GAZETA DO POVO - PR - 12/01
No imaginário nacional, esporte é tradução de nossa alegria e brasilidade. Mas a esse orgulho se soma o fenômeno da violência nos estádios, um enigma que precisa ser desvendado, a tempo de salvar do mico as políticas públicas para o setor
Para surpresa geral da nação, o futebol é tema pouco visitado pelos pesquisadores. Talvez por ser tão cotidiano quanto o arroz e o feijão. Eis o nó cego. No momento em que o futebol fica associado a outro grande tema nacional – a violência – falta massa crítica para entender em que ponto um começa e o outro termina.
Antes de mais nada, há de se fazer justiça à leva de estudiosos que se fiaram sobre o sentido do futebol em nossas terras, de Mário Filho – autor do clássico O negro no futebol brasileiro; passando pelo sociólogo Roberto DaMatta, que se debruça sobre o tema com o mesmo afinco com que estudou a relação do brasileiro com o espaço público; chegando a José Miguel Wisnik – autor de Veneno remédio, no qual traça um panorama do futebol brazuca, da sociologia à estética. A lista inclui acadêmicos – do naipe de Maurício Murad, Fernando Mendes Júnior, Sílvia Chaipeta e Tarcyanie Cajueiro –, que numa força-tarefa se empenham em decifrar por que cargas d’água os estádios viraram sinônimo de “arenas de sangue”, com perdão ao clichê. O que indicam é urgente, afinal, em 2013 foram 30 os torcedores assassinados em campos de futebol. Em 2014, ano da Copa do Mundo, não vai dar para fazer de conta que somos a nação ensolarada, terra do samba, do carnaval e da caipirinha.
Em entrevista recente à imprensa brasileira, o antropólogo Marcos Alvito, da Universidade Federal Fluminense, não usou de meios tons para dizer o que pensa a respeito. Alvito pesquisou a relação entre a violência e o futebol na Inglaterra. Salta pela janela a comparação entre que os ingleses fizeram para resolver o impasse e o que não fazem os brasileiros. Para que se diga o mínimo, os britânicos não perderam tempo cadastrando os torcedores, incorrendo no vácuo jurídico de considerar suspeito todo e qualquer sujeito que vai aos estádios. Fazer assim custa caro, ajuda pouco. Antes, preferiu-se identificar aqueles que representavam potencial perigo, os “viciados em violência”, e não propriamente em futebol. Em paralelo, as forças de segurança inglesas passaram a considerar qualquer jogo uma antessala da tragédia. Para tanto, os estádios contam com vazão para ambulâncias e demais esquemas de socorro.
Se parece mais um exagero da terra da rainha, vale lembrar que os ingleses fizeram mais para conter a fúria dos hooligans. Entenderam que a violência que eclode na hora do jogo já deixou suas marcas pela cidade – nos bairros de onde saíram os torcedores, na vizinhança acuada pela presença dessa figura agora indesejada: o homem com uma camiseta e a bandeira de seu time. Sabe-se que ele é ator de um espetáculo – e está prestes a entrar em cena. No Brasil, é diferente, mas é igual, por mais absurdo que isso possa parecer. As lições dos estádios ingleses podem nos ensinar muita coisa. São modelos. As razões da violência aqui e lá, sem sombra de dúvidas, têm similaridades. Mas seria irresponsável fazer uma mera transposição de modelos, acreditando que possa existir um manual antiviolência, aplicável em qualquer realidade.
O que os pesquisadores nos dizem aponta em que medida somos parte de um fenômeno mundial e em que medida, temos a nossa própria tragédia. Um dos grandes méritos desses estudos é estabelecer marcos, que ajudem a entender o DNA da violência nos estádios brasileiros. Parece haver consenso de que o momento que serviu de gatilho para o fenômeno foi a chamada “Batalha Campal do Pacaembu”, em agosto de 1995. A partir dali, o que se suspeitava – o termo “torcida organizada” – representava um perigo de fato. A começar pelos números. Entre 1991 e 1995, apenas a Gaviões da Fiel passou de 12 mil para 46 mil associados. A faixa etária de filiação que mais cresce é dos 12 aos 18 anos. O número de mortes nos estádios, da mesma maneira, duplicou a cada ano da década de 1990.
As razões europeias são tantas. As nossas, incluem as mudanças bruscas passadas pelo país na década de 1960, o inchaço da periferia e a maneira brutal como milhões de moradores das franjas foram se vendo à parte da escola, da saúde, do trabalho. Some-se a esses ingredientes a agressividade da sociedade do consumo, insuflando o que Gilles Lipovetsky chamou de “era do vazio”. Difícil negar que o torcedor ensandecido, infiltrado na massa, não aja movido por essa soma de produtos. Como diz o pesquisador Carlos Alberto Máximo Pimenta, da Universidade de Taubaté, a desorganização da sociedade brasileira, a partir da década de 1970, colaborou no esvaziamento no sentido do coletivo. Fato mundial? Claro – agravado pela pólvora que lhe acrescentamos. Armamos a bomba, que a desarmemos em seguida.
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