domingo, outubro 28, 2012

Islamomania desenfreada - SÉRGIO AUGUSTO

O Estado de S.Paulo - 28/10


Fundamentalismo islâmico invade telesséries, filmes, livros, peças teatrais e debates de candidatos nos Estados Unidos



Na terra do Barack Obama o imaginário rendeu-se à islamomania. Nas livrarias, nos palcos, nas telas, o fundamentalismo maometano e suas consequências passaram a contagiar as mais variadas narrativas ficcionais pari passu com a paranoia islamofóbica desencadeada pelo atentado às torres gêmeas e em sintonia com as pautas dos noticiários e do terceiro debate entre Obama e aquele holograma chamado Mitt Romney.

Segunda-feira, enquanto os dois candidatos à eleição de 6 de novembro discutiam em Boca Raton sobre o Oriente Médio e os militares libaneses ainda procuravam os responsáveis pelo atentado à bomba contra o chefe da inteligência local, estreava num teatro do Lincoln Center, em Nova York, a peça Disgraced (Desonrado), do americano de origem paquistanesa Ayad Akhtar. Em cena, um jantar para cinco pessoas num apartamento de alta classe média em Manhattan que descamba para um indigesto confronto de ideias sobre religião, cultura, identidade, jihad e terrorismo - pelas críticas que li, muito mais excitante e fecundo que o debate dos presidenciáveis.

A islamomania tem se mostrado bem mais pervasiva na televisão. Faz pouco tempo revivemos os tumultos no Cairo que antecederam a derrubada de Mubarak e o impacto da captura de Osama bin Laden na telessérie da HBO The Newsroom, toda ambientada no fictício noticioso de um canal a cabo. Produzida e escrita pelo afiado Aaron Sorkin, Newsroom é uma comédia de suspense sobre os bastidores do telejornalismo, a integridade jornalística, a complacente submissão da mídia à celebritite, à marquetagem e aos índices de audiência, o cinismo e a sordidez da política americana - e, inevitavelmente, o Oriente Médio e suas tenebrosas circunstâncias.

Em outra telessérie, a premiada Homeland, aqui transmitida pelo canal a cabo FX, um ex-combatente americano reaparece após oito anos de cativeiro no Iraque na pele de um terrorista árabe - ou assim o crê uma agente bipolar da CIA, que de tanto espioná-lo acaba se apaixonando por ele. É um thriller psicológico que lida com espionagem, duplicidade, patriotismo, lavagem cerebral, conversão religiosa, mais os abusos da política de segurança imposta pelo governo Bush e adotada pela administração Obama - entre outras questões intrinsecamente ligadas ao caos no Oriente Médio.

De volta a Beirute. Com esse título, vai ao ar hoje à noite o segundo episódio da segunda temporada de Homeland. Quem está de volta à capital do Líbano é Carrie Mathison (Claire Danes), a agente da CIA que se amarrou no supostamente falso herói de guerra Nicholas Brody (Damian Lewis). Desligada da agência e recém-saída de uma psicoterapia barra-pesada, foi ajudar na captura de um líder jihadista e guia espiritual de Brody. Numa trajetória parecida com a do sargento a serviço do "candidato da Manchúria" à presidência dos Estados Unidos, em Sob o Domínio do Mal, Brody tornou-se o "candidato do Hezbollah" à vice-presidência.

Exageros, coincidências e implausibilidades à parte, Homeland, o teledrama mais plugado na realidade geopolítica contemporânea, é uma montanha-russa de emoções. Se por um lado alimenta a islamofobia, não isenta de culpa os americanos pelas agressões cometidas nos países árabes, de uns tempos para cá com o reforço de drones, aeronaves sem piloto que Obama entubou, Romney considera awesome (impressionantes) e a oposição liberal, uma aberração.

As autoridades libanesas não gostaram de ver Beirute retratada em Homeland como uma cidade délabrée, violenta e infestada de terroristas. Até parece que por lá xiitas e sunistas vivem em perfeita harmonia e não há atentados à bomba nem perseguições e tiroteios nas ruas. Aliás, foi por se sentir mais segura em Tel-Aviv que a produção da série rodou todas as cenas "passadas em Beirute" na capital de Israel, mais precisamente em Jaffa, habitada por árabes e judeus, o que irritou ainda mais os libaneses. O ministro do Turismo do Líbano já ameaçou processar a FoxTV.

Com arquitetura levantina, mesquitas, minaretes e um souk (mercado árabe), Jaffa era uma cidade árabe antes da ocupação israelense. A maioria dos telespectadores não percebe a diferença e só alguns poucos notaram a "presença de Israel" nos carros com placas amarelas, nas indicações de estacionamento proibido em vermelho e branco e num logo da Coca-Cola em hebraico. Homeland não passa na TV libanesa e nem o ministro da Informação do Líbano sabe que a série, a exemplo de Em Terapia, é cria israelense.

No debate sobre política externa, Obama e Romney falaram mais do Oriente Médio do que da China e ignoraram a Europa e a América Latina. Pareciam disputar quem é mais amigo de Israel, seu mais incondicional parceiro e guardião. Também constrangedora, embora eleitoralmente compreensível, foi a insistência com que ambos proclamaram a excepcionalidade da América, sua indiscutível e inalcançável superioridade sobre o resto do mundo. Nessas horas sempre me vinha à mente a figura de Will McAvoy, o impaciente, quixotesco e destemido âncora de Newsroom interpretado por Jeff Daniel. Que bom seria se ele, e não Bob Shieffer, tivesse sido o moderador daquele debate.

McAvoy é um telejornalista como aqui não temos e os americanos só tiveram quando a televisão ainda era em preto e branco. Seu parâmetro é Edward Murrow. Mas em sua primeira aparição, diante de um auditório universitário, ele mais parecia um sucedâneo de Howard Beale, o alucinado âncora do filme Rede de Intrigas. À prosaica pergunta de uma estudante ("Por que a América é o maior país do mundo?"), respondeu na lata: "Se você entrar por acaso numa cabine eleitoral, tenha em mente o seguinte: ocupamos o 7º lugar no mundo em alfabetização, o 22º em ciência, o 49º em expectativa de vida, o 30º em renda média familiar. Nós somos os primeiros do mundo em três categorias: gastos militares, número de presos per capita e adultos que acreditam que os anjos existem".

Não sei se esses índices batem, mas não tenho dúvida que McAvoy teria dado um show em Boca Raton.

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