domingo, outubro 02, 2011

GAUDÊNCIO TORQUATO - O dedo de Deus



O dedo de Deus
GAUDÊNCIO TORQUATO
Estado de S.Paulo - 02/10/11

O juiz, ensinava Francis Bacon, o filósofo inglês, deve preparar seu caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando as montanhas. Perguntinha do momento: será que há juiz abrindo vias judiciárias no Brasil sem olhar para o dedo de Deus? Pelo que se lê, há. É o que se deduz da ferina declaração da ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, ao anunciar que no Poder Judiciário há "bandidos de toga". Ela vai além com o rabisco pitoresco de que inspecionará o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, "refratário a qualquer ação do CNJ, no dia em que o sargento Garcia prender o Zorro".

Ora, quem conhece a historinha de TV que se passa em San Diego, no sul da Califórnia (EUA), não tem dúvidas quanto ao desfecho. A chance de o obeso sargento Garcia, fanfarrão e bebedor de vinho, prender o inimigo Zorro, defensor do povo, chega perto de zero. A intenção da corregedora é, tudo indica, denunciar a ação corporativa patrocinada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que objetiva reduzir o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Quem tem razão nessa pendenga? A questão avulta neste momento em que o País presencia agitada movimentação na esfera dos operadores do Direito. Procuradores e promotores, advogados e juízes dominam a cena, brandindo armas flamejantes na arena dos conflitos, cada qual desempenhando suas funções. São ações judiciais - processos criminais, ações civis públicas, ações diretas de inconstitucionalidade -, recursos em defesa de pessoas e grupos de interesse ou, no caso dos magistrados, decisões muito aguardadas, cujos efeitos se fazem sentir nas políticas públicas e na dinâmica das instituições.

É oportuno conferir o pano de fundo. O campo da política estreita, a cada dia, a distância que mantém da seara da Justiça. Fato registrado pelos dois termos que traduzem a imbricação de suas fronteiras: a judicialização da política e a politização da Justiça. O que se convencionou chamar de "ativismo judicial" se explica por um conjunto de fatores, entre os quais se destacam o despertar da sociedade, por meio de seus núcleos organizados; a emergência de novos polos de poder; a promoção da cidadania, na esteira das bandeiras dos direitos humanos e da igualdade, responsável por movimentos como os de defesa das mulheres, de etnias e dos homossexuais; e o vácuo proporcionado pela ausência de legislação infraconstitucional (muitos dispositivos da Constituição federal de 1988 não foram regulamentados).

Nesse ambiente de múltiplas interações, dentro do qual convivem instituições em processo de consolidação e uma cultura patrimonialista que subjuga a res publica ao crivo (e à ambição) do interesse privado, é difícil para o sistema judiciário tornar-se imune às pressões políticas. A partir de 1988, a Carta Magna abriu o leque das relações mais intensas. A composição das Cortes, por sua vez, tem proporcionado união mais estável entre Justiça e política.

Anote-se, por exemplo, o processo de seleção de nomes para compor as listas dos tribunais superiores, encaminhadas ao chefe do Executivo, a quem cabe a palavra final. No torneio de trancas e retrancas, pressões e contrapressões, há jogadores dos partidos, de arenas corporativas (associações de classe) e de grupos, particularmente os da esfera laboral.

Registre-se, ainda, que o território dos negócios adentrou muito os domínios do Estado. Portanto, a politização da Justiça, sob o prisma de indicação de nomes para as Cortes, incorpora também esse componente. Em nações desenvolvidas, como a França e a Alemanha, isso é natural. Parcela da Corte Constitucional passa pelo crivo do Parlamento. Há, ali, intenso atrelamento partidário. E nos Estados Unidos a nomeação de magistrados passa pela régua partidária, seja privilegiando democratas ou republicanos (liberais ou conservadores), dependendo do presidente do momento.

Exposto o cenário da interação Justiça-política, é comum ouvir nos corredores do Judiciário coisas do tipo: "O juiz fulano é ligado ao político beltrano". E vice-versa: "O mandatário tem afinidade com o juiz tal". Até aí, tudo bem. O desenho ganha matiz mais forte, porém, quando a aproximação causa suspeita, quando se escancara a influência de atores (políticos/empresariais) nas decisões de juízes. É até provável que a complexidade do sistema judicial brasileiro dê margem a desvios, levando ainda em conta a existência de 16.108 magistrados. Os descaminhos acabam batendo às portas da Corregedoria do CNJ.

E aqui entra em cena a corregedora nacional da Justiça com sua pregação: "Há bandidos de toga". Mas a entidade de classe dos magistrados quer nomes, repele a generalização. Como colocar a questão? Pincemos a célebre pergunta dos filósofos do Direito: quis custodiet custodes? Isto é, quem vigia o vigilante? Norberto Bobbio sugere a resposta ao pressupor que a indagação, por si só, aponta para um vigilante superior. Faz, porém, a ressalva: o processo deve ter limite, sob pena de descambar para o infinito.

O CNJ, nesse caso, seria o vigilante das Cortes estaduais. Sob tal entendimento, o cabo de guerra é puxado para o lado da ministra Eliana Calmon. O desembargador Nelson Calandra, presidente da AMB, refuta: "A magistratura não precisa de guardas para guardar os guardas". Mas se os "guardas" (alguns) não honram o múnus, o desabafo de Calandra, é forçoso reconhecer, perde força. Poderia a própria Corregedoria do tribunal "guardar" os quadros que o integram? Ora, essa é uma de suas funções. Mas os tribunais, é sabido, não fazem controles rígidos. O modus operandi é corporativo. Não se controla a permanência dos juízes em suas localidades e nos Fóruns. Crítica geral: as Corregedorias são omissas. Processos administrativo-disciplinares, ao chegarem ao plenário, são protelados com pedidos de vista, caindo na prescrição.

Querem um bom desfecho para a querela? Basta que os dois lados olhem para onde aponta o dedo de Deus.

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