O Estado de S. Paulo - 24/09
Meu Deus do céu! Estou revendo as provas de meu próximo livro de artigos. Vai sair pela Editora Objetiva. Rever textos é duro; todos os deslizes da vaidade aparecem ali, na cara. O desejo de bancar o inteligente, de parecer mais culto, a vontade do roubo, do plágio, ficam visíveis, em flor. E os adjetivos? "Belo, inominável, contemporâneo." E os "portantos", os "outrossins" e os "menos que..."? Devia haver uma polícia retórica. E as repetições da mesma ideia, por medo de não ser entendido? E a vontade de se esconder atrás das palavras? Quantas metáforas nos ocultam... E a esperança de atingir uma "essência", ou pelo barroco ou pelo seco? (Eu já ia escrever: ou por Gongora ou por Graciliano, numa sórdida tentação de parecer erudito.) E o desejo de ser amado? E a vontade de influir? De mudar o mundo? E o Messias que há em nós? E o S. Francisco de Assis? E, pior, os erros de português: o "o" ou "lhe", e o "infinitivo flexionado" (é esse o nome?) Ahh, mãe... "Fazer pirâmides e não biscoitos", como queria Rosa? (Nelson Rodrigues, que odiava Guimarães Rosa, dizia que ele fazia "pirâmides como bolos de confeitaria".) Ou então "Biscoitos finos para a massa", como queria o Oswald? Ou o "Seja burro!", como queria o Nelson? Ser o quê? (Tem circunflexo?) "Por que, porque ou por quê"? Escrever é uma barra.
"O estilo é o homem", disse o célebre Buffon (quem terá sido ele?) ou "o Homem é o estilo", como disse Lacan, que eu estudei um pouco, mas... quão pouco sei... Lembro que Rubem Braga dizia que despediria o redator que escrevesse: "Tirante, é óbvio…" ou que "o trem ficou reduzido a um montão de ferros retorcidos…". Eu serei um deles?
E os desejos inconfessáveis? E a vontade de ser sempre "progressista", de jamais ser chamado de "reacionário"? E o desejo de enganar, mentir, roubar o leitor, "meu semelhante e irmão", como dizia Baudelaire, em almanaques para falsos chutadores.
E a busca do elogio? Às vezes, quebro a cara, com o elogio rancoroso: "Você escreve melhor do que filma". E o contrário: "Você devia era filmar e parar de dizer bobagem no jornal...". E o elogio terrível e burro: "Rapaz, você pra mim é o melhor escritor, depois do fulano de tal (uma besta, claro...)". Ou o elogio errado: "Cara, aquele artigo que você fez a favor do neoliberalismo foi ótimo!".
E os inimigos? Sempre de olho em meus erros. E como eu escrevo na navalha fina entre o sim e o não, entre o bem e o mal (viram como eu tento uma complexidade não maniqueísta?) ou melhor dizendo, como eu tento uma distância brechtiana do mundo, um "verfremdung effect" (viram? Alemão...) diante dos fatos ou, como eu tento fugir de definições fechadas, sou alvo de ataques de imbecis que querem subir na vida pelo "aplique" de uma "negatividade lucrativa" (upa!...) ou seja, como eu acho que a verdade está entre a cruz e a caldeirinha, sou bom alvo para as minhocas fascistas, principalmente as que se chamam de "esquerdistas" ou até de nazistinhas mesmo, que me acham "criptocomuna".
Rever um livro é "vê-lo com os olhos dos outros". (ohhh...) Que vão dizer? Meu Deus, já pensou o Luiz Ruffato ler isso? E o Antonio Candido? Se ele pega esta... E o conspícuo João Ubaldo, o grande romancista que eu lancei na Revista da UNE em 1963, com o antológico conto Josefina? Que vai dizer? Rever provas de livro é feito arrumar a casa, como minha mãe dizia: "Não reparem..., a casa não está arrumada ainda...". Em suma, como ser humilde e maravilhoso? Como arranjar um título que englobe minha "complexa alma"? Que seja simples, discreto, e "profundamente inteligente"? Terei sido suficientemente indecifrável para ser contemporâneo e genial como David Foster Wallace ou para evitar a farsa de gente como Murakami? E o Bolaño? Conseguirei o inexplicável sucesso, como em Detetives Selvagens? Terei lido a Review of Contemporary Fiction com afinco? Como escrever sem esperança de sentido? Tenho de caprichar bastante para ser "distópico". (Viram, como tento me atualizar?)
E aí lembrei de Nelson quando diziam que seu texto era coloquial e pobre: "Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos" ou de João Cabral: "Não perfumar a flor..." ou do Eça-narrador querendo impressionar o Fradique Mendes: "A forma de V. Exa. é um mármore divino com estremecimentos humanos" ou Mallarmé ("La chair est triste, hélas, et j'ai lu tous les livres" ou "Definir é matar; sugerir é criar!". (Profusas citações... viram?)
Em seguida, mostrarei alguns vexames que eu tirei do original (ohh, como ele é autocrítico e sincero!): "Mede-se esta ideia pela eficiência de uma práxis" ou "Michelangelo fez Pietà arrastado pelo amor de atingir o gesto humano no mármore". Eu escrevi isto? Escreveu sim, seu idiota. Ou isto: "Tudo não passa de indignação transida de esperança, remota oscilação na escala Richter da alma". Ou ainda: "Já começou o tempo de se tecer uma nova fome de utopias". E, os espantosos: "Há algo de sodomia purificadora naquele ritual sem Deus" e "nauseados, lamentamos o estar no mundo". Pode, uma coisa dessas? Já os arranquei do texto. E o que me escapou e que meus inimigos verão com a "maligna lupa do rancor"? (Opa!...)
Outra coisa angustiante é rever seus próprios truques. Movemo-nos entre quatro ou cinco categorias, meia dúzia de conceitos, somos muito mais falados pelas palavras do que as falamos (oh, truísmo!...). Rever provas é se rever num espelho cruel (anúncio de cosmético?). Então o que resta de mim nisto tudo? O espaço entre as palavras? Não sei, mas publicar um livro é morrer um pouco... (Coelho Neto?), publicar um livro é padecer num paraíso (quem?), publicar um livro é fugir da morte (Nietzsche?), publicar um livro é sublimar uma sexualidade perversa (Freud?), publicar um livro é o espírito querendo se libertar da finitude (Hegel?). É o que, afinal?
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