Esta fase do gerenciamento das perdas afetivas é a mais difícil, até por uma questão de cultura
A tragédia atual de Santa Maria, Rio Grande do Sul, traz à tona uma expressão antiga: "há crimes que clamam aos céus e pedem a Deus castigo". O brado de indignação é tanto mais compartilhado quanto proferido por essa dimensão do ser humano a que chamamos de cidadania. No caso, cidadania que submete as coisas à lupa da razão mais dedutiva ou cartesiana para escancarar a desrazão dos causadores da hecatombe em que se traduz a morte de quase duas centenas e meia de seres humanos.
Cidadania é isso mesmo: qualidade do cidadão. E cidadão é o habitante da cidade. Mas o habitante orgânico da "cidade-estado", a se interessar por tudo que é de todos. E é claro que o habitante assim orgânico, assim militante, assim envolvido com o dia-a-dia dos seus concidadãos é o que se predispõe a chancelar as ações altruísticas, de um lado, e, de outro, a condenar aquelas socialmente danosas. Tem o direito e o dever de tudo apurar criticamente - civismo é isso - para fazer escolhas ou tomar decisões por modo consciente. No caso de Santa Maria, é o cidadão que infatigavelmente se mobiliza e mobiliza os outros para a necessária responsabilização penal, civil e administrativa de quem detonou o gatilho da tragédia. Ou por qualquer forma concorreu para essa aterradora detonação. Responsabilização que, uma vez exemplarmente efetivada, opera como uma espécie de repouso do guerreiro que não é outro senão ele mesmo, cidadão.
Não é bem assim o que sucede com o indivíduo, essa outra dimensão do ser humano. Indivíduo que, ao contrário do cidadão, é simplesmente ilha. Não arquipélago. No limite das situações mais traumáticas, só tem os próprios botões para conversar. No vórtice de uma dor que lhe trinca até o osso da alma - como a resultante da definitiva perda física das pessoas que mais lhe alentavam a própria existência -, não sabe onde buscar forças sequer para continuar a viver. Quanto mais para revolver céus e terras e assim responsabilizar terceiros! Situações de transe em que já não se vê como cidadão ou parte de um todo, mas como um todo à parte. Um atônito microcosmo psicofísico e anímico, com sua personalíssima cota de sentimentos, pensamentos e consciência. Indivíduo que certamente inspirou o compositor popular Tom Zé a dizer que "O homem é sozinho a casa da humanidade". E de quem Protágoras se referiu como "a medida de todas as coisas". E que porta consigo "todos os sonhos do mundo", como se lê em "Tabacaria", de Fernando Pessoa. Por isso mesmo, indivíduo que não se satisfaz totalmente com as respostas que lhe são dadas nem pela sua dimensão cidadã nem pela sua porção mental exclusivamente lógica a que, em desespero, passa a recorrer.
É para essa porção-indivíduo de nós mesmos, porção que simultaneamente é uma totalidade íntegra, que direciono estas mal traçadas linhas. Isso para lembrar que os parentes e amigos mais chegados das pessoas que foram mortalmente vitimadas no terrífico episódio da boate Kiss não podem deixar de se ver como seres humanos que, para muito além de suas perdas como cidadãos, se sentem abrupta e violentamente apartados de si mesmos. Destroçados em suas mais profundas raízes afetivas. São pais e mães, avós, irmãos e irmãs, esposos e esposas, namorados e namoradas, amigos e amigas de fé e companheiros das mais personalizadas experiências. Gente de carne e osso para quem já não há compensação possível, pois não tem sequer como descansar no conforto da responsabilização dos culpados pelo morticínio. Ainda que tal responsabilização se faça pela maneira mais cidadã, que só pode ser a de caráter tão rigoroso quanto desestimulante de recidivas.
Enfim, o que tenciono dizer é que esta fase do gerenciamento das perdas afetivas é a mais difícil, até por uma questão de cultura. Falta-nos a boa prática da fuga da mente racional ou tão-somente lógica para nos entregar de corpo e alma, silenciosa e confiantemente, aos cuidados da própria Existência. Existência ou Vida ou Universo ou Cosmos, com seu infinito cortejo de instantes tão objetivos quanto originais em conteúdos, desafios e respostas. Por isso que aptas a substituir o nosso igualmente infinito estoque de pré-compreensões e assim nos abrir os olhos para a verdade de que, se cada momento existencial é essencialmente novo, como gerenciá-lo com velhos padrões resolutórios? Que os familiares e amigos íntimos das vítimas fatais se façam esta pergunta e passem, quem sabe, à adoção da postura que é própria dos artistas e místicos: a suspensão de toda subjetividade para dar à Vida a chance de provar que ela sabe muito mais dos homens que os homens sabem de si próprios e dela também. Ela, a Vida, a concretamente demonstrar que há momentos de profunda inquietação e perplexidade em que devemos cessar todas as perguntas. Todas! Pois esse absoluto não-perguntar é que pode abrir espaço em nós para a chegada das mais adequadas respostas.
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