O GLOBO - 01/11
A gangrena política italiana guarda lições úteis ao PT, atolado no pântano do mensalão, e também à oposição de esquerda, em dificuldade para estabelecer uma alternativa de poder
O caso brasileiro, examinado à luz da ação penal 470, o conhecido mensalão, e mesmo anteriormente, em meio à avassaladora mobilização do Estado para finalidades partidárias, ensejou comparações com o México do PRI e a Argentina de Perón. Chegou-se a afirmar, com sagacidade, que, se vingasse entre nós o fatal entrelaçamento entre máquina de partido e aparelho de Estado, teríamos um cenário “mexicano”. Se predominasse o personalismo e o culto ao “líder operário que se tornou presidente”, teríamos uma “argentinização”. Por décadas afora, variados grupos reivindicariam, sem cessar, o patrocínio de um “guia genial”, mesmo que tivessem posições diferentes ou até antagônicas.
Tudo isso merece reflexão e gostaria de lembrar um outro caso de patologia institucional em sociedade moderna. Trata-se da Itália, um dos países de fronteira na Guerra Fria, no qual o principal partido de oposição, o antigo Partido Comunista Italiano (PCI), tinha vetada a participação no governo, embora apresentasse credenciais indiscutíveis, dada a participação na resistência antifascista e a condição de refundador do país, num momento em que tal refundação era essencial. Refiro-me, evidentemente, à Constituição republicana do segundo pós-guerra, que teve entre seus redatores nomes importantes do comunismo democrático, como Palmiro Togliatti e Umberto Terracini — este último, um dos “prisioneiros ilustres” do fascismo, ao lado de Antonio Gramsci.
Mas a participação no poder estaria sempre vetada ao PCI, apesar da sólida implantação popular e da invariável fidelidade constitucional. Criou-se, assim, um verdadeiro regime de ocupação de cargos e funções, especialmente no plano central, por parte do outro grande partido do pós-guerra, a Democracia Cristã. O PCI só podia participar de administrações regionais, o que fez muito bem.
A repartição de poder central obedecia a ritos bizantinos: as correntes da Democracia Cristã eram “premiadas” de acordo com complicados cálculos, o que não se alterou com a admissão do tradicional Partido Socialista Italiano à área de governo. A conclusão é que o Estado não se renovava e as equipes dirigentes envelheciam sem a possibilidade de oxigenação. O “sistema de poder” assim gerado chegou a se confundir com grupos criminosos, como a máfia e a camorra, para não falar em setores desviados dos serviços de segurança, lojas maçônicas, grupos terroristas de direita.
A gangrena só foi remediada com a famosa Operação Mãos Limpas, realizada pelo Judiciário e o Ministério Público contra organizações mafiosas nos anos 1990. O país assistiu a um grande esforço conjunto das instituições democráticas no sentido de combater a corrupção e punir os envolvidos em escândalos. Na ocasião, houve uma série de denúncias e centenas de pessoas foram presas, entre políticos, empresários e funcionários públicos. Do entrelaçamento com a política, a crise institucional se instalou. O sistema partidário ruiu, e os cinco partidos que estavam no poder liderados pela Democracia Cristã se esfacelaram e caminharam para o desaparecimento. O primeiro- ministro Bettino Craxi, envolvido em escândalos, caiu em 1992 e teve de se exilar na Tunísia, fugindo da Justiça.
A Democracia Cristã e o Partido Socialista Italiano transformaram-se em notas de pé de página. E o velho PCI, que manteve as suas forças, começou uma evolução interessante até o atual Partido Democrático — impulsionada pela queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim do socialismo real. No Brasil, tal movimento também foi executado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o primeiro partido comunista da América Latina a reformular profundamente sua estrutura orgânica, com o surgimento do Partido Popular Socialista (PPS), em 1992. Tratava-se de uma nova alternativa democrática e de esquerda, pioneira e ousada, distante da visão totalitária dos regimes comunistas de então.
A situação italiana, pelos muitos laços de afinidade que temos, guarda sugestivas aproximações com a brasileira. E guarda, sobretudo, lições não só para a força hoje hegemônica no Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT), atolado no pântano do mensalão, como também para as forças de oposição, que ainda têm dificuldade para estabelecer uma sólida esquerda democrática com vistas a uma eventual alternativa de poder, altamente necessária para o futuro das nossas instituições.
Um comentário:
Complicado explicar o PPS (ex PCB) no mesmo palanque do DEM, eu como um simples e humilde eleitor tenho dificuldade em entender essa lógica.
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