sábado, junho 23, 2012
Arte da guerra, arte da política - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
O Estado de S.Paulo - 23/06
O episódio não é tão conhecido assim, aparece em duas ou três notas dos célebres Cadernos do cárcere e vale lembrá-lo a partir do comentário de um distante escritor italiano do século 16, Matteo Bandello. Narrado por Bandello, envolve um dos grandes teóricos da política moderna, Nicolau Maquiavel. Autor, entre outros, de uma clássica Arte da guerra, o secretário florentino teria tido diante de si, certa vez, uma multidão de soldados, a quem lhe caberia ordenar em formação de guerra mediante os instrumentos então dispostos para tal, como tambores e cornetas. Dispensável dizer que o grande teórico não conseguiu o intento, desorganizando mais do que organizando, tendo sido socorrido por Giovanni dalle Bande Nere, condottiero treinado - praticamente - na arte militar e capaz por isso mesmo de controlar rapidamente a massa de homens e armas em dispersão.
Pode-se interpretar essa pequena história como uma crítica à insuficiência da pura teoria, mesmo representada por um homem do quilate de Maquiavel, para gerar por si só efeitos práticos imediatos. E, de fato, não raro a teoria, desamparada de mediações, redunda em abstração distante da vida real, impotente diante da riqueza múltipla das suas determinações. O inverso, contudo, não raro também sucede: homens eminentemente práticos, com notável sagacidade e treino nas coisas humanas - em particular, na difícil arte da política, que alguns veem como contígua à própria guerra -, podem se atirar de corpo e alma ao mundo real, onde se cruzam incessantemente paixões e interesses, sem obter, contudo, o resultado almejado, revelando, antes, uma certa incapacidade de entender as mediações da política democrática. Esta última, pela sua própria natureza, impõe limites e controles, freios e contrapesos, a todos os atores e forças presentes na cena pública, o que só não ocorre em indesejadas situações extremas de concentração e personalização do poder.
Poderia ser interpretada assim a movimentação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de alguns dirigentes do seu partido na iminência do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos acontecimentos que passaram à recente história política como mensalão. A começar pela convocação de uma CPMI "de governo" - como apontado por vários analistas - que, desenvolvendo-se ao revés das comissões parlamentares convencionais, se limitaria a dramatizar, como num psicodrama de enredo previamente definido e pródigo em imagens, investigações policiais já em curso ou próximas da conclusão.
E no roteiro aventuroso dessa CPMI, ao que parece, constava a colocação no banco dos réus de instituições essenciais da República, como, entre outras, o Ministério Público - para não falar da tentativa de condicionar os votos de ministros da própria Suprema Corte, segundo denúncia de um dos integrantes deste mesmo tribunal.
Mera ação de "maquiavéis de pensão", coadjuvada talvez por autoridades e ex-autoridades da República pouco ciosas do que já se chamou de "liturgia do cargo"? Mais um sinal dos tempos, em que o partido hegemônico da esquerda, sem ter (ainda) desenvolvido uma cultura política democrática e reformista, se sente refém de espasmos autoritários, de acordo com os quais, como sugeriu o sóbrio Antonio Fernando de Souza, ex-procurador-geral da República, poderia se arvorar como a única instância definidora do que é crime e o que não é crime?
É provável que haja um pouco de tudo isso, mas, antes de mais nada, a possibilidade mais forte é de que ainda estejamos a viver a tumultuada trajetória de adaptação de corações e mentes da esquerda (das suas várias vertentes) às instituições da democracia política, necessariamente plurais e contraditórias, expressão de uma sociedade civil relativamente livre de constrangimentos estatais, na qual se cruzam, à moda do "Ocidente" político, as mais variadas forças e inspirações ideais. O embate entre elas é legítimo e, a depender da inteligência dos atores progressistas, pode produzir equilíbrios socialmente avançados e culturalmente enriquecedores. Na verdade, é isso o que torna impermeável este "Ocidente" a projetos autoritários de mudança, fortemente dependentes de personalidades carismáticas e da arregimentação, de cima para baixo, das instituições da sociedade, projetos que ainda incendeiam a imaginação de parte não desprezível da nossa esquerda.
No "Ocidente" político, entre outras coisas, não deveria causar estranheza nem ser motivo de escândalo a existência de uma imprensa liberal-conservadora. Em outros países e em outros momentos, partidos da esquerda souberam criar jornais memoráveis, com impacto duradouro na política e na própria cultura nacional, como o L'Unità italiano e o L'Humanité francês, curiosamente um caminho nunca testado, desde a hora da fundação, pelo principal partido da esquerda do Brasil redemocratizado. No "Ocidente", instituições como a Suprema Corte não vivem no vácuo nem são uma instância neutra de poder, que decida, para citar o filósofo Ronald Dworkin, com independência das concepções de moralidade pública de cada juiz. Mas cabe esperar que suas decisões não sejam partidarizadas em sentido estrito e se revistam de um conteúdo pedagógico, ensinando-nos, como último recurso constitucional, o modo pelo qual se compõem as desavenças inelimináveis da vida política.
No fundo, respeitado o direito sagrado de defesa, a ser exercido em sua plenitude, boa parte das lições do julgamento de agosto vai depender do comportamento da própria esquerda, atingida na figura de alguns dos seus dirigentes mais evidentes. Deveria estar excluído desse comportamento tudo aquilo que, ao longo da História e em detrimento da grandeza de Maquiavel, tornou infames ou negativamente conotados os adjetivos derivados do seu nome.
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