domingo, junho 10, 2012

O Goebbels do Kremlin - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 10/06


Vladimir Medinski, nomeado ministro da Cultura russo, é ex-jornalista chapa-branca e apparatchik com bons serviços prestados à carreira de Putin e ao obscurantismo



Cimeira em Xangai. A cúpula da Organização de Cooperação entre russos, chineses e vizinhos mais próximos reuniu-se essa semana para discutir problemas regionais e criticar a política externa norte-americana. Em pauta, entre outros problemas regionais, a blindagem ao Irã e o aval ao governo sírio. No palco, Vladimir Putin & Hu Jintao. Na plateia, como ouvinte convidado, Mahmoud Ahmadinejad. Se Bashar Assad pudesse ter ido, o quadro estaria completo. E aí era só chamar o expert em neoditadores William Dobson (ler na página ao lado) para cobrir o evento com autoridade.

Interessante ver Rússia e China afinando acordes, após tantas décadas de discórdias e hostilidades. Mao e Stalin só se encontraram duas vezes; Mao viveu às turras com Kruchev e Brejnev, e já estava embalsamado quando Gorbachev logrou harmonizar as relações entre as duas potências. Agora é quase paz & amor. Li em algum lugar que Hu Jintao e seus pares admiram Putin por sua longevidade no poder; por enquanto, 12 anos. O resto seria secundário ou irrelevante.

Cesarista moderno, sufragado em eleições manipuladas e mais sutil na repressão que os autocratas à antiga, como Assad, Mubarak, Kadafi & cia, Putin é um czar new age, um Stalin engravatado, mas nada bonachão e avuncular, o que talvez seja uma deficiência. Veio da pior fábrica de líderes da Rússia, a KGB, que mudou de sigla (SVR), mas não de atributos: vigiar e punir. Cada vez menos consegue disfarçar seu penchant autoritário.

Confrontado com uma oposição bem articulada pelas mídias sociais, que agendou uma gigantesca passeata por Moscou para a próxima terça-feira, Putin mais que depressa multiplicou por 150 o valor da multa para quem participar de manifestações públicas não autorizadas contra o governo. Porrada no bolso, não no lombo, eis uma de suas sutilezas. O que antes custava 2 mil rublos (R$ 123), sairá por 300 mil rublos (R$ 18.360). Pela nova tabela, ficou mais caro criticar o governo do que violar regras de armazenamento de materiais nucleares.

Nem a cultura escapou ao seu pervasivo espírito controlador. Em janeiro, em plena campanha para o terceiro mandato, Putin propôs, no diário Nezavisimaya Gazeta, uma unificação do melting pot russo através de cem obras literárias que a seu ver representariam o verdadeiro espírito da nação, a força de seu povo, de sua "civilização única". Não se furtou a aconselhar armênios, tajiques e outras minorias a submeterem-se ao domínio da cultura russa, à inigualável pujança do russki narod, do povão das estepes.

Não listou os cem livros, mas é de se supor que a bibliografia oficial inclua os contos naturebas de Mikhail Prishvin e várias daquelas chaturas patrióticas executadas pelos beletristas da era stalinista. Espera-se uma valorização de O Dom Silencioso, de Mikhail Sholokhov, clássico da ficção mujique, celebração da vida rural russa, prêmio Stalin de 1941, apesar das suspeitas de que o Nobel de 1965 apenas emprestou sua assinatura à obra, efetivamente escrita pelo cossaco Fyodor Kryukov.

Escritores contemporâneos, como Boris Akunin e Edvard Limonov, com certeza não terão vez, por suas posturas antiautoritárias. Outro sem a menor chance é o poeta Lev Rubinstein, um dos organizadores de uma marcha de intelectuais (e mais 10 mil aderentes espontâneos) contra a eleição de Putin, semanas atrás, em Moscou.

"Certos autores podem ser danosos ao espírito russo." Transcrevo não o presidente russo, mas Vasilii Yakemenko, líder da organização jovem Caminhando Juntos, linha auxiliar do governo, que pegou a deixa de seu xamã ideológico e sugeriu uma troca pública de livros em Moscou. Quem entregasse um volume de Karl Marx (ainda leitura perigosa) e Victor Pelevin (cuja ficção sexualizada afronta o puritanismo predominante) levaria um tomo de autor mais afinado com a ordem vigente. Citado como exemplo de "escritor patriótico", o contista Boris Vasiliev quase morreu de vergonha.

O que se faria com as obras trocadas? Bem, há nove anos a turma de Yakemenko incinerou, no melhor estilo nazista, um monte de exemplares de Banha Azul, provocativa ficção científica de Vladimir Sorokin, na qual, a certa altura, dois clones de Stalin e Kruchev sodomizam-se mutuamente.

Nesse contexto, a nomeação de outro Vladimir para ministro da Cultura, confirmada há menos de 15 dias, assustou, mas não surpreendeu. Vladimir Medinski, ex-jornalista chapa-branca de 41 anos, duas vezes eleito para a Duma (a Câmara Baixa russa), mas derrotado na terceira tentativa, em dezembro, o novo cacique cultural de todas as Rússias, é um apparatchik com bons serviços prestados à carreira política de Putin e ao obscurantismo.

O histórico da pasta da Cultura não é dos mais edificantes. Quem a ocupava antes de Medinski era o ex-diplomata Aleksander Avdeev, expulso da França por espionagem em 1983, escândalo detalhado no filme O Caso Farewell, de Christian Carion. Além de fiscalizar as artes, o cinema, o patrimônio histórico, os arquivos, as bibliotecas e os museus, o sucessor de Avdeev terá a seu talante o controle da imagem do país, sobretudo dentro do território nacional. A bem dizer, Medinski será mais um ministro da Propaganda do que um gestor das atividades artísticas de seus conterrâneos, mais um Goebbels russo do que o Zdanov do novo milênio.

Medinski estudou jornalismo e inglês no Instituto de Relações Internacionais de Moscou, celeiro de diplomatas e espiões, onde se doutorou com uma tese sobre a qual se amontoam 16 acusações de plágio. Entre 1991 e 1992 cuidou do setor de imprensa da embaixada russa em Washington. Grafômano dos mais exuberantes, publicou uma série de livros de história, Mitos sobre a Rússia, com o objetivo de "limpar o passado de impurezas" supostamente inventadas alhures para demonizar a antiga União Soviética. Nem o proverbial alcoolismo dos russos resistiu à sanha revisionista do futuro ministro, que também considera improcedente a fama de cruéis que em seus patrícios grudou.

Convicto de quem controla a história controla o presente, Medinski passou detergente no passado. E criou seus próprios mitos. Pintou Ivã, o Terrível, o primeiro dos czares, como um líder de bom coração; minimizou a longa tradição de antissemitismo da Rússia; reduziu a ocupação dos Estados bálticos e da Polônia, durante a 2ª Guerra, a meras "incorporações" territoriais; negou o envio de prisioneiros de guerra para campos de trabalhos forçados após a derrocada do Terceiro Reich; sugeriu que o pacto Molotov-Ribbentrop (o nefando acerto de neutralidade entre Stalin e Hitler) merecia um monumento; qualificou de falsificados os registros fotográficos da invasão da Polônia por tropas soviéticas em 1939.

Não obstante - ou justamente por causa de sua visão edulcorada da Rússia e sua gente - a história alternativa escrita por Medinski vendeu mais do que qualquer outro livro do gênero entre Omsk e Murmansk. Machado dizia que o povo ama as coisas que o alegram; os russos, deduzo, só apreciam as coisas que os engrandecem. Medinski, cito agora o reputado historiador da 2ª Guerra Aleksei Isayev, não escreve história, faz agitprop e nonsense.

Por que lhe deram um ministério? Segundo outro Vladimir (Pribylovski, cientista político), porque não conseguiram mais ninguém disposto a servir de megafone para o atual czar do Kremlin.

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