O ESTADÃO - 22/09
A propaganda é a alma do negócio. O jargão mais conhecido do meio publicitário avança, a cada dia, na esfera da política, produzindo a máxima assemelhada: a propaganda é aura dos governantes. Ela desenha a aureola que cobre a cara de políticos e governos, melhorando seu aspecto e tornando positiva sua avaliação popular. No campo privado, a propaganda vende produtos, burila a imagem de empresas, amplia suas margens nos mercados, sendo a mola propulsora dos negócios. Perguntaram, certa vez, a Henry Ford, o criador da linha de montagem automobilística, como começaria tudo de novo e em que investiria se tivesse apenas um dólar? Respondeu ignorar em que área aplicaria, mas seguramente gastaria metade do dólar com propaganda do produto que viesse a produzir. A política usa tal idéia há séculos. Na contemporaneidade, os norte-americanos embalaram a propaganda com o celofane do espetáculo. Enxertaram emoção no pacote de slogans, chavões e símbolos. O “negócio” da política passou a ser mais palatável aos sentidos dos consumidores. Abriu-se a era dos grandes debates televisivos. Em 1968, o assessor Ray Price pedia a Nixon mais calor, mais emoção, ensinando ao assustado candidato: “o que vale não é o que existe, e sim o que é projetado. Não precisamos, portanto, mudar você, mas a imagem que você transmite”.
O ciclo da telepolítica abriu palcos para exibir seus atores, melhorar os discursos, maquiar situações e plantar versões no jardim da política. A propaganda pavimentou os caminhos dos governos, na esteira de um Estado adornado pela fosforescência midiática, exaltando seus chefes e promovendo desfiles de personalidades. A estética embalou a semântica, criando até embaraços em políticos não afeitos à teatralização, como François Mitterrand, o ex-presidente francês, que chegou a lamentar: “na TV, o que eu digo vale bem menos do que a cor que as pessoas enxergam em mim”. A propaganda governamental evoluiu de tal maneira que passou a ser protagonista nas estratégias de persuasão social. Os governos tornaram-se os maiores anunciantes dos veículos. Vejam o nosso caso: R$ 16 bilhões( isso mesmo) foram gastos pelos governos Lula e Dilma com propaganda governamental. Esse montante daria para cobrir os custos de 170 mil casas populares.
Cabe perguntar: há sentido em se gastar tanto com propaganda quando se vêem a infinidade de buracos na estrutura de serviços, a partir da saúde. (Com um bilhão de reais, poderiam ser construídos 350 prontos-socorros). Analisemos a questão. É dever dos governos prestar contas de suas tarefas à sociedade, da mesma forma que é um direito do cidadão saber o que os governantes fazem, mas não deveriam fazer; não fazem, mas deveriam fazer; ou fazem porque são obrigados constitucionalmente a realizar. O jogo democrático carece de informação e transparência, possibilitando ao representado monitorar as ações desenvolvidas pelos representantes. O problema passa a existir a partir da montanha de exageros formada para glorificar as administrações. Plasmar uma aura para abrilhantar fatos que constituem mera obrigação do governante; criar efeitos estéticos para engabelar o telespectador; maquiar dados; montar uma engenharia persuasiva para provar que gato é lebre; enfim, cobrir o corpo dos governantes com um manto de beleza e exuberância, convenhamos, pode até ser elogiável sob o aspecto da criação publicitária, mas é discutível sob o prisma ético.
Faz-se a ressalva de que há modalidades de publicidade plenamente cabíveis, como campanhas de vacinação ou orientação eleitoral por parte do TSE, ações que integram a planilha de serviços de utilidade pública. Da mesma forma, há produtos de empresas governamentais que carecem de publicização, na medida em que enfrentam a concorrência do mercado. Produtos bancários, por exemplo. É de praxe que os governos façam sua publicidade legal, abrangendo comunicados que obedeçam às normas e regulamentos. O foco da crítica é mesmo a propaganda institucional, essa que erige altos altares para entronizar imagens de governos, cantar loas a governantes, sob a trombeta de campanhas maciças em horários nobres da TV. Esse coro de glórias não fere os princípios constitucionais da moralidade, da razoabilidade e da proporcionalidade? A agregação artificial de porte mais robusto para governos altera sua identidade. Assemelha-se a uma cirurgia para mudar feições (normais) de uma pessoa que a faz apenas por vaidade. Não haveria aí uma curva ética?
Se os governos usassem propaganda para promover a cidadania e os valores democráticos estariam contribuindo para a elevação dos padrões civilizatórios. Não é o que se vê. Ao contrário. Obras atrasadas em cronogramas são objeto de louvação; programas, como o Mais Médicos, até podem ser objeto de publicidade para ganhar confiança social, mas sem exagerar na dose. Afinal, mais saúde significa mais médicos, mais estabelecimentos, mais remédios, mais equipamentos, mais paramédicos, infra-estrutura adequada. Ora, esse acervo é sonegado. Se os nossos médicos não querem trabalhar nos grotões do país, que venham médicos de fora. Não serão eles, porém, a salvação da saúde. O discurso propagandístico, infelizmente, em todos os governos e em todas as instâncias, abriga forte viés eleitoral. E assim, de exagero a exagero, o país vê alargadas as veredas da mistificação, e o povo passa a “comprar” versões como verdades. Ao final do processo, bilhões de reais, que poderiam ser usados de modo mais justo, são jogados no poço sem fim do desperdício.
A sagrada Escritura reza: “nenhum homem, por maior esforço que faça, pode acrescentar um palmo à sua estatura e alterar este pequeno modelo, o corpo humano”. Por estas plagas, os corpos governativos ganham metros de altura, graças à engenharia milagreira da nossa propaganda governamental. Nosso edifício democrático, é triste constatar, tem muito tijolo de matéria plástica.
Um comentário:
Todos seus artigos são uma "aula" para a cidadania. Os conceitos expostos primam pela ética e probidade, pena que os leitores dos seus artigos não sejam os políticos.
Mesmo assim têm uma importância ímpar, muitos leitores e eleitores recebem as informações e, reavivam os conceitos.
Bem, isto é o que ocorre comigo.
LONGA VIDA, DR. GAUDÊNCIO ! !
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