O ESTADÃO - 11/03/12
O grande canhão construído pelos alemães tinha o apelido da mulher de Gustav Krupp
O grande canhão construído pelos alemães para arrasar fortificações inimigas na I Guerra Mundial era chamado de Big Bertha e devia seu apelido à mulher de Gustav Krupp, chefe da indústria que o produzira. Não, presume-se, porque Bertha Krupp parecesse um canhão. Nenhuma arma construída até então tinha o mesmo poder, e o Big Bertha fez estragos inéditos antes de ser neutralizado pelos aliados.
Uma versão modificada do Big Bertha, com um alcance então inimaginável de 130 quilômetros, foi usada pelos alemães para bombardear Paris em 1918, quase no fim da Grande Guerra. Não fez muitos estragos, pelo menos se comparados ao rastro de entulhos que tinha deixado na Bélgica e em outros lugares. Mas fez o bastante para enervar a cidade.
Em 1918 Marcel Proust estaria burilando o texto de À Sombra das Raparigas em Flor, parte da sua obra Em Busca do Tempo Perdido. Do seu apartamento no Boulevard Haussmann ele ouviria os estrondos do bombardeio? Seu apartamento estaria no raio de alcance do grande canhão? Ou seja, havia a possibilidade do “Big Bertha” intrometer-se no trabalho do escritor como um personagem inesperado e transformar em cinzas o trabalho, o apartamento e o próprio Proust?
Há referências passageiras à guerra no Em Busca do Tempo Perdido mas não se fica sabendo o efeito que o bombardeio de Paris teve sobre o autor e seu cotidiano. E nunca saberemos a que distância o “Big Bertha” esteve de alterar a história da literatura universal.
Mas se o Proust não nos conta, podemos imaginar. Não é impossível que, numa noite tornada insone pelo rufar longínquo das explosões, Proust tenha conjurado o próprio canhão para a sua cabeceira, e reclamado:
– Não consigo dormir. Não consigo escrever. Você não se dá conta do que está fazendo com a minha sensibilidade, e por conseguinte, com a minha literatura, sem falar na minha vida?
– Bobagem – diz o canhão, no seu alemão metálico. – Minhas balas estão caindo longe daqui, nos bairros pobres, onde ninguém é escritor. As reverberações das minhas explosões mal mexem com sua cortinas rendadas.
– Você não vê? Toda a minha literatura é feita, de um jeito ou de outro, dos pequenos movimentos das minhas cortinas rendadas, do tilintar evocativo do meu jogo de chá. É inadmissível que minhas cortinas estejam esvoaçando e minhas xícaras tremendo pelo poder de uma máquina de guerra, em vez do poder da minha memória.
– Deixa ver se eu entendi. Você quer que a guerra pare para poder se lembrar melhor. Recuperar o seu precioso tempo perdido é mais importante do que o destino da Europa e o futuro da Alemanha? Ora, vá dormir, Marcel.
– Dormir como, com Paris sob bombardeio?
– Isto não vai durar muito. Esta guerra está no fim. Os Krupp ganharam mas a Alemanha perdeu. Só estamos dando os últimos tiros para não perder a mão. E daqui a alguns anos, voltaremos.
– Você e eu não podemos existir no mesmo mundo, canhão. Marcel Proust e Big Bertha são antônimos. Ou a arte ou a estupidez humana, uma das duas terá que prevalecer, porque a outra será uma mentira.
– Engano seu, Marcel. Vamos conviver por séculos.
O canhão se levanta para ir embora e pergunta:
– Posso pedir uma coisa, já que lhe fiz o favor de não bombardear o Boulevard Haussmann?
– Peça.
– Me ponha no seu livro?
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