sábado, março 10, 2012

Isto não é uma resenha - SÉRGIO AUGUSTO


O Estado de S.Paulo - 10/03/12


O Colunista se sente bastante tentado a desistir de escrever. O Colunista está por aqui de inventar pautas.

O Colunista sou eu mesmo. O c maiúsculo não é uma afetação megalômana. O escritor que estou, canhestramente, parodiando ou parafraseando só alude aos protagonistas de suas narrativas em caixa-alta: Escritor, Autor, Romancista, Leitor. Bem-vindos à excêntrica ficção de David Markson.

Falei dele en passant, quatro meses atrás, ao brincar neste espaço com a Quadrilha do Drummond, agora o trago de volta porque o 10.º número da revista Serrote, a ser lançado na terça, nos faz a fineza de traduzir as primeiras 15 páginas de This Is Not a Novel. Que começa assim:

"O Escritor se sente bastante tentado a desistir de escrever.

O Escritor está por aqui de inventar histórias".

Nas 175 páginas seguintes, o Escritor, também "cansado de inventar personagens", encadeia centenas de anedotas e curiosidades sobre figuras históricas e literárias, iniciando com as mortes de Lord Byron e Stephen Crane, e terminando com os melancólicos funerais de Leibniz (só uma pessoa compareceu) e Stendhal (assistido por apenas três), arrematados por um adeus - "Farewell and be kind" - do Escritor, prestes a morrer de câncer.

Um romance magrittiano? Pode ser. Outras classificações, coletadas aqui e ali: poema épico pós-moderno, almanaque polifônico, fuga verbal, bricabraque beckettiano. Também já o definiram como um sucedâneo em prosa de The Waste Land, de Eliot, e o compararam, inevitavelmente, a Borges e Calvino. Publicado em 2001 e, como o resto da obra de Markson, nunca traduzido no Brasil, não difere, na forma e na estrutura, das outras três colagens ou assemblages do autor: Reader's Block (Leitor Bloqueado, 1996), Vanishing Point (Ponto de Fuga, 2004) e The Last Novel (O Último Romance, 2007). Que Markson faz questão de rotular de "romances".

Os livros anteriores - Springer's Progress (A Evolução de Springer, 1977) e Wittgenstein's Mistress (A Amante de Wittgenstein, 1988), os únicos dessa fase que li - eram bem menos experimentais e minimalistas, mas já cheios de alusões, metáforas, jogos de palavras e pastiches.

Restringe-se ao título o parentesco de Springer's Progress com a alegoria cristã do seiscentista John Bunyan, Pilgrim's Progress (O Peregrino). Seu protagonista, um escritor amoral (e, portanto, nada cristão) chamado Lucien Springer, foi meio inspirado no beberrão Malcolm Lowry, a quem, aliás, Markson dedicou um ensaio biográfico. Um admirador de primeira hora, o crítico Jonathan Yardley, exaltou Springer's Progress como uma "exuberante celebração da concupiscência". Além do que bem-humorada e inteligente.

Wittgenstein's Mistress, recusado por 54 editoras até ser aceita pela Dalkey Archive Press, é um monólogo abstrato e erudito sobre a solidão de uma mulher que se crê o único ser humano sobre a face da Terra. Louca ou não, um personagem irresistível cujas meditações irreverentes sobre sexo, músicos, cinema, mitos gregos, escritores e filósofos prefiguram o Leitor de Reader's Block, o Escritor de This Is Not a Novel, o Autor de Vanishing Point e o Romancista de The Last Novel.

Markson pertence a uma linhagem que vem lá de Laurence Sterne (mestre confesso até do nosso Machado) e não chegou ao fim com ele, nem com William Gaddis, John Hawkes, Richard Brautigan (o Mark Twain hippie) e Gilbert Sorrentino, seus mais próximos parâmetros na ficção de vanguarda americana. Criou um estilo sui generis de ensaio ficcional, em que autor e narrador se fundem e confundem, e um elenco ecumênico de celebridades artísticas, literárias e políticas domina a narrativa, articulada por uma cadeia de analogias, contrastes, justaposições e coincidências. A "cultura inútil" redimida por um culto e sofisticado bricoleur.

Seus manuscritos, revelou na abertura de Vanishing Point, nutriam-se de anotações que obsessivamente fazia em pequenos cartões guardados em tampas de caixa de sapato. Com eles construiu uma enciclopédia cubista, um folclore particular.

Brahms tinha olhos azuis - como Abraham Lincoln e Hitler. Jack, o Estripador era canhoto - como Osama bin Laden. Lenin cismou que o poder embriagador da música o fazia dizer besteiras. Darwin rasgava livros grossos ao meio para os ler com mais facilidade. A franqueza de Tolstoi diante de Chekhov: "Você sabe que eu não suporto as peças de Shakespeare, mas as suas são ainda piores". A pindaíba e a imaginação de Balzac: desenhou um retângulo na parede e decretou que era um quadro de Rafael. O rigor de Flaubert: insuficiente para notar que os olhos de Emma mudam de cor a certa altura de Madame Bovary.

"Há seis andares no prédio do romancista." Com essa observação, bem ao gosto de Georges Perec, The Last Novel engrenava a primeira. E já na frase seguinte estávamos na Capela Sistina. Seria mesmo a derradeira obra do autor e sua última palavra sobre a velhice e o isolamento do artista, em cujo fecho brilham a clarividência de Novalis (sempre faça o que melhor puder) e a lucidez de Santayanna (só um velho tolo não ri). Markson morreu de câncer, como o Escritor de This Is Not a Novel, em 2010, aos 82 anos.

Num gesto de extrema generosidade, doou sua biblioteca à livraria Strand, em Manhattan, pois nela comprara boa parte de seus livros. A Strand foi fundada no mesmo ano (1927) em que Markson nasceu, em Albany, onde, no ano seguinte, nasceria William Kennedy, autor de Ironweed. Se abri a coluna parodiando os romances de Markson, por que terminá-la de outra maneira?

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