias vão para a capital extrair suporte e ajuda do governo federal, cujos bolsos largos têm sido bastante generosos com certos eleitos.

Esse é um filme que já vimos muitas vezes, e que levam as companhias beneficiadas, em geral, ao conforto de resolver o curto prazo, deixando o ajuste verdadeiramente competitivo para depois, momento que muitas vezes nunca chega. O que chega rápido é o custo do ajuste para a economia brasileira. Por exemplo, a furiosa sucessão de benefícios fiscais, apenas para certos setores e elos da cadeia produtiva, está introduzindo uma complexidade louca num sistema tributário já reconhecidamente complicado.

Entretanto, e felizmente, muitas companhias desenvolveram no passado recente estratégias de ajustes que parecem consistentes com o mundo atual, e que geram valor de forma sustentável para acionistas, trabalhadores e demais agentes que com eles interagem. A observação de alguns destes casos pode ser útil para muita gente. Menciono a seguir três diferentes caminhos:

Integração para trás: a indústria do aço sempre foi relativamente pulverizada, ficando prensada entre a mineração e os usuários finais (por exemplo, o setor automotivo), segmentos caracterizados por poucas grandes empresas. A incorporação de minas por parte das siderúrgicas brasileiras elevou o ganho do conjunto, alem da possibilidade de exportar o próprio minério.

Avançar para o exterior: muitas empresas, como a Gerdau, já se moveram para perto de mercados consumidores há tempos. Entretanto, o caso mais nítido de recuperação da capacidade competitiva via operação no exterior é o da petroquímica. A revolução na produção do gás de rocha ("shale gas") nos EUA derrubou seus preços para a faixa de US$ 2,5 por milhão de BTUs, comparados aos US$ 15 no Brasil. É o que levou o grupo Ultra e a Braskem a comprar unidades naquele país. A petroquímica brasileira está condenada ao encolhimento enquanto a Petrobrás precificar o produto como tem sido nos últimos anos. A redução do custo da energia nos Estados Unidos também beneficia, naturalmente, as indústrias que precisam de calor, como a siderúrgica. Mais uma vez, as unidades da Gerdau ficam bonitas na foto.

Expansão e integração para frente: a expansão para a área de serviços, a partir de uma base industrial, tem várias vantagens. O segmento não tem grande competição externa (exceto na área de turismo), sofre em geral com menor interferência governamental (fora regulação, que afeta a todos), menor pressão sindical e, muitas vezes, permite maior eficiência tributária, especialmente no sistema de impostos sobre o valor adicionado completamente abastardado que temos hoje.

Logística, distribuição de produtos no atacado e varejo são áreas de expansão de antigas empresas industriais. Grupo Ultra e Cosan são dois dos exemplos de casos muito bem sucedidos.

Algumas companhias de setores duramente atingidos pela competição externa, como calçados e têxteis, reposicionaram-se partindo para o varejo. Neste caso, além da ampliação das margens, as informações colhidas diretamente com os consumidores permitem ajustar muito mais rapidamente as coleções, minimizando os erros. Em certos casos, o varejo acaba mais importante até que a indústria; em outros, o instrumento de expansão são as franquias, mantendo-se o "core" industrial. Arezzo, Hering e Lupo são exemplos dessas estratégias.

Estes casos são apenas alguns dos que mostram existir possibilidades de ajustes mais sustentáveis. É claro que nem tudo são flores. O varejo, por exemplo, apresenta também grandes desafios. Entretanto, o mais importante é a capacidade das companhias de construir seu futuro.

Uma última observação: a política de campeões nacionais pouco ajuda neste quadro, pois ela é parte da rota de Brasília. Esta acaba se sobrepondo à rota da eficiência, porque em geral dá muito menos trabalho. Tão simples quanto isto.

O "fim da euforia" com o Brasil - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 10/06


Está na moda dizer que passou a "euforia com o Brasil", euforia que se tornara forte entre 2008 e 2010. A bem da verdade, não há euforia nem bom humor em quase lugar algum do planeta, nem mesmo em relação a China ou Índia. Também se tornou moda dizer que é quando a maré baixa que se nota quem estava nadando nu.

Mas quão pelados estamos? O que a euforia do fim da década passada ou a depressão de humor neste primeiro biênio dilmiano dizem sobre nossos problemas reais?

Parte do azedume com o Brasil é "moda ao contrário". Deriva do fato de que o país deixou de render dinheiro fácil aos rapazes do mercado financeiro. Com juro a mais de 10% e câmbio se valorizando sem parar, a vida era risonha e franca.

Com juro caindo a 8%, desvalorização do real, variação excessiva do câmbio e imposto pesado para tirar dinheiro daqui, perdemos a graça. Como os rapazes do mercado fazem o cotidiano da mídia mundial, ficamos mal na foto.

Crescer menos obviamente não ajuda. Passamos de 4,5% ao ano na segunda metade da década passada para os prováveis 2,5% do primeiro biênio de Dilma Rousseff. Intervir demais em mercados (finanças) e empresas (Petrobras, "campeãs nacionais") também não pegou bem. O governo ser incapaz de investir é outro problema.

Era ilusão imaginarmos que podíamos correr a 6%. Mas será tão difícil voltar a algo perto dos 4%?

Economistas-padrão, que quase todos torcem o nariz para as políticas lulo-dilmianas, dizem que se esgotou o "modelo petista". Nem "modelo" houve, mas a crítica observa que ele se valeu: 1) em parte dos benefícios das reformas feitas nos anos FHC, que renderam frutos um pouco mais tarde; 2) do aumento de renda derivado da alta de preço das nossas exportações principais ("efeito China"); 3) do rapidíssimo aumento do crédito, que, enfim, criou uma ilusão sobre as possibilidades do aumento do consumo, desfeitas agora com a alta da inadimplência, por exemplo.

É tudo em parte verdade.

Os críticos esquecem outros aspectos do "modelo", como o aumento do mercado doméstico, em parte impulsionado por transferências sociais ("Bolsas") e aumentos do salário mínimo, e a estabilização das contas externas (com a acumulação de reservas em moeda forte). Enfim, esquecem que o país mudou de patamar. É menos faminto, é social e politicamente mais estável e não quebra a cada tumulto mundial.

Faltam "reformas", "mudanças estruturais", dizem. É verdade, seja lá qual for o conteúdo que se dê ao jargão. Mas trata-se de coisa difícil de fazer, política e tecnicamente: reduzir impostos e dívida pública (não dá para fazer os dois ao mesmo tempo), melhorar a educação (coisa para uma década, com sorte, engenho e arte), trocar gasto de custeio por investimento no governo etc., para ficar no mais óbvio.

Dados a nossa tendência à ignorância (não gostamos de estudar ou de inovação) e gosto por jeitinhos, "transições transadas" e arranjos de meias medidas, é de fato difícil pensar em arrancadas. Mas destravar uns investimentos públicos, dar um tempo no aumento de salário e renda via mão pesada do Estado e simplificar burocracias já podem nos fazer crescer um pouco mais de 3,5% ou 4%. Não é lá tão difícil.

Na garganta - ILIMAR FRANCO


O GLOBO - 10/06

Os dirigentes da OAB estão em pânico com a votação de projeto que acaba com o exame da Ordem. Alegam que o mercado de 700 mil advogados será inundado com milhões de novos profissionais. As comitivas que vão ao presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), ouvem cobras e lagartos do presidente nacional da Ordem, Ophir Cavalcanti. Os líderes partidários não engolem discurso de Ophir, na posse de Ayres Brito no STF, proclamando: "O Congresso tornou-se um pântano".

O que ficou para trás
A menos de dois meses do julgamento do mensalão, policiais federais que atuaram nas investigações lembram que muitas coisas que reforçariam a denúncia contra os réus não foram adiante. Na época, não se autorizou buscas nas casas do ex-ministro José Dirceu, do ex-presidente nacional do PT José Genoino, e do publicitário Marcos Valério. A PF queria ouvir o presidente Lula, mas a PGR segurou o pedido. Interceptações telefônicas não foram permitidas, assim como investigações no Banco do Brasil e rastreamento de contas no exterior. "Se tiver absolvição, lavo as minhas mãos", disse um dos agentes envolvidos.

"Por muitos anos disseram que o PSDB era um partido paulista, mas foi o PT paulista que acabou de invadir as eleições
em Recife” — Sérgio Guerra, presidente nacional do PSDB

BOAS PRÁTICAS. A presidente Dilma irá premiar 169 empresários, na próxima quinta-feira, em solenidade no Planalto, com o selo "Boas Práticas na cana-de-açúcar". O setor enfrentava problemas sérios, como trabalho escravo e analfabetismo. Há três anos, no governo Lula, 300 das 413 usinas assinaram voluntariamente compromisso de melhorar as condições de trabalho. Coube ao ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral) coordenar a auditoria e fiscalização das empresas, agora premiadas.

Escolta
O ministro Joaquim Barbosa (STF) passou a andar com escolta policial há duas semanas. Não tem relação com o fato de ser o relator do processo do mensalão, garante. Mas porque é vice-presidente do Supremo.

Recomendação
Esta é a primeira vez que Joaquim Barbosa anda escoltado. Está no STF desde 2003. Queria recusar a oferta, mas o presidente da Corte, ministro Carlos Ayres Britto, recomendou a Barbosa que não declinasse.

Renegociação com investimentos
Aproveitando a onda de votações no Congresso de projetos relacionados ao Pacto Federativo, o senador Francisco Dornelles (PP-RJ) propõe alternativa que pode encerrar os desentendimentos entre estados e União no pagamento de antigos débitos. O percentual, que varia de 13% a 16%, a depender da região, passaria a 8%. Os estados, por sua vez, se comprometeriam com o governo a aplicar o dinheiro proveniente da diferença em um plano de investimentos.

Um dia vai
Depois dos depoimentos dos governadores Marconi Perillo (PSDB-GO) e Agnelo Queiroz (PT-DF), a CPI do Caso Cachoeira vai, enfim, votar a convocação do ex-diretor do Dnit Luiz Antônio Pagot. Nove requerimentos pedem sua oitiva.

Na fila
Requerimentos pedindo a convocação de mais de 40 pessoas aguardam na fila para serem votados pela CPI. A depender dos integrantes da comissão, até a presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, será chamada.

PÓS-CONFERÊNCIA: O senador Luiz Henrique (PMDB-SC) cumprirá à risca acerto com o governo: votará relatório do Código Florestal só dia 10 de julho.

RURALISTAS: Muda o comando da Frente Parlamentar da Agropecuária. Sai o deputado Moreira Mendes (PSD-RO) e entra Homero Pereira (PSD-MT).

O SENADOR Pedro Taques (PDT-MT) quer que as minorias no Congresso possam pedir urgência nas votações, deixando de ser atribuição exclusiva dos presidentes da Câmara e do Senado. 

Drogas: qual a alternativa? - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 10/06


A legalização das drogas transformaria o Brasil num centro internacional de consumo, como é a Holanda


Volto a um assunto que tenho abordado aqui e o faço porque considero necessário discuti-lo sempre que possível e com total isenção: o problema da liberação das drogas. Agora mesmo, uma comissão de juristas submeterá ao Congresso um anteprojeto propondo descriminalizar o porte e o plantio de maconha.
Admito que, por alguma razão, pessoas de tanta responsabilidade entendam que a descriminalização é uma medida positiva.

Ainda assim, duvido da conveniência de uma tal medida, uma vez que, no meu modo de ver, o fator principal que sustenta o tráfico de drogas é o consumidor.

Volto ao argumento óbvio, conforme o qual não há mercado para mercadoria que não se consome. Logo, se o tráfico ganhou a dimensão que tem hoje, foi porque, a cada dia, um número maior de pessoas consome drogas. Um dos argumentos usados pelos defensores da liberação das drogas é o de que a repressão não deu os resultados esperados, uma vez que o tráfico, em lugar de diminuir, aumentou.

Já discuti esse argumento, que me parece descabido. Basta raciocinar: desde que a humanidade existe, combate-se a criminalidade e, não obstante, ela não acabou. Pelo contrário, aumentou. Devemos concluir, então, que a Justiça fracassou e que, por isso, o certo é acabar com ela? Claro que não. Se se praticasse semelhante insensatez, simplesmente poríamos fim à sociedade humana. O certo é entender que determinados problemas não têm solução definitiva, mas nem por isso devemos nos render a eles, sob pena de se tornar inviável o convívio humano.

A droga é um desses problemas. Exterminá-la definitivamente parece-nos impossível mas, por outro lado, aceitá-la é abrir mão de importantes valores que o homem conquistou ao longo de sua história. A droga é uma herança de tempos remotos, quando estava associada a uma concepção ingênua e mágica da existência.

A ciência demonstrou que os efeitos que ela provoca são resultados dos elementos alucinógenos que fazem parte de sua composição química. Ela se alimenta daquilo que, no ser humano, resiste à compreensão objetiva e racional da existência. Como talvez o ser humano jamais alcance um estado permanente de lucidez em face do mistério da vida, a droga continuará a ser necessária a uma parte da sociedade, que nela encontra compensação para suas ansiedades. Disso se valem e se valerão os produtores e vendedores de drogas.

As últimas apreensões de drogas ocorridas no Brasil indicam o crescente poderio econômico e técnico dos traficantes. São toneladas de maconha, cocaína e crack, o que pressupõe o crescimento progressivo de consumidores.

Acreditar que a legalização das drogas fará com que essas organizações clandestinas se tornem, de repente, empresas legais é excesso de boa-fé. E o que fazer com as drogas sintéticas que, por se multiplicarem rapidamente, gozam de legalidade, já que os órgãos de repressão sequer as conhecem? A legalização das drogas transformaria o Brasil num centro internacional de consumo, como é hoje a Holanda.
Outro ponto que os defensores da legalização parecem ignorar é o fato de que os consumidores de drogas -em sua maioria jovens- nem sempre dispõem de dinheiro para comprá-las e isso os leva a praticar roubos e assaltos.

Hoje, a maioria dos crimes está ligada, de uma maneira ou de outra, ao tráfico e ao consumo de drogas. Na verdade, o viciado é um aliado do traficante -já que têm interesses comuns- e o ajuda a burlar a repressão.
Amparado na lei, o viciado em drogas vai se sentir mais à vontade para consegui-la a qualquer preço, sem que a família tenha autoridade para impedi-lo, já que estará agindo dentro da legalidade.

A alternativa seria o Ministério da Saúde -que não consegue manter em funcionamento satisfatório os hospitais, por falta de verbas- passar a subvencionar o vício dos drogados?

Creio que tudo conduz à conclusão de que o caminho certo é batalhar para reduzir o número de consumidores de drogas, e isso só será possível se as autoridades, em nível nacional e internacional, se dispuserem a promover um trabalho sistemático de esclarecimento e educação dos jovens para mostrar-lhes que as drogas só os levarão à autodestruição.

O início da paixão é estratosférico - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 10/06


Gosto demais do Fabricio Carpinejar, de quem tenho o privilégio de ser amiga. E é para prestigiá-lo que abro essa crônica com uma citação extraída da ótima entrevista que ele deu para a revista Joyce Pascowitch: “O início da paixão é estratosférico, as pessoas não param quietas exibindo tudo que podem fazer.

Depois passam a confessar o que realmente querem. A paixão é mentir tudo o que você não é. O amor é começar a dizer a verdade”.

É mais ou menos isso. No começo, a sedução é despudorada, inclui, não diria mentiras, mas um esforço de conquista, uma demonstração quase acrobática de entusiasmo, necessidade de estar sempre junto, de falarem-se várias vezes por dia, de transar dia sim, outro também.

A paixão nos aparta da realidade, é um período em que criamos um universo paralelo, é uma festa a dois em que, lógico, há sustos, brigas, desacordos, mas tudo na tentativa de se preparar para algo muito maior. O amor.

É aí que a cobra fuma. A paixão é para todos, o amor é para poucos.

Paixão é estágio, amor é profissionalização. Paixão é para ser sentida; o amor, além de ser sentido, precisa ser pensado. Por isso tem menos prestígio que a paixão, pois parece burocrático, um sentimento adulto demais, e quem quer deixar de ser adolescente?

A paixão não dura, só o amor pode ser eterno. Claro que alguns casais conseguem atingir o Éden – amarem-se apaixonadamente a vida inteira, sem distinção das duas “eras” sentimentais. Mas, para a maioria, chega o momento em que o êxtase dá lugar a uma relação mais calma, menos tórrida, quando as fantasias são substituídas pela realidade: afinal, o que se construiu durante aquele frenesi do início? Uma estrutura sólida ou um castelo de areia?

Quando a paixão e o sexo perdem a intensidade é que aparecem os pilares que sustentam a história – caso existam. O que alicerça de fato um relacionamento são as afinidades (não podem ser raras), as visões de mundo (não podem ser radicalmente opostas), a cumplicidade (o entendimento tem que ser quase telepático), a parceria (dois solitários não formam um casal), a alegria do compartilhamento (um não pode ser o inferno do outro), a admiração mútua (críticas não podem ser mais frequentes que elogios), e principalmente, a amizade (sem boas conversas, não há futuro).

Compatibilidade plena é delírio, não existe, mas o amor requer ao menos uns 65% de consistência, senão o castelo vem abaixo.

O grande desafio dos casais é quando começa a migração do namoro para algo mais perene, que não precisa ser oficializado ou ter a obrigação de durar para sempre, mas que não pode continuar sendofrágil. Claro que todos querem se apaixonar, não há momento da vida mais vibrante. Mas que as “mentirinhas” sedutoras do início tenham a sorte de evoluir até se transformarem em verdades inabaláveis.

GOSTOSA


Momentos históricos - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O Estado de S.Paulo - 10/06


Esta vida de saltimbanco das letras às vezes me dá uns sustos. Antigamente, escritor só precisava escrever. Hoje, suspeito que as editoras, em breve, passarão a exigir dele diplomas de marketing, habilidades de vendedor e proficiência em conferências e entrevistas. Some-se a isso a apregoada morte dos direitos autorais e poderão vir aí aulas de canto, dança, sapateado, piadas, violão, piano, mágica, leitura de bola de cristal e o que mais possa entreter uma plateia exigente, a ponto de ela aceitar pagar para ver o escritor. Foi o que sugeriu um advogado da abolição dos direitos autorais. Indagado como os escritores iriam sobreviver sem remuneração, o reformista retrucou, com um certo desdém por lhe haver sido feita indagação tão destituída de importância, que eles poderiam sustentar-se por meio de aparições públicas, em shows, espetáculos e o que mais lhes parecesse poder render uns trocados. Com os livros pirateados de todas as formas, desde xerox até cópias baixadas gratuitamente da internet, se tornará comum um livro ser lido por milhões de pessoas, e vender em um ano uns 80 exemplares, de maneira que, para defender a verba do supermercado, é melhor que o escritor se adapte aos novos tempos.

Creio que o grande público se aliará a essas mudanças, porque se sabe que, na opinião mais corrente, os escritores não trabalham. Discam um 0-800 da vida, cujo número completo não revelam nem sob tortura, que lhes fornece um canal inspirador, o qual eles só fazem escutar e transcrever, para depois algum infeliz revisar e publicar. Além disso, como se lê sempre nos jornais, vendem suas garatujas para Hollywood e ganham US$ 10 milhões com o primeiro livro, passando então a viver como a gente também vê em filmes americanos, ou seja dormindo com nove em cada dez estrelas de cinema, promovendo bacanais, acendendo charutos com notas de mil euros e fretando aviões para levar os amigos a uma tourada em Madri e esticar no mesmo dia, para um bistrô de outro amigo em Paris, onde cada um receberá de brinde uma trufa branca de R$ 10 mil o quilo, com a farra terminando somente no dia em que o escritor precisar de mais US$ 10 milhões e passar uma semana ocupado na preparação de novo sucesso hollywoodiano.

Para os que ainda não pegaram o dinheiro de Hollywood, a rotina deverá ser menos opulenta, mas não obstante atraente. Os editores se transformarão em empresários de espetáculos e os escritores terão um sem-número de vias para defender a graninha do supermercado e já posso ver os cartazes, em teatros, auditórios, circos, escolas e onde quer que haja espaço para a literatura. O romancista e sua harpa paraguaia, com a participação de Los Guaranis de Mossoró! O contista lerá de graça as mãos de quem comprar um livro (comprando três, o leitor terá direito a quiromancia para toda a família)! Hoje, sensacional strip-tease de três poetisas na Livraria Fuzarca, entrada franca para quem declamar de cor uma quadrinha de uma delas!

Vivendo entre essas perspectivas, que às vezes são levemente inquietantes, é natural que eu ontem tenha tomado um dos sustos a que me referi. Acordei cedo e demorei bastante para entender por que a cama me parecia diferente e a paisagem pela janela também. Só muito gradualmente fui lembrando que não estou no Rio, mas em Londres. Que é que eu vim fazer em Londres, meu Deus do céu? Num lento esforço de reportagem tentei voltar gradualmente à realidade. Vasculhei a mente. Não podia ser a demonstração de capoeira, fui reprovado no exame final e tenho de fazer cinco anos de reciclagem. E Canetinha e Lapiseira, a dupla sertaneja que pretendo integrar, com um parceiro cujo nome o contrato ainda não permite divulgar, mas vai ser uma bomba, ainda está nos acertos preliminares. Mas Londres?

Na mesa de cabeceira, um lembrete escrito me deu novo susto. Um amigo meu que mora em Londres ia passar daí a pouco, para me levar a Covent Garden. Covent Garden, onde os artistas de rua tradicionalmente fazem seus exibições, para depois passar o chapéu entre os espectadores. A idade opera misérias e, pelo visto, me haviam designado para uma demonstração de xaxado enquanto tentariam empurrar meus livros e, falhando isto, recorreriam ao chapéu, começo de carreira é isso mesmo, não se pode rejeitar nada.

Mas, por não ter trazido as alpercatas e o chapéu de cangaceiro, fiquei preocupado com um fiasco e telefonei para o amigo. Ele logo me tranquilizou. Que é isso, nada disso, eu tinha vindo fazer uma palestra, ainda não cheguei ao estrelato do xaxado. E a palestra ainda estava no estágio de abotoar os passantes e oferecer uma caipirinha grátis a quem topasse comparecer, isso era trabalho para os promoters. Por enquanto íamos somente dar umas voltas pelo centro e apreciar algumas das muitas comemorações de rua com que os ingleses marcavam os 60 anos de reinado de Elizabeth II.

Logo estávamos circulando, as ruas fervilhando, tudo fervilhando. Andando à toa, chegamos ao Palácio de Buckingham e paramos em frente. Desde a rainha Victoria, ele estava ali, quanta história tinha visto, de quantos momentos célebres tinha sido testemunha, quantos pronunciamentos momentosos lá tinham sido feitos! É, respondeu meu amigo, e o Brasil faz parte. Como assim, alguma frase brasileira ecoava naquelas paredes veneráveis? Claro, disse ele, o presidente Lula ficou hospedado aqui, se emocionou e fez seu comentário histórico. Verdade, que comentário ele fez?

- Ah, ele declarou que, poucos anos antes, ninguém ia acreditar que ele estaria ali, fazendo cocô no banheiro da rainha. Mas esse povo é muito preconceituoso, acho que ninguém botou a declaração brasileira no acervo do palácio.

O rei e o frade - CARLOS HEITOR CONY

FOLHA DE SP - 10/06

RIO DE JANEIRO - Suponhamos que um historiador, lá pelo século 22, queira saber como era o mundo no século 21, tomando como base de pesquisa a semana que passou, no ano da graça de 2012. Afinal, uma semana como outras. Ele terá uma noção assombrosa do nosso tempo.

Nos Estados Unidos, um documentário mostrou que a crise econômica que aquele país atravessa foi causada pelas retiradas dos grandes executivos que se aposentaram nas maiores instituições financeiras. Num dos bancos de projeção mundial, um deles recebeu US$ 2 bilhões para vestir o pijama.

A taxa de desemprego e de miséria pode aumentar em 16%, as falências individuais e de pequenas empresas subirão 17%. Mas os Estados Unidos são o guardião do mundo livre e da sociedade democrática.

No Brasil, um ex-presidente e um juiz se engalfinharam publicamente por causa de escândalos e eleições -dois fatores que caminham sempre juntos neste país.

Esquecendo a vida pública, também no Brasil uma mulher formada em direito mata o marido e o esquarteja com uma faca. O mordomo do papa reinante roubou dinheiro e documentos do Vaticano, terremotos na Itália e no Japão, os países árabes estão agitados.

Por muito menos, o romancista Eça de Queiroz, no final do século 19, diante do fracasso das democracias, das repúblicas e, sobretudo, das ditaduras, decidiu-se pela anarquia, um sistema que prega o enforcamento do último rei com a tripa do último frade. Uma solução que ainda não foi tentada, embora reis e frades continuem existindo.

Pelo rolar da carruagem, o futuro historiador considerará o nosso tempo uma Era de Ouro. Felizmente, não estarei lá, ficarei por aqui mesmo, usufruindo tamanha paz e prosperidade com o meu anarquismo triste e inofensivo.

Natureza viva - LUIZ FERNANDO VERISSIMO


O ESTADÃO - 10/06


Breno resistiu um pouco quando a professora Matilde o convidou para ser modelo na sua escola de arte.

– Sei não...

– Você só precisa posar para as moças.

Eram só moças na aula de desenho da professora Matilde.

– Mas... posar nu?

– Claro que nu.

– Sei não...

Breno tinha um corpo atlético, bem estruturado. Um corpo clássico. Até então as alunas da professora Matilde só tinham desenhado vasos, caixas, frutas. Natureza-morta. Estava na hora de começarem a desenhar o corpo humano. Para terem uma noção de proporção e anatomia, que a natureza morta não podia dar.

Breno topou. Afinal era só tirar a roupa, fazer uma pose, ficar parado e depois ser pago. Não havia mal nenhum. Era arte.

– Faça qualquer pose, Breno – instruiu a professora Matilde. – Uma que seja confortável para você.

Breno subiu no estrado que fazia as vezes de um pedestal e, sem querer, fez uma pose parecida com a do Davi do Michelangelo.

– Perfeito – disse a professora Matilde. – Meninas, comecem a desenhar.

Durante alguns minutos, tudo correu bem. Mas aí aconteceu uma coisa que nunca aconteceu com o Davi de Michelangelo. Breno começou a ter uma ereção. A princípio apenas um movimento, quase imperceptível. Em seguida, uma ereção completa, decididamente perceptível.

– Ai meu Deus – disse uma das moças.

Outras riram. Todas pararam de desenhar. O modelo estava se mexendo. Ou uma parte do modelo estava se mexendo. Era mais anatomia do que elas precisavam.

– Breno – disse a professora Matilde. – Assim não vai dar.

– Desculpe – disse Breno. – Eu não consigo controlar. Eu...

– Pense em alguma coisa desestimulante.

– Em quê?

– Qualquer coisa.

A professora Matilde sugeriu que Breno pensasse em água fria. Um choque de água fria. Ou pensasse na sua mãe. O que ela diria daquilo? Mas a ereção não diminuiu.

– Pense em alguma coisa horrível – ordenou a professora Matilde. – A fome na África.

– A situação no Oriente Médio – lembrou uma das moças.

– A crise da dívida na Europa – lembrou outra moça.

– Isso – disse uma terceira. – Pense na Angela Merkel!

A ereção não diminuía. E as sugestões do grupo se multiplicavam. Iam do grotesco ( “Imagine que ele ficou preso num moedor de carne!” ) ao filosófico (“Pense na finitude humana!”).

Quem entrasse na sala naquela hora não entenderia a cena. Um homem nu, visivelmente constrangido, cercado por mulheres que gritavam.

– Pense em injeção!

– Um fora da namorada!

– Um meteoro se chocando com a Terra!

– O Bashar al-Assad!

Arco de Cupido, Marca de Vênus... - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 10/06


Eu não esperava achar tanta coisa quando, na semana passada, fui mexer no umbigo - quer dizer, quando tratei aqui da "flunfa", aquele algodãozinho que se aninha nesse ponto de nossa anatomia. A ideia, juro, era apenas dar conta da minha dificuldade em achar alguma coisa, concreta ou abstrata, que não tenha nome - desafio que, aliás, segue de pé, à espera de contribuições. Pensava ser o caso do tal algodãozinho, mas não só me frustrei como provoquei reações de variada ordem. "Estou chocado!", boquiabriu-se lá em Berlim o Felipe. "Eca!", enojou-se por aqui a Renata, enquanto a Paola anunciava, enigmática: "Flunfei".

Já o Reinaldo, afeito por ofício aos labirínticos meandros da mente, fixou-se no inusitado da escolha de Georg Steinhauser, o biólogo austríaco que passou anos estudando a flunfa. Reinaldo foi desencavar outra relevante pesquisa, essa na Universidade de Indiana, sobre as cócegas e sua relação com o sexo. O assunto é gênero, explicou - e foi ao umbigo da questão: mulheres sentem mais cócegas? Em seguida, descortinou novo horizonte de perquirição científica: "e o nosso cafuné, pode ser considerado cócegas?"

De Curitiba, o Luís endereçou ao cronista uma provocação: como é nome daquela prega vertical que liga o nariz ao lábio superior? Pra quê! Como no caso da flunfa, uma vez mais larguei o que estava fazendo - para um tempo depois, à míngua de certezas, arriscar: comissura?

Quem manda ser leviano? A Silvana, que seguia o papo no Facebook, entrou em cena para nos puxar as virtuais orelhas: "Onde é que estamos?", indignou-se a moça. "Chamar de 'prega' e de 'comissura', palavras tão ranzinzas, aquela bonita covinha instalada entre o lábio superior e a base do nariz? Pois saibam que fuçando alfarrábios encontrei denominação mais respeitosa para com este ornamento (bem, ao menos enquanto somos jovens) facial: Coluna de Filtrum!" Não ficou nisso a sábia Silvana: "Sim, senhores, coluna, como a dórica, como a jônica!" E tem mais: a linha arqueada na base do sulco vem a ser o "arco de Cupido".

Assim flechado, o Luís entregou os pontos: "Legal, Silvana", aplaudiu - e trouxe subsídios ao debate: "A partir de suas informações, fucei e descobri uma forma simplificada de se referir àquela covinha: filtro labial. Encontrei também algo que chamam de 'philtrum moustache' - ou seja, o bigodinho do Hitler ou do Chaplin."

"Essa área sempre me intrigou", disse o Luís. "Nunca entendi por que ninguém fala sobre ela, nem na literatura, nem na vida real. E está ali, no meio da cara. Conheci moças que tinham lindas 'colunas do filtrum', e 'sulcos do filtrum' pra lá de convidativos, mas nunca soube como dizer isso a elas. Ainda é difícil encaixar isso de coluna e sulco numa conversa mais íntima. E será que filtrum é o conjunto sulco + coluna?"

Que seria de nós sem a Silvana, que outra vez veio lançar graça e luz sobre a matéria? "O sulco", esclareceu, "é a parte do meio, a covinha em si, e as laterais, as colunas do filtrum." Tão animada quanto didática, a moça agregou mais informação: sabem como os medievais chamavam "aquele espaço entre os dentes da frente, quando as pessoas os têm separados? Marca de Vênus!"

O papo parecia encerrado quando veio o Eugênio com novo desafio: se tudo tem nome, até o algodão do umbigo, algum haverá também para "aquela matula que o andarilho leva na ponta de um cabo de vassoura apoiado no ombro". Reduzido ao silêncio dos ignaros, o jeito foi botar na roda a questão que o Eugênio pendurou nos meus ombros. Em minutos encheu-se de hipóteses minha caixa postal - mas isso fica para a próxima. Quer dar seu palpite?

Por ora, limito-me a lembrar uma conversa, no palco de uma Flip, em que o grande Xico Sá registrou a falta de nome para uma recôndita região do corpo humano - o que me proporcionou um instante de glória lexicográfica ante a plateia: chama-se períneo. Sim, já estive lá. Mas veja a que ponto nos trouxe uma conversa que principiou num umbigo recheado de flunfa, e que veio dar nessa terra de ninguém cuja denominação o frequentador Xico Sá desconhecia. Você, que também esteve lá, sabe que convém parar por aqui.

Da série 'coisas que eu não entendo' - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 10/06


Às vésperas da Rio + 20, o governo baixa o preço dos carros para estimular as vendas. Dá para entender?


Existem muitas, e uma delas é quando ouço ou leio o comentário de um analista político dizendo que alguma coisa aconteceu por "pressão da opinião pública". Em grande parte das vezes isso tem a ver com o que eu penso, com o que acredito ser o mais certo; mas a mim ninguém perguntou nada, e não me consta que alguma pesquisa tenha sido feita para saber se a opinião pública está pressionando para um lado ou para o outro.

No assunto mensalão, por exemplo: o julgamento tem -enfim- dia marcado para começar, mas existem, sabidamente, duas "pressões da opinião pública". A dos que querem e exigem que isso aconteça, pois não é possível um caso tão escandaloso esperar sete anos para ser julgado, e a dos petistas, que gostariam que levasse mais 30 anos e que tudo acabasse no esquecimento.

E um pequeno comentário: como os ministros do STF adoram criar um suspense. O lento ministro Ricardo Lewandowski é um deles, e agora vamos esperar até não sei quando para que o ministro José

Toffoli decida se vai se declarar suspeito ou não, no mesmo julgamento; afinal, ele já deve estar farto de saber se é. Penso que faz parte, para mostrar à população o quanto são poderosos.

Outra coisa curiosa: sabe-se que em quase todos os países do planeta há uma tendência a que as pessoas passem a usar mais o transporte público ou a estimular o transporte solidário para desafogar o trânsito, caótico nas grandes cidades. São Paulo inovou com o rodízio, e, segundo li, está pensando em fechar algumas ruas, a exemplo de Londres e Curitiba, para que algumas áreas sejam usadas apenas por pedestres. Pois às vésperas da Rio + 20 o governo baixa o preço dos carros para estimular as vendas, e as montadoras desovam milhares de carros dos seus pátios, o que vai infernizar ainda mais o trânsito das cidades (e os novos compradores serão, talvez, os próximos inadimplentes). Dá para entender?

Mais uma: é proibido o uso de celulares a quem está dirigindo, o que está certo. Quem está no volante falando ao telefone, seja no viva voz, seja naquela posição mais do que incômoda, equilibrando o celular entre o ouvido e o ombro, perde alguns reflexos, por isso, palmas para a decisão de multar e tirar pontos da carteira de quem não consegue esperar chegar a seu destino para se comunicar com o mundo.

Mas já me aconteceu, várias vezes, de tomar um táxi e ver, bem pertinho do rosto do motorista, uma minitelevisão ligada, muitas vezes na novela. Ora, a TV é diabólica; se ela está ligada, seja em nossa própria casa, seja na sala de espera de um médico ou dentista -o que, aliás, deveria ser proibido- é inevitável que se olhe para ela. Agora imagine um motorista de táxi, que passa dez horas dirigindo, e que, teoricamente, não tem com quem falar -teoricamente, porque todos falam, ou com o passageiro ou ao celular- com uma TV ligada bem na sua frente. É simples: não dá. Mas ainda não ouvi falar que exista lei proibindo a existência dessas televisões nos carros, ou proibindo sua fabricação, o que seria bem prático; se não existissem TVs feitas especialmente para carros, ninguém poderia comprar, e nem seria preciso lei alguma para punir os motoristas irresponsáveis.

Essas são apenas três das muitas coisas que não entendo.

O Goebbels do Kremlin - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 10/06


Vladimir Medinski, nomeado ministro da Cultura russo, é ex-jornalista chapa-branca e apparatchik com bons serviços prestados à carreira de Putin e ao obscurantismo



Cimeira em Xangai. A cúpula da Organização de Cooperação entre russos, chineses e vizinhos mais próximos reuniu-se essa semana para discutir problemas regionais e criticar a política externa norte-americana. Em pauta, entre outros problemas regionais, a blindagem ao Irã e o aval ao governo sírio. No palco, Vladimir Putin & Hu Jintao. Na plateia, como ouvinte convidado, Mahmoud Ahmadinejad. Se Bashar Assad pudesse ter ido, o quadro estaria completo. E aí era só chamar o expert em neoditadores William Dobson (ler na página ao lado) para cobrir o evento com autoridade.

Interessante ver Rússia e China afinando acordes, após tantas décadas de discórdias e hostilidades. Mao e Stalin só se encontraram duas vezes; Mao viveu às turras com Kruchev e Brejnev, e já estava embalsamado quando Gorbachev logrou harmonizar as relações entre as duas potências. Agora é quase paz & amor. Li em algum lugar que Hu Jintao e seus pares admiram Putin por sua longevidade no poder; por enquanto, 12 anos. O resto seria secundário ou irrelevante.

Cesarista moderno, sufragado em eleições manipuladas e mais sutil na repressão que os autocratas à antiga, como Assad, Mubarak, Kadafi & cia, Putin é um czar new age, um Stalin engravatado, mas nada bonachão e avuncular, o que talvez seja uma deficiência. Veio da pior fábrica de líderes da Rússia, a KGB, que mudou de sigla (SVR), mas não de atributos: vigiar e punir. Cada vez menos consegue disfarçar seu penchant autoritário.

Confrontado com uma oposição bem articulada pelas mídias sociais, que agendou uma gigantesca passeata por Moscou para a próxima terça-feira, Putin mais que depressa multiplicou por 150 o valor da multa para quem participar de manifestações públicas não autorizadas contra o governo. Porrada no bolso, não no lombo, eis uma de suas sutilezas. O que antes custava 2 mil rublos (R$ 123), sairá por 300 mil rublos (R$ 18.360). Pela nova tabela, ficou mais caro criticar o governo do que violar regras de armazenamento de materiais nucleares.

Nem a cultura escapou ao seu pervasivo espírito controlador. Em janeiro, em plena campanha para o terceiro mandato, Putin propôs, no diário Nezavisimaya Gazeta, uma unificação do melting pot russo através de cem obras literárias que a seu ver representariam o verdadeiro espírito da nação, a força de seu povo, de sua "civilização única". Não se furtou a aconselhar armênios, tajiques e outras minorias a submeterem-se ao domínio da cultura russa, à inigualável pujança do russki narod, do povão das estepes.

Não listou os cem livros, mas é de se supor que a bibliografia oficial inclua os contos naturebas de Mikhail Prishvin e várias daquelas chaturas patrióticas executadas pelos beletristas da era stalinista. Espera-se uma valorização de O Dom Silencioso, de Mikhail Sholokhov, clássico da ficção mujique, celebração da vida rural russa, prêmio Stalin de 1941, apesar das suspeitas de que o Nobel de 1965 apenas emprestou sua assinatura à obra, efetivamente escrita pelo cossaco Fyodor Kryukov.

Escritores contemporâneos, como Boris Akunin e Edvard Limonov, com certeza não terão vez, por suas posturas antiautoritárias. Outro sem a menor chance é o poeta Lev Rubinstein, um dos organizadores de uma marcha de intelectuais (e mais 10 mil aderentes espontâneos) contra a eleição de Putin, semanas atrás, em Moscou.

"Certos autores podem ser danosos ao espírito russo." Transcrevo não o presidente russo, mas Vasilii Yakemenko, líder da organização jovem Caminhando Juntos, linha auxiliar do governo, que pegou a deixa de seu xamã ideológico e sugeriu uma troca pública de livros em Moscou. Quem entregasse um volume de Karl Marx (ainda leitura perigosa) e Victor Pelevin (cuja ficção sexualizada afronta o puritanismo predominante) levaria um tomo de autor mais afinado com a ordem vigente. Citado como exemplo de "escritor patriótico", o contista Boris Vasiliev quase morreu de vergonha.

O que se faria com as obras trocadas? Bem, há nove anos a turma de Yakemenko incinerou, no melhor estilo nazista, um monte de exemplares de Banha Azul, provocativa ficção científica de Vladimir Sorokin, na qual, a certa altura, dois clones de Stalin e Kruchev sodomizam-se mutuamente.

Nesse contexto, a nomeação de outro Vladimir para ministro da Cultura, confirmada há menos de 15 dias, assustou, mas não surpreendeu. Vladimir Medinski, ex-jornalista chapa-branca de 41 anos, duas vezes eleito para a Duma (a Câmara Baixa russa), mas derrotado na terceira tentativa, em dezembro, o novo cacique cultural de todas as Rússias, é um apparatchik com bons serviços prestados à carreira política de Putin e ao obscurantismo.

O histórico da pasta da Cultura não é dos mais edificantes. Quem a ocupava antes de Medinski era o ex-diplomata Aleksander Avdeev, expulso da França por espionagem em 1983, escândalo detalhado no filme O Caso Farewell, de Christian Carion. Além de fiscalizar as artes, o cinema, o patrimônio histórico, os arquivos, as bibliotecas e os museus, o sucessor de Avdeev terá a seu talante o controle da imagem do país, sobretudo dentro do território nacional. A bem dizer, Medinski será mais um ministro da Propaganda do que um gestor das atividades artísticas de seus conterrâneos, mais um Goebbels russo do que o Zdanov do novo milênio.

Medinski estudou jornalismo e inglês no Instituto de Relações Internacionais de Moscou, celeiro de diplomatas e espiões, onde se doutorou com uma tese sobre a qual se amontoam 16 acusações de plágio. Entre 1991 e 1992 cuidou do setor de imprensa da embaixada russa em Washington. Grafômano dos mais exuberantes, publicou uma série de livros de história, Mitos sobre a Rússia, com o objetivo de "limpar o passado de impurezas" supostamente inventadas alhures para demonizar a antiga União Soviética. Nem o proverbial alcoolismo dos russos resistiu à sanha revisionista do futuro ministro, que também considera improcedente a fama de cruéis que em seus patrícios grudou.

Convicto de quem controla a história controla o presente, Medinski passou detergente no passado. E criou seus próprios mitos. Pintou Ivã, o Terrível, o primeiro dos czares, como um líder de bom coração; minimizou a longa tradição de antissemitismo da Rússia; reduziu a ocupação dos Estados bálticos e da Polônia, durante a 2ª Guerra, a meras "incorporações" territoriais; negou o envio de prisioneiros de guerra para campos de trabalhos forçados após a derrocada do Terceiro Reich; sugeriu que o pacto Molotov-Ribbentrop (o nefando acerto de neutralidade entre Stalin e Hitler) merecia um monumento; qualificou de falsificados os registros fotográficos da invasão da Polônia por tropas soviéticas em 1939.

Não obstante - ou justamente por causa de sua visão edulcorada da Rússia e sua gente - a história alternativa escrita por Medinski vendeu mais do que qualquer outro livro do gênero entre Omsk e Murmansk. Machado dizia que o povo ama as coisas que o alegram; os russos, deduzo, só apreciam as coisas que os engrandecem. Medinski, cito agora o reputado historiador da 2ª Guerra Aleksei Isayev, não escreve história, faz agitprop e nonsense.

Por que lhe deram um ministério? Segundo outro Vladimir (Pribylovski, cientista político), porque não conseguiram mais ninguém disposto a servir de megafone para o atual czar do Kremlin.

Voto fechado e voto aberto - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 10/06


Se todos os brasileiros são iguais perante a lei, nos termos do artigo 5.º da Constituição federal, por que alguns são tratados de maneira diferente? Se os administradores públicos, de qualquer dos Poderes e em todos os níveis de governo, devem submeter-se ao princípio da publicidade, nos termos do artigo 37 da mesma Lei Maior, por que alguns se afastam do critério? Se o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, ainda de acordo com a Carta Magna, agora pelo parágrafo único do artigo 1.º, por que uns prestam contas de seu comportamento a ele (povo) e outros não? São algumas das interrogações que podem balizar a decisão dos senadores sobre a extinção ou limitação do voto secreto, a ser objeto de apreciação pelo plenário da Casa nos próximos dias. A indicação de que o Senado vai avançar nessa matéria, abrindo o voto para cassações de mandatos parlamentares, se insere no rol de esforços do Parlamento para aprimorar os estatutos do nosso Estado Democrático de Direito.

O território do voto secreto é povoado de buracos. A começar pelo tratamento diferenciado que se presta aos corpos dirigentes de nossa democracia representativa. Vejamos. Na esfera do Poder Executivo, acusações contra o presidente da República passam pelo crivo de dois terços da Câmara dos Deputados (artigo 86 da Constituição) e os crimes de responsabilidade são objeto de definição em lei especial, que estabelece as normas do processo e julgamento (parágrafo único do artigo 85). Não se explicita, nessa esfera, o sistema de voto - aberto ou secreto -, entrando a questão no compartimento do "silêncio eloquente", conforme assinala o constitucionalista Adilson de Abreu Dallari, que ainda pinça a lembrança: "Quando o voto deve ser secreto, a Constituição assim o estipula expressamente". Como se viu no impeachment do presidente Fernando Collor, o voto foi nominal, ou seja, aberto, atendendo à disposição da lei em vigor, a de n.º 1.070/

50. Em defesa do voto aberto saliente-se também o já citado princípio constitucional da publicidade, cuja aplicação vale para os integrantes de todos os Poderes. Por isso é de estranhar que os quadros legislativos recebam tratamento diferenciado em situações e circunstâncias que constituem interesse da coletividade.

No caso do Poder Legislativo, é oportuno frisar que os representantes contam com a prerrogativa - legítima e democrática - da inviolabilidade por opiniões, palavras e votos. Trata-se de requisito fundamental para a independência do exercício funcional. Seria trágico para a democracia se o tacão da censura submetesse o corpo parlamentar a adotar a cartilha de pensamento do Poder Executivo ou de grupos de interesse. Dito isto, não há como deixar de reconhecer a forte legitimidade do voto secreto no Parlamento. Ampara-se, portanto, no escopo da salvaguarda do bem comum, da defesa da vontade popular, da garantia de preceitos constitucionais, enfim, da preservação dos valores democráticos. Não é o caso do julgamento de chefes de Executivo, conforme já se mostrou, mas é, seguramente, a situação que abarca a indicação de membros do Supremo Tribunal Federal, cuja aprovação depende do corpo parlamentar. Parlamentares que, por acaso, desaprovem nomes de magistrados encaminhados pelo presidente da República para compor a Corte poderão eventualmente ser julgados pelos próprios. Logo, o voto fechado tem o condão de escudar a identidade parlamentar, evitando dissabores futuros e indesejáveis climas de suspeita.

O voto secreto faz-se necessário, ainda, na apreciação e no julgamento dos vetos presidenciais, levando em conta o extraordinário poder do nosso sistema presidencialista. Não convém escancarar a votação para julgar decisões emanadas do Palácio do Planalto, principalmente quando chegam ao Parlamento na forma de veto a projetos de lei. O Congresso exerce o poder de analisar vetos presidenciais, decidindo com o voto secreto por sua manutenção ou derrubada. Imagine-se a contrariedade de um presidente ao se ver obrigado a publicar no Diário Oficial uma lei sem os vetos que a ela fez. Chegamos, agora, ao escrutínio secreto para julgamento dos pares, conforme estabelece o parágrafo 2.º do artigo 55. A perda de mandato do deputado e do senador decorrente de proibições arroladas no artigo 54 da Constituição, de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar e de condenação criminal em sentença transitada em julgado, se dá por votação secreta e com o quórum de maioria absoluta. A justificativa para o sigilo é a teia do constrangimento que o voto aberto proporcionaria. Parlamentares poderiam sentir-se constrangidos em condenar colegas com quem mantêm relação, se não de amizade, ao menos de respeito. Os desafetos, ao que se constata, constituem a exceção, não a regra.

Neste ponto convém ponderar que o detentor de mandato exerce a indeclinável obrigação de prestar contas de atos e atitudes aos eleitores. Há de se submeter ao controle de suas decisões. A partir do momento em que passa a exercer a representação conferida pelo povo, o parlamentar se obriga a compartilhar a trajetória pública com a sociedade. Esse é o ditame do exercício do poder na vida republicana. O chamado "voto corporativo", que se desenvolve em função do vínculo entre iguais que trabalham sob a mesma cúpula, é figura insustentável diante do império da ética e da moral, cujos domínios se expandem nos múltiplos espaços da sociedade organizada. Não há mais sentido em guardar segredo no julgamento de parlamentares. A oxigenação dos pulmões sociais está a exigir assepsia, independência, justiça. A soberania popular ordena que a representação política se paute por transparência de atitudes e decisões. Onde o poder é oculto, já dizia Bobbio, tende a ser oculto o contrapoder, o poder invisível. Nas ditaduras floresce a cultura do sigilo. O Parlamento deve ser o primeiro Poder a implantar nas democracias o governo do poder visível.