O ESTADÃO - 11/03/12
A sensação de alívio na Europa parece estar em toda parte, das altas nos mercados regionais e globais de ações e dívida soberana aos pronunciamentos cada vez mais confiantes de autoridades europeias de que seu continente já teria superado o pior da crise e estaria agora entrando em mares menos turbulentos. Mas será que tudo isso é real e durável? Será que já é hora de países muito mais fortes - como o Brasil - começarem a se preocupar bem menos com os ventos contrários vindos da Europa? Devemos sem dúvida torcer para que isso seja verdade, mas é importante não contar com esse fato em nossos planos. Ainda é cedo demais para relaxar.
Primeiro, as boas notícias. Quatro fatores genuínos contribuíram para inspirar mais calma - ao menos por enquanto - na zona do euro e, por conseguinte, na economia global como um todo.
Para começar, o Banco Central Europeu acionou um poderoso instrumento sob a forma da Operação de Refinanciamento de Longo Prazo (LTRO, na sigla em inglês). Esse dispositivo permitiu que os bancos trocassem por dinheiro um grande conjunto de ativos líquidos e ilíquidos, e permitiu que o fizessem ao custo extraordinariamente baixo de 1%, e com o prazo anormalmente longo de três anos.
Não surpreende que, em apenas duas operações da LTRO, os bancos tenham tomado emprestado quase 1 trilhão por meio desse dispositivo. E, embora não saibamos ao certo como o dinheiro foi empregado, parece que uma parte significativa foi usada para melhorar a posição dos bancos em termos de liquidez e prazos.
Isso foi fundamental para a redução da probabilidade da eclosão de uma crise bancária na Europa, acompanhada por subsequentes perturbações na atividade econômica global e no mercado financeiro mundial. Parece também que parte do dinheiro foi usada para comprar títulos de dívida soberana emitidos pelas economias europeias periféricas, o que ajudou a acalmar esses importantes mercados.
Em segundo lugar, as partes envolvidas que detêm a chave para solucionar a crise na Grécia - de longe o mais enfermo dentre os membros da zona do euro - conseguiram chegar a um acordo, ainda que aos trancos e barrancos. Isso depois de várias rodadas de negociações, múltiplas ameaças de colapsos turbulentos e trocas de acusações particularmente perturbadoras. Além da fórmula habitual tão conhecida por muitos países latino-americanos - captar mais dinheiro de credores oficiais, como o FMI, em troca da promessa de mais medidas de austeridade por parte do governo grego -, esse novo acordo inclui um alívio para a dívida sob a forma de uma significativa perda para os detentores privados de títulos da dívida grega.
Assim, a Grécia está agora envolvida na primeira de uma série de transições fundamentais que foi instrumental no fim dos anos 80 e começo dos 90 para ajudar a América Latina a emergir de sua 'década perdida'.
Em terceiro, são cada vez mais numerosas as provas de que os novos governos da Itália e da Espanha demonstram muito mais seriedade diante da tarefa de reformar suas economias. Levando-se em consideração as dimensões do mercado desses países (tomados em conjunto, seu PIB é 12 vezes maior do que o grego), as melhorias conquistadas neles produzem efeitos benéficos que se multiplicam pela zona do euro. Além disso, sua dinâmica interna - aquilo que os economistas chamam de 'equilíbrios múltiplos' e de 'dependência do caminho trilhado' (path dependency) - lembra a situação que o Brasil vivenciou em 2001-03: um passo na direção certa aumenta a probabilidade de o passo seguinte produzir um efeito ainda melhor, enquanto que um desenvolvimento negativo aumenta a probabilidade de uma deterioração adicional.
Em quarto, a Europa foi ajudada por desenvolvimentos no ambiente econômico global - especialmente a gradual recuperação econômica dos Estados Unidos (que continuam em situação frágil) e os indícios da disposição da China de evitar uma desaceleração abrupta da sua economia.
Essas melhorias são reais. Devem ser bem recebidas por todos aqueles que querem ver a estabilização das economias avançadas e o seu rápido retorno ao caminho do crescimento mais rápido, maior criação de empregos e menor desigualdade de renda e riqueza. Mas, ao mesmo tempo, é cedo demais para abrir a champanhe, pois a Europa ainda tem muito a fazer antes de garantir melhorias duráveis e sustentáveis na sua situação.
A análise realizada pela Pimco aponta para múltiplos riscos naquele que continua a ser um panorama 'de incerteza incomum' para a economia global, como disse Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano). De fato, se os governos se tornarem complacentes, três dos quatro fatores responsáveis pela relativa calma acabariam se mostrando tanto temporários como reversíveis.
As injeções de liquidez proporcionadas pelo BCE podem aliviar os problemas do setor bancário no curto prazo, mas, por si mesmas, serão insuficientes para superar profundos obstáculos à solvência e ao crescimento. O acordo grego pode ruir nas próximas semanas e meses, já que reflete um difícil compromisso entre partes que carecem de confiança e convicção na abordagem geral. E as melhorias no ambiente econômico global ainda são muito dependentes de fatores transitórios que, como ocorreu no início de 2010 e de 2011, podem ser vitimados pela persistente rigidez estrutural e por um alto grau de disfuncionalidade política nas economias avançadas, para não mencionar os pontos geopolíticos inflamáveis em outras regiões (como Irã e Síria).
É claro que ainda é cedo demais para que a Europa possa declarar vitória; e ainda é cedo para que países como o Brasil deixem de lado a preocupação com a turbulência vinda da Europa. Afinal, a frágil zona do euro ainda é a maior zona econômica do mundo; seus bancos ainda têm grandes redes globais; e seu destino tem impacto no apetite geral pelo risco que impulsiona os investidores em direção a ativos físicos e financeiros em boa parte do mundo.
Nossa análise na Pimco sugere que países mais fortes, como o Brasil, só devem relaxar quando observarem as seguintes três mudanças, que devem ocorrer de maneira significativa.
1. A zona do euro deve complementar logo sua poderosa arma de liquidez com políticas que atendam ao problema fundamental de um grande número de seus países: crescimento muito pequeno e dívida muito grande. Inevitavelmente, isso envolverá difíceis adaptações nas políticas públicas e - ainda mais importante - delicadas deliberações a respeito da configuração sustentável da zona do euro, incluindo a possibilidade de reduzir o número de seus membros para formar uma união econômica mais robusta e menos imperfeita.
2. Depois de mais de dois anos de recorrentes decepções e uma crise econômica cada vez mais acentuada, a Grécia (e também Portugal) precisa implementar nas políticas públicas abordagem capaz de convencer os cidadãos de que todos os sacrifícios de austeridade serão correspondidos por uma probabilidade expressiva de melhorias no médio prazo.
3. Por fim, China e EUA precisam atuar mais para remover os obstáculos estruturais que impedem os dois países de atingir alto crescimento econômico sem causar grandes desequilíbrios globais.
É improvável que tais mudanças ocorram imediata e simultaneamente. Da mesma maneira, muitas das circunstâncias atuais das economias mais frágeis da Europa lembram mais a Argentina de 2001 do que o Brasil do fim de 2002. O marco crítico ainda não foi superado e, portanto, ainda existe uma probabilidade desconfortavelmente alta de a recente calmaria europeia se tornar vítima de outra rodada de turbulência.
Por mais que todos nós desejemos desesperadamente que a Europa se afaste cada vez mais das recorrentes turbulências, avançando no sentido do crescimento e da estabilidade financeira, o continente ainda não superou o problema. Ainda é significativo o risco de a Europa voltar a emitir ondas com potencial de criar turbulência e deslocamentos. Dessa forma, devemos manter a esperança sem nunca relaxar nem cair no engano da complacência.
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