O persistente enigma do futebol norte-americano
ARIEL DORFMAN
O ESTADO DE SÃO PAULO - 11/07/10
Durante toda a minha vida a irrelevância do futebol nos EUA me deixou desconcertado, perguntando-me, de vez em quando, como tantas pessoas neste planeta, como é possível que o esporte mais popular do mundo seja tão secundário e sem brilho na pátria de Lincoln. No meu caso, há motivos pessoais para me espantar com esse insólito fenômeno, já que minha paixão por futebol está inexoravelmente ligada à história norte-americana.
Com efeito, apaixonei-me pelo jogo graças ao senador Joseph McCarthy e sua anticomunista caça às bruxas. Se ele não tivesse perseguido meu pai esquerdista, funcionário argentino da ONU, forçando a família a fugir em 1954 de Nova York para o Chile, é provável que hoje eu continuasse a preferir os esportes praticados nos meus dez ininterruptos anos de infância ianque: o beisebol, o basquete e o belicoso "futebol americano". Mas quis o destino que eu fosse seduzido pelo idioma castelhano, pela revolução chilena, por uma senhorita em particular e, claro, pelo esplendor do futebol. Quando, desajeitadamente, tentei competir, aos tardios 12 anos de idade, nos campos de Santiago com jogadores que batiam bola desde a infância, cheguei a me ressentir da ausência desse esporte nas minhas escolas em Manhattan. Isso vai mudar, murmurei comigo mesmo, tem de mudar algum dia. Os americanos, com sua preeminência em tantas outras atividades atléticas, não podem dar eternamente as costas a um jogo tão belo, preciso e imprevisível, a essa gloriosamente feroz dança do suado corpo humano.
De modo que me alentou encontrar uma situação menos abismal quando, vítima de novos exílios, voltei a morar nos EUA, nos anos 80. O "soccer" (como o chamam os gringos) começava a se profissionalizar, graças à atuação de Pelé no Clube Cosmos, em 1977, e milhões de jovens americanos, rapazes e moças, já praticavam esse esporte. Aliás, durante dois anos fui o diletante treinador da equipe juvenil do meu filho caçula, Joaquín, nada menos que em Durham, na Carolina do Norte. Pouco depois, em 1991, as jovens ianques ganharam o Campeonato Mundial. Em seguida, em 1994, a Copa do Mundo masculina foi disputada em nove fervorosas cidades dos EUA. E em 2002 a seleção americana conseguiu avançar até as quartas de final na Coreia do Sul, insinuando a esperança de que, em breve, o futebol estaria tão difundido nos EUA quanto nos outros países. Mas essa ilusão ? robustecida recentemente pelo milagroso gol de Donovan, nos acréscimos, contra a Argélia ? se dissipou rapidamente. Depois de perder contra Gana na prorrogação, os ianques tiveram de partir da África do Sul, deixando atrás deles a mesma indagação acerca da insuficiência do futebol norte-americano que me desolou meio século atrás.
São múltiplas as razões que talvez esclareçam essa precariedade. Os americanos sempre se viram como perpétuos pioneiros, reinventando-se incessantemente sob céus novidadeiros, e seus esportes mais populares são os que se apropriaram de jogos mais tradicionais, modificando suas regras de forma drástica: o críquete tornou-se o beisebol, o rúgbi virou o futebol americano e até o basquete pode ser entendido como uma variação de atividades dos povos originários da América. Mas como pegar o futebol "forasteiro" e transformá-lo em algo que não seja... futebol? A predominância desses esportes mais "nativos" não permitiu ao "soccer" conquistar o espaço necessário, no âmbito universitário e profissional, para se desenvolver e obter recursos, o que, por sua vez, impede que esse seja o caminho da grandeza sonhada massivamente por jovens empobrecidos, de maneira que suas pernas superdotadas os tirem da penúria e do anonimato. As crianças americanas têm o mesmo talento dos meninos das favelas do Rio ou dos subúrbios miseráveis da Nigéria, mas ele é canalizado desde tenra idade para atividades mais claramente lucrativas.
Os garotos americanos tampouco se podem encantar com as maravilhas do futebol pela televisão. E este pode ser um problema quase insolúvel para que esse esporte consiga verdadeiramente avançar nos EUA, posto que se forma a partir de algo que é estrutural e essencial ao próprio jogo. Todos os outros eventos esportivos primordiais entre os gringos dispõem de interlúdios e interrupções nos quais mensagens comerciais podem florescer, mas uma das atrações insubstituíveis do futebol é o ritmo impiedoso da competição, uma vez começada a contenda. Como na própria vida, é impossível deter o relógio. Essa é uma norma tão estabelecida que os organizadores têm resistido ao clamor quase universal para que se admitam revisões por vídeo, mesmo quando o árbitro toma uma decisão flagrantemente errada que custe a vitória a um dos competidores. A partida prossegue, doa a quem doer. E se não é interrompida para corrigir injustiças, menos ainda o será para conceder espaço a intervalos comerciais.
Esse conjunto de circunstâncias significa que o futebol nos EUA está condenado a ser eternamente exíguo? Há antecedentes que incitam a um tímido otimismo. O primeiro é que os EUA, apesar de uma crescente onda de chauvinismo anti-imigrante, continuam a importar milhões de cidadãos do resto do mundo, e esses novos residentes, amiúde ilegais, trazem consigo, de contrabando, o carinho imorredouro pelo futebol. O segundo é que estamos vivendo um momento histórico em que a famosa excepcionalidade norte-americana está fazendo água.
Se os estadunidenses forem capazes de abandonar a ideia de terem sido escolhidos por Deus para salvar o mundo, se esses cidadãos estiverem deveras abertos para o fato de que são idênticos a todos os outros seres humanos e não têm um destino nem manifesto nem necessariamente superior ou virtuoso, não é possível que algum dia próximo se unam ao restante da espécie e venham a celebrar, todos juntos, o mais belo esporte do nosso tempo?
É, por acaso, inconcebível que, dentro de algumas décadas, esse país possa ganhar finalmente a Copa do Mundo?
ESCRITOR
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