FOLHA DE SP - 10/02
Pode ser que me engane, mas estou convencido de que a pessoa nasce poeta, ou pintor ou cozinheiro
ESCREVER UM poema, pintar um quadro, fazer um filme, uma peça de teatro, uma composição musical, enfim, fazer o que se conhece como obra de arte, sempre requer do autor o domínio de um "métier", de uma linguagem própria a cada um desses gêneros artísticos, além, é claro, do talento, sem o qual aquelas outras condições não adiantam de nada.
Pode ser que me engane, mas estou convencido de que a pessoa nasce poeta, ou pintor ou cozinheiro.
Sem o domínio do ofício, ninguém vai adiante, mas o que torna aquele saber fazer uma obra de arte é o talento, que não se aprende no colégio. Mas o talento não está por sua vez desligado dos recursos técnicos que tornam possível a realização da obra.
Noutras palavras, quem nasceu com a vocação de pintor logo se identifica com o primeiro belo quadro que vê. Não apenas o acha belo: deseja criar algo dentro daquele universo; as cores, as formas, a expressão nascida delas são algo que o fascina e atrai.
Não estou inventando nada. Da Vinci, Goya, Caravaggio, Monet, Picasso, todos eles, ainda meninos, desenhavam e sonhavam em se tornar pintores. O mesmo se dirá de tantos outros artistas dos mais diversos gêneros.
Enfim, o que pretendo afirmar aqui é que o artista é artista em função da linguagem estética com que se identifica e que decide assimilar, dominar, reinventar. Sem linguagem não há obras de arte. Por isso mesmo, a arte se manifesta por meio de diversas linguagens, que são intraduzíveis uma na outra: o que a pintura diz, a música não diz, o que a poesia diz, a pintura não diz. Os significados existem nas linguagens, nascem delas, são elas.
Cabe então perguntar: pode existir arte sem linguagem? Esta é a questão que se coloca em face do que se chama hoje de arte contemporânea, caracterizada precisamente por não ter linguagem, isto é, neste caso a obra não nasce da elaboração de signos e formas constitutivos de um universo expressivo, dentro do qual o artista cria. Não, nesse novo tipo de arte, um mesmo artista poderia propor, como obra sua, casais nus num museu, urubus numa gaiola ou um tubarão cortado ao meio.
Como não foi ele quem fez os casais, nem os urubus nem o tubarão, a sua obra consiste apenas em uma ideia que lhe ocorreu. Daí também a designação de arte conceitual (o que, aliás, é o contrário da natureza das artes, seja música, pintura, escultura, intraduzíveis conceitualmente).
Pelo fato mesmo de não surgir da elaboração de uma linguagem, esse tipo de manifestação pode se valer de toda e qualquer coisa para realizar-se. Tornou-se conhecida uma tal "obra perecível" de um artista latino-americano, que consistiu em prender um cão numa galeria de arte e deixá-lo morrer de fome e sede.
Mas, muito antes e depois dele, outras manifestações se tornaram conhecidas, feitas todas com o propósito de chocar o espectador. É certamente difícil admitir como criação artística uma mulher que se deixa filmar enquanto alguém faz incisões em seu clitóris.
Citei estes exemplos mais radicais porque são representativos de uma atitude que desconhece toda e qualquer norma ou limite. Parecem pretender ilustrar a célebre boutade de Marcel Duchamp "será arte tudo o que eu disser que é arte".
Certamente, pode alguém, sem ater-se a normas consagradas da arte, criar obra de grande beleza e expressividade. No entanto, esse exemplo mesmo comprova que, para alcançar tal nível expressivo, necessita possuir qualidades que a distingam do comum das coisas.
Aquela frase de Duchamp é uma boutade antiarte, uma vez que em nenhum outro campo da atividade humana tal afirmação seria admitida como verdadeira, já que tudo o que o homem realiza se distingue por suas qualidades específicas.
Ninguém aceitará, como verdadeira, a afirmação de que "será grande craque de futebol quem eu disser que é grande craque", nem tampouco que "será poesia tudo o que eu disser que é poesia", "será ciência tudo o que eu disser que é ciência".
Não obstante, no terreno das artes plásticas, aquela frase dita para chocar -visando negar o convencionalismo que sufocava a arte- tornou-se uma máxima que justificaria a negação dos valores estéticos.
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