sexta-feira, maio 08, 2020

Com Toffoli e Bolsonaro, STF foi picadeiro de ato mais patético da história - REINALDO AZEVEDO

UOL - 08/05
Tem gato na tuba. Engula quem quiser a história de que Dias Toffoli, presidente do Supremo, foi surpreendido por Jair Bolsonaro. Se foi, que emita, então, uma nota de protesto por ter sido submetido ao ridículo — ele e o tribunal que preside. Ele e o tribunal que representa.

O STF não é um puxadinho do Palácio do Planalto. A ser verdade a versão que circula por aí — segundo a qual o ministro não estava no prédio, dirigindo-se para o local porque receberia a visita de Bolsonaro —, em nada fica melhor o retrato do presidente do Supremo. Como, segundo essa narrativa, não havia encontro nenhum agendado, cabia a Toffoli indagar, e eles têm intimidade para isto, qual era a agenda. Afinal, o presidente queria falar sobre o quê?

"Ah, estou aqui com um grupo de empresários e quero levá-los aí... " De novo: "Para quê, Jair (suponho que se tratem pelo prenome)?" E então, com honestidade mínima, Bolsonaro lhe diria que eles iriam pedir a abertura imediata da economia, quando as mortes alcançaram o patamar de 600 ocorrências por dia, com o colapso chegando ou já tendo chegado a várias capitais. No Rio, a fila de espera para leitos de UTI chega perto de 500 pessoas.

Se Toffoli foi mesmo engando por Bolsonaro e não sabia que estava participando de uma "live" para suas milícias digitais, que esclareça, então, em nota, lamentando o fato de ter caído numa espécie de cilada.

Não se falou sobre vítimas da doença no encontro. Os mortos foram um tema ausente. Quando se recorria à expressão "UTI", tratava-se de uma metáfora para aludir à economia. Isso, reitero, quando estamos no patamar das 600 ocorrências fatais por dia. Raramente senti tanta vergonha de ser brasileiro. Ou, por outra, de saber que compatriotas meus são capazes de fazer discurso tão pusilânime.

O encontro ocorre um dia depois de o próprio ministro da Saúde, Nelson Teich, ter admitido que, em certos lugares do país, será preciso recorrer mesmo ao lockdown, o que já acontece em São Luís, Belém e áreas próximas. Muitas pessoas estão morrendo em casa. As evidências de subnotificação nos envergonham. Ninguém pode estar contente com a situação, mas, então, que apresentem uma alternativa que não seja sinônimo de mandar milhares de pobres e pretos para as covas coletivas, em caixões empilhados.

Bolsonaro é, sim, um líder muito mais influente do que gostamos de admitir. É ele a matriz desse comportamento e desse sentimento que dá de ombros para a tragédia, transformando a morte em mero dano colateral do tal "funcionamento da economia", como se fôssemos obrigados a escolher entre uma coisa e outra. Tivesse havido o isolamento social na proporção adequada, e talvez estivéssemos mais prontos para sair dele.

É impressionante que um presidente do Supremo receba um presidente que não tem proposta nenhuma, que não respeita nem mesmo as orientações de um ministro da Saúde que foi escolhido a dedo para chegar lá e dizer: "O diabo não é tão feio como se pinta". Mas não há como o catatônico Teich fazer essa afirmação porque sua carreira ainda não acabou. Será desmoralizado pelos números. E ele terá de trabalhar depois do fim do governo. Ainda que seja hoje mais empresário do que médico, sobraram resquícios de sua ética profissional.

Se a alguns a resposta de Toffoli ao presidente pareceu dura, é puro erro de interpretação. O que se viu foi a ressuscitação do tal "Pacto entre os Poderes", coisa que, até agora, não sei o que significa e que, por óbvio, ninguém jamais saberá. A menos que alguém se apresente para esse tipo de encontro garantindo que, por algum tempo, vamos ignorar a lei em favor daquilo que o Poder Executivo, ou outro ente qualquer, considera eficiência.

Essa ida destrambelhada de Bolsonaro ao Supremo, naquela Marcha dos Mascarados, é das coisas mais patéticas, quem sabe a mais, de que eu e qualquer um temos memória pessoal e histórica. Um dia se vai esse espírito mau, e muitos vão se perguntar como foram capazes... E, no entanto, foram. Transforme os mortos numa taxa, num percentual, num número. Desumanize-os, submeta-os a um processo de reificação, de coisificação. E tudo ficará mais fácil. Depois, passe tudo pelo filtro do recalque, da pretensão e da arrogância sem lastro. E se chega àquilo que se viu nesta quinta-feira.

A história será muito dura com certas biografias. E nem precisará ser escrita com especial severidade. Bastarão os fatos.

Encerro lembrando que dá para saber agora por que há muito tempo parte da elite brasileira não se sentia devidamente representada na Presidência. Nenhum dos antecessores de Bolsonaro, incluindo os militares, seria capaz de fazer o que ele fez. Parte do capital no Brasil diz exatamente o que quer e como acha que devem ser tratados os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres. O Brasil é o segundo país mais desigual do mundo. Só perde para o Catar. É injusto. Nossos bambas fazem de tudo para levá-lo ao primeiro lugar no pódio.

E a culpa pelas iniquidades, claro!, é do isolamento social.

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