terça-feira, setembro 18, 2012
Breve relato do combate à corrupção no Brasil - VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ
Valor Econômico - 18/09
A versão que conheço leva Pinochet à ponta da mesa, comandando a reunião de ministros, mas como não deve passar de um ilustrativo mito urbano, podemos substituí-lo por qualquer outro governante latino. O ditador chileno anuncia o orçamento para o ano seguinte, porém destina uma verba dez vezes maior para a manutenção e reforma do sistema prisional do que a reservada para a pasta da Educação. Cadeias novas, celas individuais, como prevê a lei. Logo interpelado por seu corrupto ministro da Educação, acerca da disparidade de valores orçamentários via a ladainha sobre a importância dos professores, Pinochet teria retrucado: "Tenha em conta, ministro, que nenhum de nós pretende voltar à escola."
Real ou não o diálogo, o fato é que também no Brasil, durante os tempos de chumbo, algo muito parecido ao conselho do general deveria ressoar ao próprio legislador, que foi extremamente condescendente com o corrupto, apenas porque este fazia, como sempre faz, parte do Estado. Um pequeno histórico da alteração desse status é o que ora se pretende traçar.
De início devo reconhecer, com tristeza, que a produção científica nacional sustentou essa branda legislação, e, portanto, talvez a tenha antecedido. Clássicos do direito penal redigidos até a década de 1970 não resistem a uma análise de discurso apurada, que neles desmascara a velada tolerância a delitos contra a administração: ao mesmo tempo em que assentam explicitamente que o suborno é o mal que faz sangrar o país, suavizam o discurso quando se trata de determinar punição severa a funcionários públicos desonestos.
Depois da abertura democrática de 1980, mas ainda de modo não majoritário, uma nova geração de penalistas altera esse quadro e denuncia, dentre muitos outros anacronismos, a complacência com que o Estado trata seus funcionários corruptos. Isso fermenta algumas reformas legislativas, mas não há dúvida que o golpe mais certeiro é a reforma gerencial dos anos 1990 (de Bresser e demais brancaleones), que culmina nas Emendas Constitucionais 19 e 20, de 1998, cujo espírito se refrata em todo o ordenamento: a partir de então, o servidor público não é mais carne do próprio Estado, a ser por este sempre preservada. É a filosofia de tantas outras reformas, já de característica criminal, contemporâneas à alteração constitucional: a gigantesca ampliação da possibilidade de perda do cargo público como efeito da condenação, em uma reforma penal de 1996 (feita pela Lei nº 9.268), delas é a que creio mais importante.
Essa vontade política, acompanhada pela ciência, segue nos governos posteriores, agora especificamente sobre o crime nuclear: uma lei de 12 de novembro de 2003, já sob o governo do PT, dobrou a pena mínima dos delitos de corrupção e condicionou a progressão de regime à total reparação do dano. De um modo análogo, uma lei processual de 2008 estendeu a todos os cidadãos um instrumento-chave de defesa preliminar, que era privilégio dos funcionários públicos, a quem, dizia-se, interessava ao Estado proteger, em nome de sua imagem como administração.
Todo esse histórico próximo de alterações legislativas influencia no julgamento do mensalão. Basta dizer que essa nova pena mínima é aplicável aos delitos descritos na denúncia da Ação Penal nº 470, cometidos depois de novembro de 2003. Inexistente tal lei, firmada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dificilmente esses delitos escapariam à prescrição.
Porém, por ser Brasil, faltava saber se o Judiciário seria elo da mesma corrente, diante do primeiro julgamento de corrupção. Em bom português, queríamos saber se a lei pegou ou não. Coisas do destino, o tal julgamento é o do mensalão, e nele a resposta já se constrói, confesso que de modo diferente de o que eu previa: os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), nas condenações que se esboçam e já não se revertem, demonstram que se curvam a esse espírito político-legislativo. E nisso interfere, vetorialmente no mesmo sentido, a gradual recomposição da Suprema Corte, mesmo de um ou outro ministro que parcialmente absolve alguns réus mas condena a tantos outros, com votos fundamentados.
Começo então a me convencer, diante de condenações que já não permitem penas diversas do cárcere, que a Ação Penal nº 470 é sim o coroamento de uma reforma gradual dos governos pós-ditadura. Se estes recrudesceram a lei porque realmente estavam convictos do desvalor da corrupção, ou se o fizeram porque continuaram crendo, em desobediência ao conselho da anedota de Pinochet, que a lei jamais os atingiria, é algo que não nos cabe descobrir. Vale somente destacar que cientistas, legisladores e, agora, juízes coincidiram na meta comum.
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