quinta-feira, novembro 01, 2012

O rato que troca a pele pela vida - FERNANDO REINACH


O Estado de S.Paulo - 01/11


Você já tentou pegar uma lagartixa pelo rabo? Na hora que você agarra o rabo e vai levantar a lagartixa, ela solta o rabo e sai correndo. Você fica com o rabo na mão e cara de trouxa. É assim que ela escapa dos predadores, entrega o rabo e preserva a vida. O mais interessante é que o rabo regenera ao longo de semanas e rapidamente a lagartixa fica como nova, pronta para reagir a outro ataque.

Outros répteis, como as salamandras, podem deixar para trás uma perna inteira. Semanas depois, uma perna nova aparece no lugar. Nos últimos cem anos, esses processos que ocorrem em répteis têm sido investigados detalhadamente. A esperança dos cientistas era não só entender como a perda e a regeneração ocorrem, mas talvez utilizar esse aprendizado para tentar melhorar o processo de cicatrização no ser humano.

Não seria ótimo se fosse possível induzir a regeneração de membros perdidos? Lula teria de volta seu dedo e talvez a história do Brasil tivesse se desenrolado de outra maneira.

Foi descoberto nas últimas décadas que o processo de regeneração dos répteis é muito diferente do que ocorre nos mamíferos. E apesar de hoje entendermos muito bem como isso funciona nas lagartixas e salamandras, esse conhecimento não foi útil no tratamento de seres humanos.

Mas agora a esperança voltou ao coração dos cientistas. É que os habitantes do Quênia, na África, costumam comentar que uma espécie de rato do deserto seria capaz de deixar para trás sua pele quando abocanhada por um predador. A pele ficaria na boca do predador e o bichinho sairia correndo sem a pele, que se regeneraria em poucos dias.

Ratos e camundongos são mamíferos e sua pele é muito semelhante à de seres humanos. Por isso, um time de pesquisadores dos EUA se aliou a cientistas de Nairóbi para ir ao deserto, achar os ditos ratos, capturar uma colônia e verificar se a história era verdadeira.

Armadilhas foram colocadas no deserto e os ratos (Acomys kempi e Acomys percivali) foram capturados. Mas bastou um cientista colocar a mão na gaiola e agarrar o rato da mesma maneira que agarramos um rato de laboratório para descobrirem que a população do Quênia sabia do que estava falando. As fotos são impressionantes. Você agarra o rato e parece que está agarrando um sabonete molhado coberto por uma fina folha de papel liso. Você fica com a pele do rato e ele escapa por entre os dedos, como os malditos sabonetes nos escapam no chuveiro.

Estudo. Capturados os ratos, começou o estudo. Foi observado que eles podem perder até 60% da pele que cobre o corpo, até a que cobre o rabo. Trinta dias depois, estão de pele nova, sem cicatrizes, sem áreas com falta de pelos ou qualquer outra evidência do susto que passaram na boca do predador.

Os cientistas então começaram a estudar as características da pele. Observaram que a pele de um rato de laboratório, em comparação, é 20 vezes mais elástica. Se você tentar esticar a pele desses ratos do deserto, em vez de esticar, ela se rompe. E, para romper a pele de um rato comum, seria necessária uma força 77 vezes maior.

Quando os cientistas observaram a pele dos ratos do deserto no microscópio, constataram que ela é composta dos mesmos elementos das peles dos ratos de laboratórios ou dos humanos, mas em proporções distintas. Além disso, ela é fracamente conectada com o tecido que está na camada de baixo, uma propriedade também encontrada na pele de algumas raças de cachorro.

Os primeiros estudos indicam que o truque para conseguir essa regeneração rápida, sem infecção ou vestígios, deve-se a uma série de fenômenos, todos presentes na nossa pele, mas que nesses ratos são regulados de maneira muito mais sutil. Primeiro, existe muito pouco sangramento quando a pele se solta, portanto as famosas cascas de ferida (lembra do seu joelho quando tinha 10 anos?) não se formam. O tecido de baixo da pele forma uma camada protetora e a pele intacta, na periferia da lesão, contrai-se e cobre a maior parte da ferida rapidamente. Logo depois, as células da pele intacta começam a migrar da parte intacta para a superfície da lesão e ela é rapidamente recoberta. O mesmo ocorre com as células que vão formar os novos folículos capilares e em 30 dias o rato está novo em folha.

Esses estudos estão ainda na sua infância. Afinal, é o primeiro trabalho científico que analisa o que acontece nesses ratos. Mas todos estão animados. Parece que os fenômenos são todos muito semelhantes aos que ocorrem em seres humanos. A esperança é que seja possível aprender com os ratos do Quênia algum truque que permita melhorar o tratamento em seres humanos.

É assim que funciona a ciência. Uma observação casual de um fenômeno da natureza (algum carnívoro abocanhando um rato nos desertos do Quênia) leva à investigação experimental detalhada do fenômeno (cientistas medindo e descrevendo o processo de perda e regeneração) e, com um pouco de sorte, pode resultar em uma tecnologia que nos permita controlar uma pequena parte do mundo natural (acelerar a cicatrização de feridas em seres humanos).

Infelizmente, como essas três etapas muitas vezes estão separadas por dezenas de anos, é difícil para a pessoa que teve sua ferida curada em poucos dias apreciar a contribuição de um queniano que viu um rato escapar da boca de um predador.

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