O GLOBO - 22/06
De quinta-feira da semana passada, quando a violenta e despropositada ação da tropa de choque da PM de São Paulo contra um grupo de manifestantes do Movimento Passe Livre (MPL) serviu de centelha para uma adesão maciça às manifestações de rua, até ontem, a mobilização cumpriu um percurso meteórico.
Começou como ação de um pequeno grupo de jovens reunidos em torno da crucial questão da precariedade do transporte urbano de massa, cresceu com a ampliação da pauta de críticas e reivindicações, e chegou à noite de anteontem com manifestações sem controle, utilizadas por vândalos movidos a ideologias políticas ou não. Limites legais e políticos foram ultrapassados. Chegou a hora de parar e refletir.
O balanço da noite de quinta é trágico, com a disseminação de depredações e toda sorte de atos de vandalismo em várias cidades. Chama a atenção o ataque a sedes de governo, como já acontecera em São Paulo nas tentativas de invasão da sede da administração central do estado, Palácio dos Bandeirantes, na segunda, e, no dia seguinte, na da prefeitura. As cenas se repetiram no Rio, quinta, com a tropa de choque da PM obrigada a afastar vândalos das proximidades do prédio da prefeitura, com o uso da cavalaria, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, e, no fim da noite, proteger o Palácio Guanabara.
Como tem acontecido, os grupos se dispersam e voltam, sempre em meio a um quebra-quebra. Violência pura, sem qualquer relação com a absoluta maioria dos manifestantes, incapazes de conter quem tem usado as passeatas para agredir e destruir.
Os absurdos vistos em Brasília foram um dos sinais fortes de que a mobilização ultrapassara os limites mais magnânimos. Na segunda, o teto e a rampa do Congresso foram tomados, como já ocorrera no passado em outras circunstâncias. Na quinta, impedidos de fazer o mesmo, os bandos investiram contra o prédio do Itamaraty, onde chegou a haver um foco de incêndio.
Não faltou, nestes dias, sequer o bloqueio de estradas importantes na região da Grande São Paulo — Anchieta, Castelo Branco, Dutra, Anhanguera, por exemplo —, cena clássica de crises políticas latino-americanas.
Desde segunda, a violência havia escalado de maneira assustadora. Até ontem à tarde, o saldo era de dois mortos — um rapaz atropelado em Ribeirão Preto, interior paulista, ao fazer um bloqueio de rua, e uma gari, em Belém, intoxicada por gás lacrimogêneo. O movimento perdia parte da boa imagem de expressão do ressurgimento do exercício independente da cidadania. Para completar esta espécie de desconstrução, uma pequena passeata — pequena, mas catastrófica para o trânsito, como costuma ser — na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, deu ontem no final da tarde chance para a ação de saqueadores no comércio.
Na própria quinta-feira, o MPL percebera, em São Paulo, que o movimento escapara de qualquer controle e passara a hostilizar de forma agressiva partidos, principalmente os da esquerda, no poder, aliados dos defensores do passe livre. Ao comparecerem às ruas da capital convocados pelo presidente do partido, Rui Falcão, militantes do PT foram atacados, assim como os de outras legendas próximas ao MPL. Numa das mais importantes manifestações de rua dos últimos 28 anos, a maior desde as realizadas a favor do impeachment de Collor, em 1992, pela primeira vez na sua história o PT perdeu espaço em um ato público. Sinal dos tempos.
O que era considerado uma virtude da mobilização — sem lideranças visíveis, gerenciada por redes sociais — voltou-se contra o movimento, na hora em que foi necessário um comando para evitar a manipulação das manifestações por outros interesses. O apartidarismo, por sua vez, se converteu em antipartidarismo, reconheceu o próprio MPL em nota divulgada na madrugada de ontem, para explicar o abandono do protesto na Av. Paulista e da própria condução de novas manifestações.
O conflito entre apartidário e antipartidário terminou desvendando uma faceta de toda esta mobilização: a existência de uma agenda ultrarradical para além do passe livre, como a proposta de uma “reforma urbana”, fachada de um programa lunático de desapropriação de propriedades privadas nas cidades.
Questões como esta à parte, uma das várias zonas de perigo em que entrou o movimento é a ideia, também ilusória, subjacente às manifestações, de que, na democracia, é possível atingir objetivos políticos à margem dos partidos. O problema é que, se goste deles ou não, pensar em alguma tramitação ao largo dos partidos é enveredar por atalhos golpistas. Algo que se aproxima da perniciosa “democracia direta” chavista, em que as instituições republicanas são subordinadas a um Executivo cesarista, senhor de todas as decisões, manipulador-mor das massas, mantidas coesas por programas populistas assistenciais economicamente insustentáveis.
Os tempos eram muito diferentes, mas, mesmo na ditadura militar, quando o único partido de oposição existia por uma concessão do regime, a História provou que a atuação por meio do MDB e organizações formais da sociedade (ABI e OAB, por exemplo) foi a mais produtiva na luta pela redemocratização, afinal conseguida. A guerrilha, subterrânea, nas florestas e na cidade, foi retumbante fracasso e causa de enormes dramas pessoais e familiares. De ambos os lados.
Não foi fácil reconquistar a democracia. Mesmo para os que optaram pela resistência aberta, na legalidade, nos espaços possíveis de atuação que existiam. No final, houve a desejada transição pacífica, por meio de um acordo com os militares, com a adesão ao projeto de volta à democracia de políticos do antigo regime, como José Sarney, nos últimos dez anos uma das sustentações dos governos do PT, símbolo forte da conciliação negociada com eficiência e da qual o país se beneficia. Este é um patrimônio de toda a sociedade, e não será agora, com 28 anos ininterruptos de estabilidade democrática, o mais longo período na República, que haverá retrocessos.
Deste fenômeno que tem sido a erupção vulcânica de centenas de milhares de pessoas nas ruas das capitais e de inúmeras cidades menores é preciso extrair aspectos positivos e protegê-los do efeito da atuação de vândalos e saqueadores. Bandeiras importantes foram erguidas — não à impunidade, à corrupção, a partidos de aluguel, a um sistema partidário ineficiente etc. Trata-se de convertê-las em agenda de atuação política pelos canais institucionais, também com a ajuda das redes sociais. As ruas são apenas parte dos processos de mobilização política. Uma etapa que se esgota, como a atual se esgotou.
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