O GLOBO - 29/09
Poucos tiveram a sorte de viver em Paris, mas todos, onde quer que estejamos, carregamos cidades dentro de nós
Paris é uma festa
Na abertura de “Paris é uma festa”, último livro escrito por Ernest Hemingway e somente publicado depois de sua morte, o escritor americano afirma: “se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante”.
Poucos tiveram a sorte de viver em Paris — jovens ou não —, mas todos, onde quer que estejamos, carregamos cidades dentro de nós.
Pauliceia desvairada
Semana passada participei de um evento literário em São Paulo, numa mesa com mais dois escritores — Maria José Silveira e Marçal Aquino —, em que se discutia a presença da cidade em alguns de nossos livros. O mediador da conversa, Manuel da Costa Pinto, observou que dos três escritores somente eu era paulistano, já que Maria José nasceu em Jaraguá, Goiás, e Marçal em Amparo, no interior do estado. Mas ao contrário de Maria José e Marçal, habitantes da capital paulista, eu vivo no Rio de Janeiro (que é como não cariocas se referem ao Rio) há mais de vinte anos. A São Paulo que aparece em vários dos meus romances é, portanto — como a Paris de Hemingway —, uma cidade que carrego comigo.
Memória da pedra
Vi na televisão um programa em que o poeta Ferreira Gullar narra uma viagem que fez a Santiago do Chile há pouco tempo, muitos anos depois de lá ter vivido. Em 1973, em fuga da ditadura brasileira, o poeta viveu em Santiago e testemunhou aterrorizado o golpe de Estado que derrubou o governo democrático de Salvador Allende e instaurou no Chile a tenebrosa ditadura de Augusto Pinochet. Ferreira Gullar conta que ao visitar recentemente a cidade, no momento em que reviu o prédio em que morara 40 anos antes, teve a impressão de que o edifício e as ruas de Santiago nada guardavam das sensações que ele experimentara naqueles dias passados. A pedra e a madeira não têm memória, observa o poeta. A Santiago de 1973 existe na memória de Ferreira Gullar, mas o poeta e as emoções que ele lá sentiu não deixaram rastros na Santiago concreta.
Cidades invisíveis
Quando escrevo histórias com meu personagem Remo Bellini, um detetive paulistano, descrevo a cidade de São Paulo como ela existe na minha memória. Escrevo meus livros no Rio, e muitas vezes, ao terminar uma história do Bellini, tenho de ir até São Paulo e caminhar pelas ruas que citei, para checar se minhas lembranças estavam corretas. Invariavelmente elas NÃO estavam. Nos meus livros São Paulo é uma cidade imaginária.
Pedro Páramo
Cidades reais são sempre imaginárias nas obras de ficção, assim como cidades inventadas guardam grande semelhança com cidades verdadeiras. A Macondo, de García Márquez, assim como a Gotham City, do Batman, são tão reais ou irreais quanto o Rio de Machado de Assis ou a Nova York de Paul Auster. No romance “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo, o personagem narrador, depois da morte da mãe, vai até a cidade de Comala em busca do pai. Sobre a cidade, diz o narrador: “Eu imaginava ver aquilo através das recordações de minha mãe: de sua nostalgia, entre retalhos de suspiros. Sempre viveu ela suspirando por Comala, pelo regresso, porém jamais voltou. Agora venho eu em seu lugar.”
Logo o narrador descobrirá que Comala é uma cidade habitada unicamente por fantasmas, entre os quais ele se inclui.
O tornado de Taquarituba
Na canção “Futuros amantes”, Chico Buarque fala sobre uma cidade invisível: “E quem sabe, então, o Rio será alguma cidade submersa, os escafandristas virão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos…”
Se tempos atrás alguém tivesse escrito, ou cantado, que um tornado se abateria sobre uma cidade no interior do estado de São Paulo seria provavelmente tachado de inventivo. Bem, o tornado de Taquarituba é real, assim como os prejuízos, mortes e danos que causou. Resta saber se a Taquarituba que cada um de nós imagina também é real. Machu Picchu, Pompeia e Brasília são cidades reais ou imaginárias?
Cidades não têm fim
Ao final de “Paris é uma festa”, Hemingway nos elucida: “Paris não tem fim, e as recordações das pessoas que lá tenham vivido são próprias, distintas umas das outras. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando”.
Cidades não têm fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário