Literatura terminal
HUMBERTO WERNECK
O ESTADÃ0 - 02/10/11
Você bate as botas e alguém grava na lápide um texto que o faria morrer de vergonha
Ao lado de discutíveis vantagens, morrer tem seus inconvenientes – e um deles é ficar exposto a uma subliteratura em mais de um sentido fúnebre. Você pode argumentar que àquela altura – ou fundura – já não seria o caso de se preocupar com questões estilísticas. Inês estando morta, tanto faz alguém gravar na pedra uma “saudade imorredoura”,quando a extinta criatura gostaria mesmo é que imorredoura fosse ela,não a saudade. Pode ser. Pra que tanta pose, doutor, pra que esse orgulho?, questionou em samba Billy Blanco, por sinal já chegado a esse estágio em que “todo mundo é igual quando a vida termina com terra em cima e na horizontal”.
Ainda assim, peço licença para voltar a uma questão que me parece grave – inclusive no sentido que tem, na língua inglesa, a palavra grave.
Você bate as botas e alguém manda gravar na lápide um texto que o faria morrer de vergonha, se morto já não estivesse. A morte é também isso. Por que, então, não cuidar do texto antes da fatal batida de botas?Como fez a escritora Dorothy Parker, ao imaginar letras minúsculas sobre uma vasta superfície de pedra: “Se você conseguiu ler aqui, é porque já chegou perto demais!” Também é dela este aqui: “Desculpe o pó...”
Confesso que para uso próprio ainda não aprontei algo brilhante, ou mesmo fosco, a ser lido pelos pósteros ao pé de minha campa. Já pensei em recorrer à dramática secura de uma inscrição que li no cemitério de Havana, verdadeiro grito gravado no mármore: ¡Irene Manuela!
Mas talvez não mereça a carga emotiva dos pontos de exclamação arrevesados – assim como não me julgo,em meus piores momentos, merecedor de algo com que me deparei ao perambular por um cemitério de defuntos finos de São Paulo em busca de artes funerárias de Victor Brecheret.Lá está,sob o nome de um fulano, numa lápide de granito negro: “A Bosta”. Sim, nem toda pá é de cal, e tudo vira pó, inclusive aquilo.
O fato de ser autor de um dicionário de lugares-comuns e frases feitas me criaria constrangimento se quisesse incidir na “saudade de seus entes queridos”. Mais coerente seria buscar inspiração num pocket book que já começa a ser curioso por ter a forma de uma daquelas lápides de cemitério inglês, com uma corcova no alto. Chama-se A small book of grave humour. Nele, certo Fritz Spiegl recolheu velhos epitáfios,mais hilariantes que lacrimogêneos.
Esta inscrição, por exemplo, trata commortal franqueza amemória de um defunto humilde: “Aqui jaz John
Taggart,homem honesto, baixo de estatura e manco de uma perna. Estava satisfeito com uma pequena participação que tinha numa lojinha em Wigtown, e isso era tudo.” Outra, ao reverenciar as virtudes morais da falecida, lança enxofre sobre a honra de suas conterrâneas:
“Aqui jaz a pobre Charlotte,que não morreu rameira, e sim virgem, aos 19 anos, algo raro de se ver nas vizinhanças.”
Dois epitáfios são obras-primas de humor nonsense:
Todos foram enterrados em Wimble, menos eu, que estou enterrado aqui.” “Aqui jaz John Higley,cujos pais morreram num naufrágio. Se tivessem sobrevivido, os dois estariam enterrados aqui.”
No túmulo de um líder mórmon, afamado por dotes não exatamente espirituais, o Fritz anotou: “Homem de muita coragem e de soberbo equipamento.”
Não faltam ao livro umas tantas reclamações póstumas:
“Ó morte cruel, como pôde você ser tão desapiedada, levando-o antes e me deixando para trás.Em vez disso, você deveria ter levado os dois, o que teria sido mais agradável para o sobrevivente.”
“Aqui jaz o corpo de Molly Dickie, a esposa de Hall Dickie Taylor. Com dois grandes médicos, meu adorado marido tentou, em vão, curar meus males. Por fim arranjou um terceiro, e aí eu morri.”
“Em memória de Charles Ward, filho zeloso, irmão amoroso e marido afetuoso. Nota: Este túmulo não foi
mandado erigir por sua mulher, Susan. Ela erigiu um túmulo para John Salter, seu segundo marido, esquecendo o afeto de Charles Ward.”
Como não me serve nenhuma das fórmulas reunidas pelo Fritz Spiegl, eu talvez acabe plagiando o poeta Mário Quintana, que, inconformado com a iminência de seu passamento, quis epitáfio nestes termos: “Eu não estou aqui.” Pois também eu pretendo não estar.
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