domingo, setembro 22, 2013

Procuram-se estadistas - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 22/09

Não é de hoje que o mundo está depauperado de grandes estadistas. Há tempos o que se vê é uma mera sucessão de políticos mais ou menos qualificados para chefiar Estados ou governos. Gerentões de países, de crises, de problemas partidários.

Basta olhar para qualquer foto de reunião de cúpula dos chefes do G-20 para notar a desimportância histórica do grupo. Se fecharmos o foco nos líderes do G-8, e fizermos exceção à chanceler alemã Angela Merkel, que é um caso à parte, a avaliação será a mesma. E um retrato face a face dos chefes de Estado das duas grandes potências oficiais, Estados Unidos e Rússia, mostrar um Barack Obama reduzido à sua metade e um ardiloso Vladimir Putin assentado num mero poder pessoal.

Neste descampado, a oratória dos líderes mundiais foi ficando monótona e os discursos oficiais perderam importância.

Até que, na tarde de quinta-feira, sem aviso prévio, voltamos a ouvir palavras de impacto, lindamente desprovidas de retórica. Chamavam atenção pelo conteúdo universal, pela audácia natural, pela visão de progresso e liberdade dentro de sua tradição. Soavam as palavras de estadista visionário de um vasto rebanho. "Devemos encontrar um novo equilíbrio. De outra forma, até o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas", disse o Papa Francisco em longa e seminal entrevista à revista "Civiltà Cattolica".

Coincidentemente, no mesmo dia, uma carta aberta publicada no site da revista "New Yorker" forneceu exemplo de um castelo de cartas que mais cedo ou mais tarde vai cair. Tinha por título "Kafka em Bagram" e era assinada pelo advogado americano de um paquistanês que ele jamais viu.

Amanatullah, o paquistanês, está preso há mais de nove anos na base militar americana de Bagram, no Afeganistão. Não sabe do que é acusado pois jamais foi acusado de nada. O advogado tenta obter uma revisão do caso junto a uma corte federal. Segundo o governo dos Estados Unidos, Amanatullah foi preso por preencher os "critérios passíveis de detenção". E informa que sua soltura foi autorizada. O governo informa também que ele não foi solto. Só não informa por que o liberou nem por que ele não foi solto.

A partir da carta aberta, pelo menos o nome de Amanatullah, que é pai de cinco filhos, readquiriu alguma vida. Já para o portador do nome, a questão é sobreviver. Isso porque o complexo prisional de Bagram sempre foi e continua a ser um buraco negro à margem da justiça - está oficialmente situado numa "zona de guerra". Guantánamo, em comparação, é uma prisão amena - pelo menos em teoria, alguns detentos da ilha têm direito a requerer habeas corpus junto a tribunais americanos.

De tempos em tempos, o presidente dos Estados Unidos ainda aventa a possibilidade de desbastar o emaranhado de instrumentos do Patriot Act de 2001 que vai estrangulando liberdades civis. A lei aprovada pelo Congresso e pela opinião pública no rastro dos ataques do 11 de Setembro visava a "fortalecer e unir a América contra o terrorismo". Na prática, passou a ter poderes acima de direitos e a bisbilhotar cidadãos e nações amigas como se fossem suspeitos.

Foi em 1975 que o senador democrata Frank Church, ao apurar abusos da então quase desconhecida National Security Agency (NSA), lançou um alerta sobre a necessidade de haver controle e transparência em operações de espionagem. "Do contrário", alertou o senador, "a espionagem poderá se voltar contra o povo americano. E ao americano não restará privacidade, tamanha é a capacidade de se monitorar tudo: telefones, conversas, telegramas, o que for. Não haverá lugar para se esconder".

Passados 40 anos, a derrama de documentos secretos revelados em doses calibradas pelo especialista em sistemas Edward Snowden mostra que Barack Obama não tem mais como domar essa engrenagem, nem que quisesse. Ela há muito parece ter escapado de qualquer controle.

Mas o presidente americano terá uma chance - talvez a única e última chance neste seu segundo mandato - de deixar na biografia um marco diplomático à altura do "novo equilíbrio" imaginado pelo Papa Francisco. Trata-se do lento, difícil, mas possível, processo de reaproximação entre Estados Unidos e Irã.

Os dois países romperam relações diplomáticas há trinta e quatro anos e têm um histórico coalhado de conspirações e golpes, agressões, ódios culturais e desconfianças mútuas. Sem falar na crônica desconfiança dos Estados Unidos em relação às intenções nucleares do inimigo.

Nos próximos dias deverá desembarcar em Nova York, para participar da Assembleia Geral das Nações Unidas, o novo presidente iraniano, Hassan Rouhani, um moderado.

Rouhani já afirmou em público que tem como prioridade diminuir o isolamento de seu país em relação ao Ocidente e parece estar seguro de contar com o apoio do líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei. Obama, por seu lado, deu início a uma correspondência pessoal com Rouhani.

Para ambos, a possibilidade de alterar a geopolítica da região com a aproximação das duas nações exigiria extremos de flexibilidade e determinação. Seria o exercício da grande diplomacia. E a oportunidade rara para dois políticos mostrarem facetas de estadistas.

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