O GLOBO - 03/10
Esses médicos podem não resolver, mas também não fazem piorar o sistema. O problema é ficar nisso
Três coisas mudaram profundamente o Brasil, e para muito melhor: a Unidade Real de Valor, estranha criação de economistas, que preparou a introdução do Real; as privatizações (telecomunicações, siderurgia, mineração, petróleo, estradas); e a Lei de Responsabilidade Fiscal, com regras e limites ao gasto público.
"Houve passeatas pedindo isso? Nenhuma. As pesquisas apontavam para isso? Não. O que houve foi liderança, uma capacidade de apontar rumos e uma articulação eficiente para aprovar o que tinha que ser aprovado no Congresso e implementar o que dependia da ação de uma tecnocracia eficiente".
Essa é a observação muito pertinente do economista Fábio Giambiagi, em entrevista publicada no jornal “Estado de S.Paulo”, no último domingo. Aponta para um problema crucial nos dias de hoje: a falta de lideranças que... liderem, ou seja que não se guiem apenas pelo que os marqueteiros propõem a partir de pesquisas de opinião. Ou de manifestações populares.
Claro que pesquisas e manifestações são sinalizações importantes. Mas elas não conduzem diretamente a políticas. E, não raro, pedem providências contraditórias. Por exemplo: todo mundo reclama dos impostos que pagamos e todo mundo pede mais e melhores serviços públicos, que exigem mais gastos.
A maior bronca da população, indicada em pesquisas e nas redes, está nos serviços de saúde, especialmente os públicos. Há reclamações, e muitas, contra os planos e seguros privados, mas parece claro que a população absorveu aquilo que a Constituição diz — saúde é direito de todos e dever do Estado. Resumindo: que todo brasileiro tem o direito de ser atendido a tempo, de graça, por bons médicos, em bons hospitais e postos de saúde ou em casa mesmo.
Não é fácil entregar isso. Estudos abundantes mostram as dificuldades do setor, que estão, sim, na falta de mais dinheiro, mas, principalmente, na baixa produtividade. Com o dinheiro atual, daria para fazer mais e melhor.
Mas isso exige, por exemplo, regras de gestão baseadas no mérito, na avaliação frequente da eficiência, prêmios para os competentes e punições, incluindo demissões, para quem não cumpre as metas. Dá para medir a eficiência de um hospital e seus funcionários? Dá e é bastante fácil, seja o hospital público ou privado.
Difícil, no setor público, é introduzir sistema e metas. Sindicatos de funcionários certamente vão reclamar — como sempre reclamaram — de modo que há um custo político nessa mudança.
Mas será que os funcionários são todos vagabundos e incompetentes? Está claro que não.
É verdade que muita gente prefere um emprego mediano, com salários medianos, sem ganhos expressivos, mas também sem risco de demissão ou de cobrança. Para os líderes sindicais, é mais fácil defender um sistema que iguale todos, ainda que por baixo, do que um modelo de ganhos e riscos. É nesse quadro que os sindicatos se dedicam basicamente a pedir reajustes salariais, sempre limitados dada a restrição dos recursos. O resultado é um médico e um enfermeiro competentes e que trabalham pesado — e ganham a mesma coisa que aqueles que mal aparecem no serviço.
Coloque aqui professores, policiais, funcionários em geral — e vai-se encontrar um quadro parecido.
Quer dizer, então, que não tem jeito? Tem. Experiências diversas, aqui e lá fora, e o simples bom senso sugerem que a maioria dos trabalhadores, no setor público ou privado, topa um sistema de meritocracia, desde que explicado e implantado com argumentação e num ambiente pacífico. Só que dá trabalho e exige verdadeira liderança, inclusive uma que corra riscos.
É mais fácil inventar o Mais Médicos. Quem pode ser contra a colocação de médicos em lugares que não tinham esse profissional? É claro, porém, que um punhado de médicos — dez mil que sejam — não vai fazer diferença num universo de mais de 350 mil, o número desses profissionais atualmente trabalhando no Brasil. E nem que sejam altamente capacitados serão capazes de superar a falta de estrutura e de recursos verificada nos lugares mais necessitados.
Mas dá para fazer uma festa na chegada de 150 cubanos, com uns bons pontinhos na pesquisa. Parece que o governo está fazendo alguma coisa. Digamos que tudo bem. Um pouquinho de marketing não faz mal, não é mesmo? Esses médicos podem não resolver, mas também não fazem piorar o sistema.
O problema é ficar nisso. Assim como congelar tarifas é a reação mais fácil e mais popular — e a menos eficiente diante da bronca com os serviços de transporte. Assim como eliminar pedágios é a resposta mais demagógica e marqueteira, no mau sentido, quando as pessoas reclamam do estado das vias públicas.
Eis o ponto: protesto, já temos, ainda bem. Faltam-nos lideranças, à esquerda e à direita, que saibam responder mesmo a broncas ocultas.
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