Eles se imaginam próximos do divino ou, como Lúcifer, desejam o monopólio do bem
Na corrosão mental ocorrida a partir do século 19 se encontra o aniquilamento da crítica, um fanatismo que antes definia o religioso. Os dogmas que levaram às fogueiras cristãs na era totalitária foram trocados por credos políticos. A infalibilidade dos papas ressurgiu nos líderes das revoluções ou dirigentes reacionários. Anathema sit tornou-se signo de morte política. Semelhante prática foi vivida sob os nazistas, stalinistas, fascistas. Mas ela existiu nas ditaduras que ensanguentaram a Europa, a África, as Américas. “Brasil, ame-o ou deixe-o”: a intolerância foi gerada pela redução do político (como o caracterizou Carl Schmitt) ao bélico.
Não existe genocídio sem o erotismo perverso entre dirigentes assassinos e dirigidos. Em livro cruel, Hitler e os Alemães, Eric Voegelin desmente a hipocrisia que desejou atribuir o inferno apenas ao Führer. Se a população inteira foi cúmplice do holocausto, houve um tipo humano que deu eficácia ao aniquilamento. Trata-se do militante.
O uso antigo da palavra indica o indivíduo ou coletivo religioso preso às ordens da autoridade eclesiástica. Mimetizando as formas bélicas de Roma, a Igreja Católica assume o conceito de ordem hierárquica, idealizado por Dionísio Areopagita. O cosmos seria uma cascata de luzes, das mais brilhantes e próximas a Deus às atenuadas no plano humano. Os postos nas imediações divinas brilhariam esplendorosamente, nos afastados o fulgor seria menor. No ápice os combatentes arcanjos, depois os sacerdotes, os reis e os nobres e, na obscuridade, o povo. Quem está no alto manda. Os demais obedecem.
Tal escala da auctoritas foi negada por Lutero. Os liderados por Calvino radicalizaram o veto à hierarquia e retomaram as teses democráticas gregas (Gerson Leite de Moraes, Entre a Bíblia e a Espada, Filosofia e Teologia Política em Calvino, 2014). Recordemos as Vindiciae contra Tyrannos, revividas na edição brasileira de Frank Viana Carvalho (2017).
Mas o vezo da hierarquia permanece na cultura ocidental, apesar da Reforma e das Luzes. As revoluções norte-americana e francesa abriram espaços de liberdade para os indivíduos. A contrarrevolução inspirada no mais rígido catolicismo político tudo fez para abafar as pretensões “ímpias” de autonomia humana. Um resumo da receita autoritária encontramos em Vargas : “O indivíduo não tem direitos. Ele tem deveres para com a sociedade e o Estado” (1.º/5/1936). Os liberticidas europeus, apoiados pelo Vaticano, aplicaram a lição (Kertzer, D.I.: O Papa e Mussolini).
O militante não tem direitos contra seu partido. Como o soldado, segue ordens e não as pensa. Como só conhece a cega obediência, não imagina que outros cérebros dispensem palavras de ordem e anátemas. Quando alguém nega seus dogmas, morde e calunia, se possível labora para a morte civil ou física do “inimigo”. Da literatura sobre os militantes, me limito a indicar Gotovich, J. e Morelli, J.: Militantisme. O militante foi essencial ao poder hitlerista no extermínio de judeus, ciganos, homossexuais e outros “parasitas”, como os democratas, liberais, socialistas. Na União Soviética, inverte-se a ordenação bélica, embora os judeus continuem como alvo a ser abatido (por exemplo, durante a campanha contra os médicos judeus, mantida por Stalin e acólitos).
Mesmo Trotski, tido como alternativa, disse no XIII Congresso do Partido Comunista da URSS: “Definitivamente, o Partido tem sempre razão (...). Não se pode ter razão a não ser com e para o Partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão” (citado por Claude Lefort, Un Homme en Trop). Se o partido não o prevê, um fenômeno não existe. Trotsky era, apesar de tudo, um pensador.
Se vamos aos militantes desprovidos de conceitos, encontramos uma teratologia. No Brasil: “Sem a orientação da doutrina marxista-leninista, doutrina todo-poderosa porque verdadeira, nada de bom e duradouro pode ser alcançado” (D. A. Câmara, “Forjemos nosso Partido à imagem e semelhança do Partido de Lenin e Stalin”, Problemas, 1953). E mais: “Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico” (M. Alves, “Elevar o nível ideológico do Partido, tarefa essencial na luta pela vitória do Programa” – Informe em nome do Presidium do Comitê Central, in Problemas, 1956). A técnica é translúcida: “Guiados pelos ensinamentos do camarada Stalin, nosso educador, estudemos e assimilemos a doutrina marxista-leninista” (Luís Carlos Prestes, Nossa Política, em Problemas, 1950). Para as citações, leia-se Rückert, Sérgio Joaquim, Persuasão e Ordem: a escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na década de 50, mestrado/Unicamp, 1987. Essas formas de enquadramento foram assumidas pela massa dos militantes. A reflexão crítica virou catequese.
Após uma palestra recente, quando indiquei os riscos de reduzir juízes, professores, cientistas, artistas ao papel de militantes, uma catadupa de ataques contra mim foi posta na internet por... militantes. Fui chamado de palhaço e vil caluniador da imaculada faina de militar. Em momento algum os autômatos da máquina partidária pensaram o problema. Pois bem, hoje os mesmos militantes, das mesmas agremiações, lamentam o fato, ou provável fato, de que juízes e promotores da Lava Jato agem em relação ao seu líder como se fossem... militantes, sem a reserva necessária ao mister. Convido os que atacaram minha honra, para garantir a hegemonia de sua grei, a relerem minhas considerações. Tarefa impossível: o partido e seus dirigentes nunca erram. E também os militantes.
Na escala cósmica eles se imaginam próximos do divino ou, como Lúcifer, desejam o monopólio do verdadeiro, do bem, do belo. Edificam pandemônios, dos quais são as primeiras vítimas.
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