O Estado de S.Paulo - 30/09
NOVA YORK - Numa noite fria de novembro de 2010, os convidados da opulenta festa do maior prêmio literário norte-americano disputavam raros táxis na calçada do Cipriani Wall Street. Meu anfitrião, ainda com a medalha de finalista pendurada sobre o terno, negociava uma corrida com os livery taxis, que não têm taxímetro. Os motoristas cobravam preços exorbitantes à medida que o frio aumentava. Dois policiais se aproximaram e resolveram fazer vigorar a lei que proíbe livery taxis de pegarem passageiros nas ruas. Estava num grupo cujas taças de vinho tinham sido reabastecidas regularmente nas três horas anteriores.
Eu ouvi o começo de altercação e a bomba: "Vai se @*#er!", meu anfitrião gritou com o rosto a poucos centímetros da cara do policial. Eu devo ter fechado os olhos, esperando o clicar das algemas ou pior. Mas o policial musculoso e armado balbuciou algo e se afastou. Meu reflexo de carioca criada na ditadura militar me fez continuar esperando o pior e, nervosa, me despedi do grupo.
A caminho de casa pensei: e se a cena tivesse se passado na calçada de um bar do Harlem? E se meu grupo não fosse composto de brancos elegantes de meia-idade?
Neste fim de semana, imaginei que estamos no arborizado câmpus da Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro. O jornalista Thomas Friedman, do The New York Times, descobre que o juiz John Roberts é convidado de um seminário na PUC. E decide se aventurar no câmpus para bater um papo com o presidente da Suprema Corte norte-americana. Alguma chance de Friedman ser levado num camburão e autuado por transgressão criminosa, como aconteceu com a correspondente do Estado Claudia Trevisan, em Yale? Friedman nunca chegaria às mãos da PM carioca. E por que não? Porque ainda que um segurança da PUC nunca tenha ouvido falar em Friedman, ele tem inteligência suficiente para distinguir seu interlocutor de um invasor violento da propriedade privada que é o câmpus do bairro da Gávea.
Mas estou sendo injusta se sugerir que um certo meganha que atende pelo nome de DeJesus e o assessor da Escola de Direito da Universidade de Yale são burros. É altamente improvável que alguém com um Q.I. baixo trabalhe para Roberto Post, o diretor da Escola de Direito votada a melhor do país. E menos provável ainda que a mais antiga força policial num câmpus universitário americano não tenha selecionado criteriosamente os 86 colegas de DeJesus. Colegas que nunca me pararam quando cruzei o câmpus com equipamento de TV.
Além de absurda e ultrajante, a prisão de Claudia Trevisan no câmpus de Yale - universidade multada em maio pelo governo Obama por falha em denunciar casos de estupro e violência sexual - é reflexo de uma tendência sinistra, um pacto faustiano da sociedade americana com o aparato de segurança.
Esse pacto se reflete na truculência seletiva demonstrada em Yale. Pode ser encontrado ao norte da fronteira com o México, onde um norte-americano instalou uma câmera no para-brisa, cansado de ter seu carro revistado quase todos os dias sob suspeita de ter entrado ilegalmente no país do qual não saiu. É um pacto que faz com que toda uma geração de jovens de pele escura em Nova York, de acordo com uma nova pesquisa, não denunciem crime à polícia, detidos tantas vezes sob suspeita de nada.
Recentemente, Tom Conroy, assessor de imprensa de Yale, se sentiu compelido a responder a uma acusação feita por alunos da universidade sobre o misterioso desaparecimento de esquilos no câmpus. Afirmou, numa nota, que Yale não "interfere na população" de esquilos. No sábado, Conroy anunciou, em outra nota, que Claudia Trevisan não poderia ter colocado os pés no câmpus onde turistas e estranhos perambulavam sem se identificar. Portanto algemar e manter a jornalista incomunicável durante horas era apenas natural. Na lógica orwelliana de Tom Conroy, os esquilos levam a melhor.
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