domingo, março 11, 2012

Tsunamis, guerra cambial e a indústria - AFFONSO CELSO PASTORE


O Estado de S.Paulo - 11/03/12


Na metade de 2011, havia o temor de que a economia mundial entraria em nova e profunda recessão. O epicentro, dessa vez, estava na Europa, e não nos Estados Unidos. Porém, da mesma forma como ocorreu em 2008, a sua origem seria o colapso do crédito provocado por uma nova crise bancária. Felizmente, o BCE aprendeu com a experiência dos EUA, e por meio da "versão europeia" do Tarp - o LTRO -, atulhou o caixa dos bancos com uma massa enorme de dinheiro barato por prazo longo, tirando o oxigênio da crise bancária que se armava.

Boa parte dos recursos que os bancos tomaram emprestado do BCE fica depositado sob a forma de reservas no próprio BCE, o que inibe a corrida bancária. Outra parte eleva os empréstimos às empresas, diminuindo a recessão. Um terceiro efeito é o aumento moderado da procura por bônus de dívida soberana dos países da área do euro, o que torna menos perversa a dinâmica de suas dívidas. A onda recente de valorização do real não vem de um "tsunami monetário" provocado pelos bancos, que estariam "inundando" o Brasil com esse excesso de caixa. Ela é uma consequência benéfica da ação do BCE, que nos livrou de uma forte desaceleração da economia mundial, e que traz como subproduto a queda da aversão ao risco, que estimula os investidores a buscar ativos em mercados emergentes com melhor desempenho.

Quando cai a aversão ao risco, crescem os ingressos de capitais, valorizando o real. Há uma elevada correlação positiva entre o VIX (índice de volatilidade) e os bônus de alto risco, de um lado, e a taxa cambial medida em reais por dólar, do outro. Quando o real se depreciou, em 2008 e, em menor escala, no terceiro trimestre de 2011, acompanhou de perto os aumentos do VIX e dos spreads dos bônus de alto risco. A recente valorização do real ocorreu paralelamente à queda dessas duas medidas de aversão ao risco. Nos próximos meses, a aversão mundial ao risco muito provavelmente continuará baixa, o que significa a continuidade de forças valorizando o real.

Quais são as consequências desse movimento sobre a economia brasileira? O Brasil é uma economia relativamente fechada ao comércio internacional, mas isso se deve somente ao tamanho do setor de serviços, que abrange pouco mais de 65% do PIB e que praticamente não exporta nem importa. A indústria representa apenas 27% do PIB, mas é um setor suficientemente aberto para que os seus preços, no mercado interno, sejam em grande parte condicionados pelos preços em dólares no mercado internacional, convertidos em reais à taxa cambial vigente.

Quando o governo eleva os estímulos monetários e fiscais para expandir a demanda doméstica, produz efeitos diferenciados sobre esses dois setores. Como o setor de serviços opera fechado ao comércio internacional, consegue repassar os aumentos de custo para os preços domésticos, mas o setor industrial não tem essa liberdade, o que faz com que o aumento da demanda doméstica, em grande parte, vaze para o exterior na forma de elevação das importações líquidas. O PIB não cresce na medida esperada pelo governo, porque a produção industrial não consegue se elevar devido ao aumento das importações líquidas.

Esse movimento tem sido claro nos últimos dois anos. Assistimos a uma "inflação de serviços" muito elevada, com as taxas de 12 meses desses preços no IPCA mantendo-se acima de 9%, mas não há pressões inflacionárias significativas nem nos preços por atacado dos produtos industriais, nem nos bens de consumo incluídos no IPCA, principalmente os bens duráveis. No entanto, há uma forte elevação das importações líquidas. Medidas a preços correntes, elas atingiram, em 2011, perto de 1,5% do PIB, mas medida a preços constantes do ano 2000, o que retira o efeito dos ganhos de relações de troca, as importações líquidas atingiram 6,5% em 2011, tendo saído de perto de 1% do PIB, em 2009. Entre 2009 e 2011, as importações líquidas medidas a preços constantes do ano 2000 cresceram perto de cinco pontos porcentuais do PIB, e como a agricultura se defendeu com a elevação dos preços de commodities, grande parte desse aumento foi suportado pela indústria. O governo vem estimulando o consumo, com a demanda total doméstica elevando-se acima do PIB, mas o setor industrial não cresce, em grande parte porque há o vazamento na forma de elevação das importações líquidas.

Em um instigante trabalho apresentado no seminário de conjuntura da FGV, Regis Bonelli estimou, com base nas contas nacionais, o custo unitário da mão de obra. Ele nada mais é do que o salário convertido em moeda estrangeira, dividido pela produtividade da mão de obra. Os resultados mostram que, entre 2003 e 2009, o custo unitário da mão de obra no Brasil cresceu 90%, com o maior aumento ocorrendo na indústria. O grosso dessa elevação se deve à valorização do real, mas é notável que praticamente não houve nenhum aumento de produtividade da mão de obra na indústria. A agricultura teve forte crescimento de produtividade, enquanto que o setor de serviços foi pouco afetado, porque transaciona pouco no mercado internacional e consegue repassar os aumentos para os preços domésticos.

Há tempos sabemos que teríamos de nos preparar para conviver com uma moeda mais forte. Quando o Brasil era prisioneiro da indisciplina fiscal, com uma inflação alta e o País não tinha reservas, não conseguia atrair capitais, e o câmbio era depreciado. Entre 1994 e o ano 2000, por exemplo, os dados de Bonelli mostram um custo unitário da mão de obra em torno da metade do valor de hoje, o que significa um país muito mais competitivo. Mas isso não se traduziu em maior crescimento. Ao contrário, nesse período, caiu a produtividade total dos fatores, e o Brasil conseguiu apenas taxas de investimento muito baixas, próximas de 16% do PIB, o que levou a um crescimento do PIB potencial igual ou inferior a 3% ao ano.

O paradoxo é que, usando a métrica do custo unitário da mão de obra, éramos, naquele período, muito mais competitivos do que hoje, porém crescíamos muito menos. A razão é simples: os desajustes macroeconômicos impediam o crescimento, e o câmbio depreciado não representava mais do que uma ilusão de competitividade.

Era fatal que, com um quadro macroeconômico mais estável, os capitais seriam atraídos, o que é positivo para um país cujas poupanças domésticas são insuficientes para financiar taxas mais elevadas de investimento, e que necessita da absorção de poupanças externas na forma de déficits nas contas correntes. Enquanto realizávamos as mudanças no regime de política macroeconômica que restituíram a nossa capacidade de crescer, deveríamos ter prosseguido no programa de reformas estruturais e microeconômicas iniciadas no governo FHC e continuadas no primeiro mandato do presidente Lula. Falamos de mudanças na qualidade da política fiscal, com a redução da tributação sobre as empresas, de redução gradual dos gastos correntes do governo e o correspondente aumento nos gastos em infraestrutura, simultaneamente elevando a eficiência produtiva e a poupança do setor público.

Mas o governo resolveu privilegiar o consumo, em detrimento da poupança das famílias, e forçar o aumento dos gastos correntes e das transferências, com o aumento da sua popularidade ocorrendo à custa da queda da poupança do setor público.

A oportunidade das reformas foi perdida, e o risco agora é de gerar uma nova rodada de aumento do protecionismo e de ações atabalhoadas na área cambial. Governos que não têm o diagnóstico correto adotam qualquer diagnóstico. Em teoria, o País pode ser bem mais agressivo no controle cambial, ressuscitando o Fundo de Riqueza Soberana e taxando investimentos estrangeiros diretos, mas não pode se esquecer de que continua dependente da absorção de poupanças externas para financiar os investimentos, tanto quanto depende dos investidores externos para ampliar o mercado de capitais.

Pode, também, enveredar um grau maior de protecionismo. Afinal, há vizinhos que optaram por esse caminho, e um país que já teve a malfadada experiência da Lei de Informática, e que, para garantir um elevado índice de conteúdo nacional, produziu "carroças" em vez de automóveis, pode perfeitamente mostrar que é capaz de produzir "tablets", ainda que ao dobro do preço internacional.

Mas não estaremos, com isso, melhorando nem a produtividade nem a capacidade de crescer.

Nenhum comentário: