domingo, junho 23, 2013

Hitchcockianos - LUIS VERNANDO VERÍSSIMO

O ESTADÃO - 23/06

Adoravam Hitchcock e passaram a se ver todas as noites

Conheceram-se numa festa e não demorou para descobrirem uma afinidade: os dois adoravam os filmes do Alfred Hitchcock. Divergiam em algumas coisas - ele, por exemplo, achava inverossímil a cena em que a Grace Kelly mata um homem com uma tesourada nas costas, em Disque M Para Matar, ela achava perfeitamente possível. O Hitchcock favorito dela era Um Corpo Que Cai, embora já tivesse visto Janela Indiscreta umas quinhentas vezes. E o Hitchcock favorito dele?

– Os Pássaros. Ela fez uma cara feia.

O encontro seguinte foi numa loja de vídeos. Ele mostrou:

– Olha o que eu achei... Era Notorius. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado: Os Pássaros. Iria rever para ver se desta vez gostava.

– Você não é obrigada a gostar porque eu gosto. – Quero lhe dar outra chance - explicou ela, rindo.

No encontro seguinte, ele disse que Notorius tinha envelhecido um pouco. E perguntou o que ela tinha achado dos pássaros.

– Sei não... - disse ela

– Acho que vamos ter que ver juntos - disse ele.

– No seu apartamento ou no meu?

Foi na noite seguinte. Apartamento dela. Ela tinha uma amiga loira chamada Rute, muito parecida com a Kim Novak, que diplomaticamente ficou no seu quarto enquanto eles viam Os Pássaros na sala. Os Pássaros, argumentou ele, é o filme metafísico de Hitchcock.

O único filme de terror na história do cinema que não tem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza vingando-se do homem, é uma ordem pré-humana desarrumada que reage ao... Antes de terminar a exegese eles estavam se beijando.

Passaram a se ver quase todas as noites. No apartamento dela, porque a tevê dela era maior. Só viam Hitchcock. Às vezes discutiam.

– Disque M Para Matar é um Hitchcock menor. – O quê?! O quê?!

Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade que encontrara (Sabotagem, por exemplo) e faziam as pazes.

Ela se apaixonou por ele. Que de tanto frequentar o apartamento dela, também se apaixonou. Não por ela, mas pela Rute, sua amiga irresistivelmente hitchcockiana. Foi o que ele tentou explicar (“Eu sou coerente!

Eu sou coerente!)” antes de levar uma tesourada nas costas que não o matou, provando a sua tese, mas acabando com a relação.

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