domingo, março 11, 2012

Vamos queimar os dicionários - LYA LUFT

REVISTA VEJA


Quando a gente pensa que já viu tudo, não viu. Faz algum tempo, dentro do horroroso politicamente correto que me parece tão incorreto, resolveram castrar, limpar, arrumar livros de Monteiro Lobato, acusando-o de preconceito racial, pois criou entre outras a deliciosa personagem da cozinheira Tia Nastácia, que, junto com Emília e outros do Sítio do Picapau Amarelo, encheu de alegria minha infância. Se formos atrás disso, boa parte da literatura mundial deve ser deletada ou "arrumada". Primeiro, vamos deletar a palavra "negro" quando se refere a raça e pessoas, embora tenhamos uma banda Raça Negra, grupos de teatro Negro e incontáveis oficinas, açougues, borracharias "do Negrão", como "do Alemão" "do Portuga" ou "do Turco". Vamos deletar as palavras. Quem sabe, vamos ficar mudos, porque ao mal-humorado essencial, e de alma pequena, qualquer uma pode ser motivo de escândalo. Depende da disposição com que acordou, ou do lado de onde sopram os ventos do seu próprio preconceito.

"Vamos deletar as palavras que nos incomodam, os costumes que nos irritam, as pessoas que nos atrapalham e, quem sabe, iniciar uma campanha de queima de livros. De autores, seria um segundo passo"

Embora meus ·antepassados tivessem vindo ao Brasil em 1825, portanto sendo eu de muitas gerações de brasileiros tão brasileiros quanto os de todas as demais origens, na escola havia também a turminha que nos achacava com refrãos como "Alemão batata come queijo com barata". Nem por isso nos odiamos, nos desprezamos. Eram coisas infantis, sem consistência. O que vemos hoje quer mudar a cara do país, ou da cultura do país, e não tem nada de inocente.

Um dos negros que mais estimei (no passado, porque morreu), ligado a mim por laços de família, era culto, bom, interessante, nossos encontros eram uma alegria. Com ele muito aprendi, sua cultura era vasta. A cor de sua pele nunca me incomodou, como, imagino, não o aborreciam meus olhos azuis. Havia coisas bem mais positivas e importantes entre nós e nossas famílias. Não vou desfilar casos com amigos negros, japoneses, árabes, judeus, seja o que for. Mas vou insistir no meu escândalo e repúdio a qualquer movimento que seja discriminatório, que incite o ódio de classes ou o ódio racial, não importa em que terreno for.

Agora, de novo para meu incorrigível assombro, em um lugar deste vasto, belo, contraditório país que a gente tanto ama, desejam sustar a circulação do Dicionário Houaiss, porque no verbete "cigano" consta também o uso pejorativo - que, diga-se de passagem, não foi inventado por Houaiss, mas era ou é uso de alguns falantes brasileiros, que o autor meramente, como de sua obrigação, registrou. Ora, para tentar um empreendimento desse vulto, como suspender um dicionário de tal peso e envergadura, seria preciso um profundo e preciso conhecimento de linguística, de lexicografia, uma formação sólida sobre o que são dicionários e como são feitos.

O dicionarista não inventa, não acusa nem elogia, deve ser imparcial - porque é apenas alguém que registra os fatos da língua, normalmente da língua-padrão, embora haja dicionários de dialetos, de gírias, de termos técnicos etc. Então, se no verbete "cigano" Houaiss colocou também os modos pejorativos como a palavra é ou foi empregada, criticá-lo por isso é uma tolice sem tamanho, que, se não cuidarmos, atingirá outros termos em outros dicionários, com esse olhar rancoroso. Vamos nos informar, antes de falar. Vamos estudar, antes de criticar. Vamos ver em que terreno estamos pisando, antes de atacar obras literárias ou científicas com o azedume de nossos preconceitos e da nossa pequenez ou implicâncias infundadas. Há coisas muito mais importantes a fazer neste país, como estimular o cuidado com a educação, melhorar o atendimento à saúde, promover e preservar a dignidade de todos nós.

Ou, numa mistura maligna de arrogância e ignorância - talvez simplesmente porque não temos nada melhor a fazer -, vamos deletar as palavras que nos incomodam, os costumes que nos irritam, as pessoas que nos atrapalham e, quem sabe, iniciar uma campanha de queima de livros. De autores, seria um segundo passo. E assim caminhará para trás, velozmente, o que temos de humanidade.




O templo da perversão - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA


Com bom transito entre políticos, artistas e ONGs, o pastor Marcos é agora acusado de estupro, tortura e conivência com a bandidagem que ele diz "curar"


Leslie Leitão

Na última década, o pastor carioca Marcos Pereira, 55 anos, conquistou respeito em rodas que mesclam políticos, desembargadores, artistas e uma vasta turma egressa de ONGs. Entre os que já o viram em cima de um púlpito gesticulando com. um de seus Rolex em punho e desejando "rajadas de glória" à plateia, estão o senador Alvaro Dias (PSDB-PR), a produtora Marlene Mattos e o ex-pagodeiro Waguinho, que, mesmo sem se eleger, alcançou 1,3 milhão de votos na última disputa para o Senado tendo o pastor Marcos como cabo eleitoral. Alçado à condição de religioso-celebridade, Marcos extrapolou, e muito, as fronteiras de sua igreja, a pentecostal Assembleia de Deus dos Últimos Dias, com sede no Rio e filiais no Paraná e no Maranhão. Desde 2004 - depois de pôr fim a uma sangrenta rebelião em um presídio do Rio, a pedido do então secretário de Segurança, Anthony Garotinho -, ele passou a ser visto como o mais habilidoso apaziguador de conflitos liderados pela bandidagem, com um currículo que, segundo o próprio inclui o resgate de centenas do tráfico. Tem feito esse trabalho no Brasil inteiro e já foi várias vezes aos Estados Unidos, onde quer erguer um templo, para falar da experiência. Pois por trás dessa fachada, ao que tudo indica, se esconde um enredo de atrocidades que não deixa pedra sobre pedra da imagem de bom religioso do pastor.

Em um recém-instaurado inquérito. cujo número é 902-00048/2012 e que está em poder da Delegacia de Combate às Drogas do Rio, ele é acusado de encenações de cura pela fé, estupro, tortura de crianças e relações criminosas com os marginais aos quais esbravejava promessas de "salvação do demônio". VEJA teve acesso a trechos da investigação, um conjunto de relatos de gente que diz ter sido vítima ou testemunha da perversidade do pastor. Um de seus homens de confiança durante mais de seis anos, longe da igreja há dois, traz à luz uma história escabrosa, que dá a dimensão de como o pastor se enfronhou no mundo do crime. Essa testemunha sustenta, por exemplo, que Marcos ficou claramente do lado dos bandidos que engendraram a mais sangrenta onda de terror no Rio, em 2006. Depois dos ataques, reuniu seu séquito mais íntimo em uma churrascaria. "Ele queria que os bandidos tivessem até explodido a Ponte Rio-Niterói. O objetivo era aparecer depois como o intermediário salvador", conta o ex-fiel. A trama piora na voz de outra testemunha, que situa o pastor como braço operacional da selvageria. "Marcos foi ao presídio de Bangu 1 e saiu de lá com um recado dos chefões do tráfico para que suas quadrilhas dessem sequência à carnificina", rememora. Como sabe disso? "O pastor me encarregou de repassar a ordem nas favelas. E foi o que eu fiz."

A polícia já colheu uma dezena de depoimentos, e muitas das histórias se repetem nos mínimos detalhes. A investigação começou há duas semanas. depois que o coordenador da ONG AfroReggae, José Junior, 43 anos, veio a público denunciar que o pastor tinha um plano para matá-lo. A informação vinha de integrantes da própria igreja. "Trata-se de um psicopata", dispara Junior, que hoje tem a seu lado na ONG um antigo braço direito de Marcos, o pastor Rogério Ribeiro de Menezes, 39 anos. Afastado do templo de Marcos desde 2008, ele fala pela primeira vez sobre os dezessete anos que viveu sob suas asas. Tomou a decisão depois de ter sido ameaçado de morte três vezes -- na última, os traficantes de uma favela esfregaram um fuzil contra seu rosto e pronunciaram o nome Marcos.

Seu depoimento ajuda a elucidar o que tanto unia o pastor aos traficantes que ele dizia "curar", e certamente não era a fé. Não raro, Marcos lhe pedia que escondesse mochilas cheias de dinheiro em sua casa. Contou duas vezes a coleção de notas. "Numa delas, havia 200 000 reais. Na outra, 400 000 reais", lembra Rogério. Detalhe: traziam resquícios de cocaína e crack. Segundo Rogério, o pastor cobrava até 20 000 reais para pregar nas favelas, o que os traficantes pagavam de bom grado, já que assim mantinham sua base assistencialista. Três deles chegaram a ser presos em propriedades da igreja do pastor, no Rio e no Paraná, mas a polícia nunca comprovou que estavam ali com a conivência do religioso. Todos pagaram uma taxa equivalente a 10% de tudo o que haviam acumulado no crime.

Em seu templo, o fundador é tão reverenciado quanto temido. Até hoje, manteve todos em silêncio à base de benesses e ameaças. Duas mulheres contam como a igreja se tornou um show de horrores no qual lhes cabia o papel de vítimas do pastor. Ambas dizem que foram violentadas sexualmente por ele diversas vezes. A polícia, uma das moças afirma ainda que Marcos obrigava as fiéis de sua preferência a manter relações sexuais com outros homens, em orgias das quais também participava. "Depois. mandava a gente confessar tudo com outro pastor, sem revelar nomes, é claro", ela conta. Constam ainda do inquérito denúncias de crueldades contra crianças que o pastor mantinha sob sua guarda, em geral abandonadas pelos pais. Uma delas, de 7 anos, teria pago caro por testemunhar, casualmente, as peripécias sexuais do religioso. Ao se dar conta, o pastor agarrou-a pelos cabelos e lançou-lhe a cabeça no vaso sanitário, segundo um dos relatos à polícia.

Ex-garçom, o pastor Marcos é casado e tem dois filhos que já seguem seus passos no mundo da fé. Convertido em 1989, fundou sua igreja dois anos depois e constituiu ali um reinado de trevas. Proíbe refrigerante, rádio, televisão (apesar de ter um telão em seu gabinete) e remédios, já que a igreja se encarrega da cura (aos que pagarem uma taxa extra via boleto bancário, distribuído durante a pregação). Os cultos, que juntam até 15 000 pessoas, são barulhentos e teatrais - literalmente, segundo narra um ex-assessor do pastor, que ajudava a armar o show: "Ele dava dinheiro a viciados para comprarem droga, filmava a turma em degradação e depois levava para a igreja, como se os estivesse salvando". Na última segunda-feira, um rapaz adentrou a Assembleia de Deus dos Últimos Dias de muletas, que usava desde um acidente que lhe machucara o fêmur. Depois das orações do pastor Marcos, caminhou em frente aos fiéis dizendo-se curado. Findo o culto, subiu na mesma moto que havia conduzido na viagem de ida à igreja e foi embora.

Dentro de casa - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA

Uma das melhores decisões que o atual governo tomou na área da educação, on talvez em qualquer área, foi a criação, no ano passado, de um programa de bolsas de estudo em universidades estrangeiras para estudantes interessados em aperfeiçoar seus conhecimentos depois de formados no Brasil. Não se trata de mandar gente para Cuba, Moçambique ou coisa parecida; as bolsas se destinam a cursos em universidades dos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França e Itália, nas quais se oferece hoje, de modo geral, o ensino superior mais avançado do mundo. Também não servem para quem queira estudar movimentos sociais, direção de cinema ou gastronomia sustentável. As bolsas, aqui, são reservadas exclusivamente para coisas que têm a ver com a vida real da produção matemática, física, biologia, química e, num segundo momento, áreas como tecnologia mineral, petróleo, gás natural e outras disciplinas científicas. O Brasil, no momento, tem uma necessidade desesperada de profissionais com alta qualificação em tudo isso, Um vasto leque de atividades essenciais para uma economia moderna depende diretamente deles -sem a sua presença nas empresas, sejam elas privadas ou esfaz imaginar, o número de alunos diplomados ao fim dos cursos está diminuindo, ao invés de aumentar. Tudo bem, portanto, até aí; mas só até aí. Esta mos no Brasil o no Brasil, é bom lembrar, o governo consegue errar mesmo quando acerta. No caso, está deixando uma parte de sua máquina desmanchar o que outra faz de bom: ao mesmo tempo em que paga para jovens brasileiros aprimorarem seus conhecimentos científicos e tecnológicos nas melhores universidades estrangeiras, empenha-se ao máximo para dificultar, depois que voltam ao Brasil, o reconhecimento dos títulos que obtiveram no exterior. Não é isso que o governo, no seu comando supremo, quer. Mas é o que acontece. Como o jornal O Estado de S. Paulo relatou em artigo recente, as autoridades educacionais encarregadas de validar os diplomas dos bolsistas dedicam-se, na prática, a um trabalho de sabotagem permanente contra eles e, naturalmente, contra o público que está pagando a conta. Há exigência da mesma carga horária que teriam nas universidades brasileiras, "das mesmas disciplinas e currículos, do mesmo esquema de avaliação de teses, de traduções juramentadas e de documentos expedi dos por consulados". A Universidade de Brasília, uma das encarregadas de fazer o reconhecimento de títulos, só examina, em cada setor de estudo, seis casos por semestre. E comum o bolsista esperar um ano ou mais pela validação. Se fez seus estudos numa universidade americana, as coisas podem ficar ainda piores. Em todo o sistema o que prevalece é a hostilidade ao mérito individual, a ditadura do carimbo, a ideologia boçal que separa o conhecimento científico entre o nacional, bom e popular, e o estrangeiro, ruim e elitista.

"O que prevalece é a hostilidade ao mérito individual, a dita dura do carimbo e uma ideologia boçal que separa o conhecimento científico em dois campos o nacional, bom e popular, e o estrangeiro, ruim e elitista."

Essa história das bolsas é mais uma demonstração , brasileiras ou multinacionais que operam no país, simplesmente não é possível executar uma infinidade de novos projetos na indústria, infraestrutura, agricultura, exploração de recursos naturais e virtualmente qualquer área do universo produtivo. Investimentos ficam bloqueados. Perde-se espaço para os competidores estrangeiros. Sofrem a criação de empregos, a melhoria de renda e a arrecadação de impostos. A iniciativa é um belo exemplo de como utilizar com respeito, inteligência e eficácia o dinheiro público, que pagará diretamente 75% de todas as despesas do programa; é investimento certo, com retorno certo e na hora certa. Serviria, quem sabe, como um contrapeso para as informações desanimadoras que acabam de sair das universidades brasileiras -ao contrário do que a propaganda oficial demonstração, entre tantas, do abismo que separa, dentro do governo brasileiro, as intenções dos resultados e mais uma prova da impotência generalizada dos que mandam em relação aos que executam. Decidir bem, como todo mundo sabe, já é uma luta. Tudo fica muito mais complicado, obviamente, se os encarregados de executar as decisões não se interessam em cumpri-las. E o que vive acontecendo. Executam mal, ou executam devagar, ou simplesmente não executam -mesmo porque, muitas vezes, devem seguir regras que não lhes permitem praticar as ordens que recebem. O que se tem, ao fim da linha, é simples: quanto mais a alta autoridade manda, tanto menos a baixa autoridade obedece. O verdadeiro inimigo a vencer está dentro de casa.

QUANTO VALE O SHOW? - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 11/03/12


Tiririca, o deputado-palhaço, cobrou R$ 80 mil da KeroCasa, cooperativa de apartamentos populares, para estrelar uma campanha. Mais hotel e carro à disposição durante sua estada na cidade. A KeroCasa achou caro e foi atrás de Dicró, o nosso cantor, que cobrou... R$ 4 mil.

PAÍS DO SILICONE
O crescimento do mercado de silicone no Brasil atraiu a gigante alemã Polytech Health & Aesthetics. A gringa acaba de abrir uma sede no Rio e monta representações em outros 10 estados e em Brasília.

BATOM E RÍMEL
A Zamboni, líder do setor de distribuição de produtos industrializados, registrou um aumento de 33,2% na venda do segmento beleza na semana do Dia da Mulher, comparado ao mesmo período de 2011.

CAFÉ DE ORO
No Aeroporto Internacional de Montevidéu, um copo de 300ml de café com ouro, perdão, com leite está custando... US$ 17,50! Ou uns R$ 30, em dinheiro de Dilma. Deve ser terrível... você sabe.

A HORA DA ESTRELA
Clarice, a grande biografia da nossa Clarice Lispector, escrita pelo americano Benjamin Moser, vai virar documentário na BBC. Também continua de pé um projeto de longa, em inglês, sobre a genial escritora.

BOLSA DO ESPORTE
Antonio Vítor e João Vítor Oliva, filhos de Hortência, do basquete, e Marco Soffiati Grael, filho de Torben, da vela, vão ganhar a Bolsa-Atleta de 2012, do Ministério do Esporte. Antonio e João fazem hipismo. Marco faz vela. O ministro Aldo Rebelo anuncia nesta semana todos os contemplados.

A PALAVRA É... CIGANO
A ABL decidiu reagir contra a “censura” proposta pelo Ministério Público ao Dicionário Houaiss pela alusão ao sentido figurado de “cigano”.

O imortal Evanildo Bechara, em nome da academia, considerou a iniciativa “crime de lesa-cultura”.

AQUELE ABRAÇO
Búzios, o balneário fluminense, será considerado o “melhor destino de sol e praia” pelo salão de turismo Euroal 2012, em maio, na Espanha. Desbancou Ibiza e Cancún.

THALITA, O MUSICAL
O livro Tudo por um Pop Star, de Thalita Rebouças, a escritora preferida dos adolescentes, vai virar musical. O projeto é tocado por Aniela Jordan, da Aventura Entretenimento, responsável por musicais de sucesso como Um Violinista no Telhado e Hair.

Estreia em janeiro de 2013.

FALA SÉRIO, Ó PÁ...
Aliás, Thalita, com 1,2 milhão de livros vendidos no Brasil, faz sucesso também em Portugal. Fechou a publicação de Fala Sério, Filha! na terrinha, pela Editorial Presença. Lançará na Feira do Livro de Lisboa, em abril.

Por que crescemos tão pouco - REVISTA ÉPOCA


REVISTA ÉPOCA

O brasileiro está cansado de remar num barco travado por uma âncora pesada. É hora de o país fazer as reformas que permitam crescimento mais elevado e sem sobressaltos

MARCOS CORONATO e JOSÉ FUCS

Uma das imagens mais eloquentes para o esforço, na literatura brasileira, foi criada pelo cronista Nélson Rodrigues. Quando se referia a alguém que suava em busca de um objetivo, ele escrevia: Trabalhou como um remador de Ben-Hur. O protagonista do filme estrelado por Charlton Heston é um rico negociante judeu que, com a dominação romana na Galileia, torna-se escravo e é obrigado a remar exaustivamente numa galera. Diante da notícia do crescimento de apenas 2,7% na economia brasileira em 2011, divulgada na semana passada, o brasileiro que trabalha duro se sentiu pior que o remador de Ben-Hur. A barca em que nos esfalfamos diariamente, além de pesada, é travada por uma âncora, por isso dificilmente sai do lugar. O índice de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) não é apenas um número abstrato que os economistas calculam, os políticos divulgam e os analistas discutem. Dele depende, em última análise, nossa vida. Os aumentos e as promoções que recebemos no trabalho e também as novas oportunidades de emprego. Pensando na barca, e não apenas no remador, ele influencia também a ascensão dos brasileiros mais pobres e a redução de uma infinidade de problemas, da mortalidade infantil à violência urbana.

Para nós, seria bom que a economia avançasse entre dois limites de velocidade importantes. O limite mínimo é 3% ao ano, fundamental para criar o cerca de 1,5 milhão de empregos anuais necessários apenas para absorver os novos profissionais que entram no mercado de trabalho. Também precisamos superar esse limite mínimo para tirar mais e mais brasileiros da miséria e da pobreza apesar da melhora dos últimos anos, ainda há quase 50 milhões de pessoas nessa situação. Se o país crescer em ritmo inferior a esse limite, como ocorreu em 2011, não estará avançando, e sim arrastando-se, sem conseguir se aproximar do tão sonhado destino de se tornar uma nação desenvolvida.

O limite máximo, conhecido entre os economistas como PIB potencial, mostra o ritmo em que o país pode acelerar sem explodir o motor sem que a inflação dispare. Há dois anos, acreditava-se que ele passava dos 5%. Um número crescente de economistas vem duvidando desse número. Como o Brasil já vem se expandindo, mas investe pouco na capacidade de produção futura infraestrutura e capacitação da força de trabalho , o PIB potencial pode girar em torno de 4% ao ano, talvez menos. O país precisa elevar esse limite. Mas a pergunta que todos se fazem é: Por que é tão difícil crescer, mesmo nessa faixa pouco ambiciosa?.

A crise global representa, neste momento, uma resposta tão fácil quanto enganadora. A crise realmente atrapalha os planos de todos, de pequenos empresários aos governos mais poderosos do mundo. Todos os países tentam comprar menos e vender mais, e isso torna o mercado pior para todos. Mas a crise não impediu que países em nível de desenvolvimento parecido com o nosso, como Argentina, México ou Turquia, andassem mais rapidamente (leia na tabela abaixo). O Brasil cresceu menos do que precisava em parte por causa da crise, mas principalmente por seus próprios pecados o governo federal vem protelando uma lista de mudanças que têm de ser feitas para que o país possa continuar avançando. Já fizemos algumas reformas importantes desde a década de 1990, como a abertura comercial, as privatizações, o Plano Real e a melhor distribuição de renda. Essas reformas dão a possibilidade de o país crescer mais. Mas falta fazer algumas coisas, diz José Alexandre Scheinkman, brasileiro e professor de economia na Universidade Princeton, nos Estados Unidos. Scheinkman e vários outros economistas ouvidos por ÉPOCA (leia nos quadros nesta reportagem) destacaram os principais entraves na corrida pelo crescimento e sugeriram algumas maneiras de superá-los. Eles se encadeiam como os elos da corrente de ferro que ilustra a capa desta edição elos que precisam ser removidos para libertar os brasileiros, em sua corrida rumo ao time dos países desenvolvidos.

AUMENTAR O NÍVEL DE INVESTIMENTO A economia de um país avança de modo equilibrado quando se apoia em duas pernas consumo e investimento. O consumo exige investimento maior para elevar a produção e a oferta de mercadorias. E o investimento permite produzir mais e atender o consumo futuro. Se uma perna avança, é fundamental que a outra avance também. Investimento demais sem consumo correspondente gera a suspeita de que os projetos, como novos prédios de escritórios, fábricas, usinas de energia e estradas, não se pagarão no futuro. Essa suspeita recorrente pesa sobre a China, onde o nível de investimento corresponde a quase 50% do PIB e os cidadãos compram pouco. O Brasil sofre do mal oposto. Os cidadãos e as empresas vêm consumindo mais, mas nossa taxa de investimento está próxima de 18% do PIB, nível inferior à faixa de 20% a 25% considerada saudável para garantir o crescimento futuro sem inflação. A taxa vem crescendo desde 2003, mas muito lentamente. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, prevê que ela passe dos 20% neste ano e atinja 24% em 2014. Ele fez a mesma previsão no ano passado, mas ela não se confirmou.O Brasil investe pouco porque o governo perdeu a capacidade de poupar, por causa do crescimento dos gastos correntes desde a Constituição de 1988, diz o economista Edmar Bacha, um dos criadores do Plano Real e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica. No setor privado, o investimento é baixo por causa da carga tributária sufocante e do alto custo do capital.

Nesse cenário, o governo tem dois papéis. Primeiro, sem tirar um tostão do bolso, ele pode criar condições atraentes para que o setor privado invista em setores em que o país é frágil, como aeroportos, portos e energia. Seria preciso formular regras claras e tirar do papel, também, as reformas tributária e trabalhista removendo, assim, bolas de ferro gigantes atadas à canela do setor privado. O primeiro passo nessa direção foi a reformulação das aposentadorias do setor público, aprovada na semana passada. É, no entanto, uma medida para o futuro. De acordo com cálculos otimistas, ela só liberará mais recursos para investimento dentro de no mínimo dez anos. A reforma trabalhista tremendamente necessária desde que a Constituição de 1988 encareceu enormemente a mão de obra brasileira continua no papel.

Segundo, o Poder Público tem de investir mais por conta própria. Isso só é possível quando o governo consegue poupar. A solução, nesse ponto, seria um aumento de eficiência, de preferência combinado a um corte de gastos (leia mais sobre isso no próximo item). Quem fez isso de modo exemplar foi a Coreia do Sul, que tem mantido seu ritmo de investimento em 27% do PIB, ano após ano. Trata-se de uma taxa alta, mas não absurda. O resultado foi a disparada dos coreanos rumo ao topo de todos os rankings internacionais de eficiência, competitividade e educação. Elevar o investimento público depende, portanto, de uma solução anterior: aumentar a poupança pública.

O GOVERNO TEM DE GASTAR MENOS E MELHOR

Além de gastar muito, o governo brasileiro gasta mal. Não consegue resultado de alta qualidade em segurança, educação ou procedimentos burocráticos. A boa pesquisa básica feita no país tem poucas consequências na criação e difusão de novas tecnologias. Com educação ruim e pouca tecnologia à disposição, o trabalhador brasileiro produz menos do que poderia. Um estudo feito em 2011 pela Universidade de West Virginia, nos Estados Unidos, colocou o Brasil em 44o lugar em eficiência do gasto público, entre 59 países pobres e em desenvolvimento (Argentina, Indonésia e México lideraram o ranking). Entre os grandes países desenvolvidos, chamam a atenção os exemplos da Alemanha e da Noruega, que têm nível de gasto público similar ao do Brasil com uma qualidade de serviços incomparavelmente melhor e se esforçam para impedir que ele cresça. Na pesquisa feita em West Virginia, o governo norueguês ficou em 1o lugar e o alemão em 8o, em eficiência de gastos, entre 24 países ricos.

Mesmo com esses indicadores, há quem ache que o Brasil é um exemplo de administração pública. Isso ocorre em parte por causa da crise global, que deteriorou as contas públicas de quase todos os países relevantes. No cenário internacional, o Brasil passou a parecer melhor, sem precisar fazer força. A dívida pública e o gasto governamental, próximos de 60% e 20% do PIB, respectivamente, inspiram inveja em outros governantes e são apresentados como benignos pelos nossos.

A mensagem Para você

Nenhum governo fará mágica. O país só crescerá com reformas estruturais Para o governo

Para acelerar o crescimento, há várias frentes de trabalho melhores que lançar pacotes de ocasião

Quando se examina o caso de perto, no entanto, a falácia do modelo fica evidente. O Brasil tem um problema peculiar: o governo pede dinheiro emprestado continuamente (isso ocorre em todos os países) e, ao fazer isso, paga ao mercado os juros mais altos do mundo (isso ocorre só por aqui). Se gastasse menos, diminuiria a pressão de alta nos juros. O governo não demonstra disposição em resolver essas coisas porque sabe que fazer reforma consome capital político, e os resultados não aparecem no curto prazo, diz Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e consultor da Tendências.

Em português claro: cortar gastos desnecessários desagradaria ao Congresso, algo que poderia ser fatal num país com o sistema de governo brasileiro, onde a adesão dos deputados é mendigada voto a voto mediante emendas. No caso específico do pibinho de 2011, debito o resultado aos excessos de 2010, que foi um ano eleitoral. Só no fim do ano, após a eleição, o governo foi tirar os estímulos criados para enfrentar a crise de 2008. Aí, desequilibrou, diz Loyola. Por gastar muito e com pouca eficiência, o governo avança no bolso dos cidadãos e das empresas, o que nos leva ao desafio seguinte.

CORTAR E SIMPLIFICAR OS IMPOSTOS

O cidadão brasileiro está certo ao estranhar como ele pode trabalhar tanto e o país crescer tão pouco. Parte da mágica do sumiço da riqueza ocorre porque 24% do que se produz no Brasil vai para o governo federal e 11% para os governos estaduais e municipais, na forma de tributos. Esse nível de impostos de 35% do PIB só encontra paralelo em países desenvolvidos onde, como todos sabem, a qualidade dos serviços públicos é infintamente melhor que no Brasil. Mesmo esses países percebem que o sistema precisa se tornar mais inteligente (e não apenas mais eficiente na cobrança, como ocorre no Brasil). Um bom sistema de impostos não incentiva algumas atividades econômicas em detrimento de outras como faz o Brasil, a pretexto de criar uma política industrial , nem consome esforço demais para seu cumprimento. O Canadá vem mostrando empenho notável nesse campo, desde antes da crise. Lá, na última década, caiu a carga de impostos para pequenas empresas e para famílias. Entre os casais com dois filhos e renda próxima da média nacional, o corte foi de 18% para 13% do ganho anual. As causas da perda de competitividade do Brasil são bem conhecidas: têm muito a ver com excesso de tributos, péssima infraestrutura, energia cara e falta de mão de obra, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e diretor da MB Associados. O que me frustra é que não vejo políticas adequadas sendo desenvolvidas para resolver os problemas. O curto prazo e o resultado do PIB no ano é que têm comandado as decisões econômicas. (Leia mais sobre os problemas e as soluções para a indústria brasileira.) O acúmulo de impostos, regras e dificuldades nos leva ao quarto grande desafio para destravar o crescimento.

MELHORAR O AMBIENTE DE NEGÓCIOS
 Para crescer, um país precisa que parte de seus cidadãos considere mais vantajoso abrir um negócio próprio do que procurar emprego ou prestar concurso público. Também é importante que as companhias já existentes, nacionais e estrangeiras, consigam prestar mais atenção aos negócios e aos clientes do que às mudanças de regras, normas, alíquotas e entidades fiscalizadoras. Por fim, o cidadão precisa conseguir fechar rapidamente um negócio que não deu certo, a fim de partir para seu projeto seguinte. Nada disso ocorre no Brasil. Tempo, dinheiro e energia que deveriam ser dedicados a criar estratégias, produtos e serviços acabam drenados por exigências burocráticas, juros altos, burocracia e falta de funcionários com boa formação.

No ranking internacional Doing Business (Fazendo Negócios), uma avaliação do ambiente em que as empresas precisam trabalhar, o Brasil não mostra avanço consistente. Em alguns quesitos, conseguimos melhorar. Mas os números sempre servem de alerta. O número médio de dias necessários para abrir uma empresa no país caiu de 152 para 119, desde 2006. No mesmo período, o México reduziu esse tempo de 58 para nove, um dos cortes mais impressionantes no mundo. É o tipo de reforma que não consome dinheiro do governo e traz retorno seguro na forma de impostos. O aumento do papel do Estado no investimento não afetou nem vai afetar essa situação (de baixo crescimento), diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e diretor da empresa de investimentos Rio Bravo. Pouco foi feito para melhorar o ambiente de negócios e para fomentar o setor privado. Políticas verticais (para setores específicos) não substituem a ausência de reformas que alcançam a todos.

Enquanto esses desafios não forem enfrentados, o país continuará crescendo de forma errática, oscilando entre a euforia de alguns anos bons e a decepção com os anos seguintes. Com as reformas pendentes, a economia não ganha o impulso necessário e precisa ser empurrada aos trancos por pacotes de ocasião do governo bons, às vezes, para decidir uma eleição, mas ineficazes para colocar o país, a longo prazo, no rumo que todos desejamos.

O pomo da discórdia - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 11/03/12


Enquanto a maioria dos petistas considerava a semana política terminada na quarta-feira à noite, como de costume, os aliados do governo prorrogaram esse período, com uma série de reuniões em que vários partidos tiveram assento. Menos, claro, o PT. Conversando sobre o cenário atual, PMDB, PTB, PR e PCdoB concluíram num encontro, na noite de quinta-feira, que é chegada a hora de dar um basta: ou a presidente Dilma Rousseff abre o governo à participação efetiva dos partidos que ajudaram na campanha ou outros tremores de maior escala farão com que a derrubada de Bernardo Figueiredo da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tenha sido apenas uma cosquinha gostosa.

Como recordar é viver, falou-se de personagens importantes na disputa eleitoral — caso do senador Eduardo Braga (PMDB-AM), que hoje não consegue ser tratado como “o cara” de Dima no seu estado. Braga foi citado como exemplo na reunião porque elegeu o sucessor no governo do Amazonas, ajudou Dilma a obter 82% dos votos, e carregou para o Senado Vanessa Graziottin, tirando Arthur Virgílio (PSDB) do calcanhar governista.

No Ceará, não foi diferente. Eunício viu o “Pimentasso” querer fritá-lo na campanha, porque todos julgavam Tasso Jereissati, do PSDB, reeleito ao Senado. Pela lógica, Eunício e José Pimentel, do PT, disputariam a segunda vaga. Urnas apuradas, Tasso estava derrotado e os dois aliados de Dilma vitoriosos, graças ao trabalho do próprio Lula que interveio para acabar com as alianças heterodoxas.

Enquanto isso, em São Paulo, o PT não fez verão. Abertas as urnas, Geraldo Alckmin venceu Aloizio Mercadante, do PT, no primeiro turno. Salvou-se apenas Marta Suplicy, eleita senadora — que agora foi retirada da disputa pela prefeitura da capital.

Por falar em São Paulo…
Passadas as recordações eleitorais, os presentes à reunião falaram do maior deslize de Dilma na seara política: desprezá-los na hora de compor o governo. “Fomos assaltados depois da eleição”, comentou um deles. Usaram essa expressão ao mencionar que os paulistas do PT, em sua maioria derrotados eleitoralmente, tomaram conta do Poder Executivo. Ocuparam sete pastas, além da Secretaria-Geral da Presidência da República. De Dilma, mesmo, sobraram apenas Giles Carriconde e as ministras palacianas. E de lá para cá, esse poder do PT de São Paulo só aumenta no governo, incluída aí a atuação do PT de São Paulo nos fundos de pensão.

Lembraram ainda que, por um ano, aliados de Dilma engoliram meio que calados essa composição benéfica ao PT paulista. A gota d’água, entretanto, foi a forma como o governo tentou remover o chumbo do pé de Fernando Haddad na campanha paulistana, com a entrega de um ministério periférico ao PRB. E o fato de vir à tona o projeto petista de conquistar mil prefeituras e mil vice-prefeituras.

A Pesca, com todo respeito, nunca foi vista como uma tecnologia de ponta pelos partidos. Além disso, seu titular, embora do PT, não era de São Paulo. Diante da constatação de que todos os cargos importantes estão nas mãos do PT paulista — e as mudanças no ministério visam justamente ajudar o PT de São Paulo e em São Paulo — os aliados concluíram que é hora de emparedar Dilma: se ela quiser resolver um problema do PT de São Paulo, ou mesmo conquistar aliados para Haddad usando o governo, terá que mexer nos ministérios a cargo dos petistas paulistas e propor uma coalizão de verdade. Ou ficará apenas com o PT.

Por falar em coalizão…
Os aliados não querem nem de longe ver repetida a cena em que José Sarney, na sala com Dilma e Gleisi Hoffmann, viu entrar Ideli Salvatti. A ministra de Relações Institucionais, sem perceber a presença dele, chegou dizendo que Sarney queria confusão indicando um sujeito para a Valec. Sarney escutou. Foi um mal estar geral que está há 60 dias no ar, conforme relatado na reunião da semana passada entre os aliados.

Na conversa, falou-se ainda do incômodo dos partidos da pseudo coalizão com a maneira de Dilma tomar decisões e tocar projetos. Sem dividir louros, cargos importantes ou propostas. O cadastro do Bolsa Família é guardado a sete chaves pelos petistas. Desconfiam os aliados para uso eleitoral. Na troca de comando da Petrobras, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, soube pela internet. O mesmo ocorreu na Agência Nacional do Petróleo, onde a escolha de Magda Chambriard, para direção-geral se deu rapidamente, de forma a evitar que, diante da crise nos partidos, Lobão pudesse fazer o sucessor de Haroldo Lima, do PCdoB, que, aliás, também vem perdendo terreno.

Como num casamento que vai mal, os partidos são sempre os últimos a saber das decisões de governo e, quando são chamados, é apenas para resolver um problema do PT ou conhecer o projeto como pacote fechado. Por isso, a ordem agora é forçar a porta. Sob pena de o PT ficar sozinho. Resta saber se terão bala na agulha para levar esse xeque mate ao pé da letra. Eles apostam que, com o PIB de 2,7%, Dilma abre a guarda. Afinal, eles foram fiéis na eleição. Agora, querem usufruir do regime de comunhão de bens. Se não for assim, novas traições virão.

GOSTOSA


Uma outra dor de cabeça - JOÃO BOSCO RABELLO


O Estado de S.Paulo - 11/03/12


Virou uma dor de cabeça para o governo a possibilidade de adiamento do julgamento do mensalão. Não pelo benefício aos réus e ao PT, claro, mas pela perspectiva de acabar no colo da presidente Dilma Rousseff um fator decisivo no caso: a nomeação de dois novos juízes, já que a prorrogação não permitiria mais a participação, no processo, dos ministros Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso.

Ambos completam a idade limite de 70 anos para a aposentadoria em 2012 - Peluso em agosto e Britto, que o substituirá na presidência da Corte a partir de abril, terá um mandato de apenas seis meses e luta para que o julgamento ocorra na sua gestão, admitindo até a ideia de realizá-lo no recesso de julho.

O adiamento, como defende o ministro Ricardo Lewandowski, revisor do processo, fará com que o julgamento ocorra sob o comando de Joaquim Barbosa, relator do caso e sucessor de Britto pela ordem sequencial de presidentes da Corte.

Barbosa acumularia as funções de presidente e relator, o pior dos mundos para o PT, que aumentará a pressão sob a presidente Dilma para que os substitutos de Britto e Peluso sejam favoráveis ao partido. Mesmo não atendida, por ilegítima, a pressão empurra a presidente para dentro do julgamento, impondo-lhe sequelas políticas qualquer que seja o desfecho.

Nesse contexto, restaria ao governo estimular a aprovação da chamada PEC da Bengala - a emenda que estende para os 75 anos a idade limite para a aposentadoria dos ministros, já aprovada no Senado, que manteria o quadro atual do STF. Teria a oposição do PT, cuja estratégia é levar o processo à prescrição.

No cravo e na ferradura

A viagem de Aécio Neves nesta semana a Washington, atrás de um empréstimo do BID para Minas, reforça as especulações de que trabalha com um olho na Presidência, em 2014, e outro no governo mineiro. Pela tese, se Dilma Rousseff mantiver a alta popularidade de hoje, num cenário desfavorável ao PSDB, e sem sucessor confiável para o atual governador, Antonio Anastasia, ele adiaria os seus planos presidenciais para 2018.

Vitrine indiscreta

O presidente do Senado, José Sarney, telefonou para os deputados do PT Cândido Vaccarezza e João Paulo Cunha reclamando da indicação de seu desafeto maranhense Domingos Dutra (PT) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Sarney não gostou da vitrine que o PT garantiu, assim, ao seu adversário em ano eleitoral. Dutra agora dispõe de dois palanques para criticar ações dos Sarney no Maranhão - a tribuna e a comissão. E não pretende desperdiçá-las, segundo quem o conhece.

PP foi na onda

O PP também votou contra a indicação de Bernardo Figueiredo para a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Seu ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, é chamado de "rainha da Inglaterra" pelos próprios pares, por não conseguir nomear ninguém na própria pasta. Mesma insatisfação do PMDB, que para assumir Minas e Energia e Previdência, engoliu secretários executivos do PT.

Jogo de cena

Governo e PR continuam o teatro iniciado na demissão do ministro Alfredo Nascimento, dos Transportes. O primeiro convida o senador Blairo Maggi (MT) para o Ministério dos Transportes, sabendo que ele o recusaria pela 3ª vez. O segundo reunirá seus 36 deputados e 7 senadores, dia 20, teoricamente para decidir se fica na base aliada. O PR tem certeza de que o convite a Blairo foi um álibi premeditado do Planalto.

É preciso mudar - AMIR KHAIR

O ESTADÃO - 11/03/12

A divulgação do medíocre crescimento de 2011 veio confirmar que algo esteve errado na condução da política econômica. Parece que o governo não esperava esse péssimo resultado. Há menos de um mês, o ministro da Fazenda ainda falava em estimativa de crescimento de 3%. Deu o que a maioria das análises apontava: 2,7%. Crescimento menor do que nos Estados Unidos (2,8%), que se defrontam com problemas econômicos mais complicados do que nós.

1. Justificativas. Algumas análises procuram a justificativa para esse fracasso na ineficiência e no excesso de despesas do governo federal, que tem de operar com carga tributária e Selic elevadas, pois, como tem déficit nas suas contas, precisa ficar à mercê do mercado para comprar seus títulos, que precisam ser bem remunerados. Assim, encontra-se uma justificativa para o BC ofertar ao mercado uma Selic bem acima do nível internacional. O paradoxo dessas análises é que isso acaba elevando a despesa do governo, via aumento dos juros. É um tiro no pé.

O argumento da ineficiência administrativa tem justificativa, pois há desvios de recursos, a cessão de cargos importantes a políticos despreparados e/ou que visam desviar recursos a seus partidos.

Mas a causa estrutural, que gera a ineficiência administrativa, reside no cipoal legislativo a que tem de se submeter o setor público (União, Estados e municípios), independentemente de quem está no poder. Administrar no setor público é mais complexo burocraticamente do que no setor privado devido ao conjunto de leis, decretos e normas para controle do recurso público.

Mas a gastança maior não está na ineficiência da gestão, mas no uso indevido do recurso público e, como venho denunciando há anos, a pior e mais maléfica gastança é no pagamento de juros devido a elevada e injustificada Selic. Já foi pior: o pico ocorreu na gestão Armínio Fraga, quando atingiu incríveis 45% em março de 1999; com FHC a média bateu em 21,5%; com Lula ficou em 14,8% e no ano passado foi 11,7%. Dilma Rousseff quer 9% neste ano, que ainda é alto.

Mas, na questão do crescimento econômico, o que importa não é a Selic, mas a taxa de juro ao tomador, praticada pelos bancos. Essa é a taxa de juro da economia, e não a Selic. É ela que regula o crescimento econômico.

Na minha avaliação, a economia patinou em 2011 e não cresce mais não é por causa do investimento insuficiente ou nas despesas consideradas por alguns como elevada no governo federal, mas sim pela prática abusiva e tolerada pelo governo na taxa de juro ao tomador (pessoa ou empresa). A gravidade do problema invade até as instituições oficiais de crédito, como o Banco do Brasil e a Caixa, que quase não se distinguem dos bancos privados, evidenciando o pouco caso do governo com a questão.

O que brecou o crescimento foram exclusivamente as medidas macroprudenciais implantadas no início de 2011, para reduzir o consumo e combater a inflação, cuja origem era fundamentalmente externa, por conta dos preços elevados das commodities, que geraram inflação em todos os países.

O governo errou ao usar essas medidas, que encareceram instantaneamente o crédito, arrefecendo o consumo. A produção encolheu, pois as perspectivas de consumo não eram as desejadas. E, com o encolhimento da produção, caiu o investimento das empresas, responsáveis por 80% a 90% do investimento no País. Pesa pouco o investimento do governo federal; o que vale focar é o investimento das empresas, que só deslancham ante perspectiva de crescimento do consumo.

O governo viu com atraso o impacto das medidas macroprudenciais, talvez influenciado pelo mercado financeiro, que pôs em dúvida a eficácia dessas medidas. Quando as retirou, o estrago já estava feito. Daí o pífio crescimento em 2011, com repercussões para o primeiro trimestre deste ano.

2. Mudança. O governo, em resposta ao mau desempenho econômico de 2011, anunciou que vai adotar medidas fortes para ativar a economia. Entre elas, nova injeção de R$ 30 bilhões para o BNDES, à custa de aumento do endividamento atrelado à Selic. Isso já deveria ter acabado faz tempo. Vai elevar o déficit fiscal, aumentar a dívida bruta e transferir recursos do contribuinte para as grandes empresas.

Acho que existem medidas mais eficazes para ativar a economia sem endividar ainda mais o governo federal. Entre elas, vale destacar a queda da taxa de juro ao tomador. Essa, como venho afirmando em vários artigos, é de longe a maior anomalia macroeconômica suportada pelo País. Ela subtrai poder aquisitivo do consumidor que compra no crediário. É o principal freio ao crescimento. Na série histórica, desde 2000, há vários meses em que a Selic é menor que em outros países, mas não há um mês (!) sequer que algum país tenha ultrapassado nossa monumental taxa de juro ao consumo. Nessa série histórica, os países emergentes praticam em média a taxa de 10% ao ano e os países desenvolvidos 3%. Aqui, em janeiro, emplacou 45%! Esse é o freio.

Para viabilizar a queda dessa taxa de juro, é preciso ampliar a concorrência bancária com três medidas: a) reduzir as taxas de juros do BB e da Caixa; b) estabelecer política diferenciada de depósito compulsório dos bancos no BC - quanto mais baixa a taxa de juro, menor o porcentual de compulsório - e; c) acabar no BC com a injustificada remuneração pela Selic das sobras de caixa diários dos bancos. O efeito dessas medidas é a elevação do poder aquisitivo nas compras pelo crediário e o alívio no capital de giro para a micro, pequena e média empresa.

Outra medida é elevar a base monetária, injetando dinheiro na economia. O déficit fiscal do governo federal é coberto pela emissão monetária e de títulos, sendo a maior parte em títulos, que são onerados pela Selic. O que se propõe é a inversão de papéis, com emissão monetária prevalecendo. Isso alivia a dívida, reduz os juros e desvaloriza o câmbio, contribuindo para enfrentar a derrama de dólares, euros, ienes e libras dos países desenvolvidos.

Uma outra medida é manter o ritmo de queda de 0,75 ponto porcentual na Selic até se situar no nível de 6%, praticado pelos emergentes. A economia de recursos via elevação da base monetária e redução da Selic pode ser usada para aliviar o peso tributário sobre o consumo, o que contribui para a redução da inflação e eleva o poder competitivo das empresas.

Essas são apenas algumas medidas de rápida implementação, que poderão substituir a política conta-gotas de estímulo a alguns setores via empréstimos do BNDES e reduções tópicas do IPI e INSS. É preciso mudar a política econômica e, como principal medida, reduzir o juro, para não repetir o mau resultado de 2011.

A crise europeia longe do fim - MOHAMED A. EL-ERIAN

O ESTADÃO - 11/03/12

A sensação de alívio na Europa parece estar em toda parte, das altas nos mercados regionais e globais de ações e dívida soberana aos pronunciamentos cada vez mais confiantes de autoridades europeias de que seu continente já teria superado o pior da crise e estaria agora entrando em mares menos turbulentos. Mas será que tudo isso é real e durável? Será que já é hora de países muito mais fortes - como o Brasil - começarem a se preocupar bem menos com os ventos contrários vindos da Europa? Devemos sem dúvida torcer para que isso seja verdade, mas é importante não contar com esse fato em nossos planos. Ainda é cedo demais para relaxar.

Primeiro, as boas notícias. Quatro fatores genuínos contribuíram para inspirar mais calma - ao menos por enquanto - na zona do euro e, por conseguinte, na economia global como um todo.

Para começar, o Banco Central Europeu acionou um poderoso instrumento sob a forma da Operação de Refinanciamento de Longo Prazo (LTRO, na sigla em inglês). Esse dispositivo permitiu que os bancos trocassem por dinheiro um grande conjunto de ativos líquidos e ilíquidos, e permitiu que o fizessem ao custo extraordinariamente baixo de 1%, e com o prazo anormalmente longo de três anos.

Não surpreende que, em apenas duas operações da LTRO, os bancos tenham tomado emprestado quase 1 trilhão por meio desse dispositivo. E, embora não saibamos ao certo como o dinheiro foi empregado, parece que uma parte significativa foi usada para melhorar a posição dos bancos em termos de liquidez e prazos.

Isso foi fundamental para a redução da probabilidade da eclosão de uma crise bancária na Europa, acompanhada por subsequentes perturbações na atividade econômica global e no mercado financeiro mundial. Parece também que parte do dinheiro foi usada para comprar títulos de dívida soberana emitidos pelas economias europeias periféricas, o que ajudou a acalmar esses importantes mercados.

Em segundo lugar, as partes envolvidas que detêm a chave para solucionar a crise na Grécia - de longe o mais enfermo dentre os membros da zona do euro - conseguiram chegar a um acordo, ainda que aos trancos e barrancos. Isso depois de várias rodadas de negociações, múltiplas ameaças de colapsos turbulentos e trocas de acusações particularmente perturbadoras. Além da fórmula habitual tão conhecida por muitos países latino-americanos - captar mais dinheiro de credores oficiais, como o FMI, em troca da promessa de mais medidas de austeridade por parte do governo grego -, esse novo acordo inclui um alívio para a dívida sob a forma de uma significativa perda para os detentores privados de títulos da dívida grega.

Assim, a Grécia está agora envolvida na primeira de uma série de transições fundamentais que foi instrumental no fim dos anos 80 e começo dos 90 para ajudar a América Latina a emergir de sua 'década perdida'.

Em terceiro, são cada vez mais numerosas as provas de que os novos governos da Itália e da Espanha demonstram muito mais seriedade diante da tarefa de reformar suas economias. Levando-se em consideração as dimensões do mercado desses países (tomados em conjunto, seu PIB é 12 vezes maior do que o grego), as melhorias conquistadas neles produzem efeitos benéficos que se multiplicam pela zona do euro. Além disso, sua dinâmica interna - aquilo que os economistas chamam de 'equilíbrios múltiplos' e de 'dependência do caminho trilhado' (path dependency) - lembra a situação que o Brasil vivenciou em 2001-03: um passo na direção certa aumenta a probabilidade de o passo seguinte produzir um efeito ainda melhor, enquanto que um desenvolvimento negativo aumenta a probabilidade de uma deterioração adicional.

Em quarto, a Europa foi ajudada por desenvolvimentos no ambiente econômico global - especialmente a gradual recuperação econômica dos Estados Unidos (que continuam em situação frágil) e os indícios da disposição da China de evitar uma desaceleração abrupta da sua economia.

Essas melhorias são reais. Devem ser bem recebidas por todos aqueles que querem ver a estabilização das economias avançadas e o seu rápido retorno ao caminho do crescimento mais rápido, maior criação de empregos e menor desigualdade de renda e riqueza. Mas, ao mesmo tempo, é cedo demais para abrir a champanhe, pois a Europa ainda tem muito a fazer antes de garantir melhorias duráveis e sustentáveis na sua situação.

A análise realizada pela Pimco aponta para múltiplos riscos naquele que continua a ser um panorama 'de incerteza incomum' para a economia global, como disse Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano). De fato, se os governos se tornarem complacentes, três dos quatro fatores responsáveis pela relativa calma acabariam se mostrando tanto temporários como reversíveis.

As injeções de liquidez proporcionadas pelo BCE podem aliviar os problemas do setor bancário no curto prazo, mas, por si mesmas, serão insuficientes para superar profundos obstáculos à solvência e ao crescimento. O acordo grego pode ruir nas próximas semanas e meses, já que reflete um difícil compromisso entre partes que carecem de confiança e convicção na abordagem geral. E as melhorias no ambiente econômico global ainda são muito dependentes de fatores transitórios que, como ocorreu no início de 2010 e de 2011, podem ser vitimados pela persistente rigidez estrutural e por um alto grau de disfuncionalidade política nas economias avançadas, para não mencionar os pontos geopolíticos inflamáveis em outras regiões (como Irã e Síria).

É claro que ainda é cedo demais para que a Europa possa declarar vitória; e ainda é cedo para que países como o Brasil deixem de lado a preocupação com a turbulência vinda da Europa. Afinal, a frágil zona do euro ainda é a maior zona econômica do mundo; seus bancos ainda têm grandes redes globais; e seu destino tem impacto no apetite geral pelo risco que impulsiona os investidores em direção a ativos físicos e financeiros em boa parte do mundo.

Nossa análise na Pimco sugere que países mais fortes, como o Brasil, só devem relaxar quando observarem as seguintes três mudanças, que devem ocorrer de maneira significativa.

1. A zona do euro deve complementar logo sua poderosa arma de liquidez com políticas que atendam ao problema fundamental de um grande número de seus países: crescimento muito pequeno e dívida muito grande. Inevitavelmente, isso envolverá difíceis adaptações nas políticas públicas e - ainda mais importante - delicadas deliberações a respeito da configuração sustentável da zona do euro, incluindo a possibilidade de reduzir o número de seus membros para formar uma união econômica mais robusta e menos imperfeita.

2. Depois de mais de dois anos de recorrentes decepções e uma crise econômica cada vez mais acentuada, a Grécia (e também Portugal) precisa implementar nas políticas públicas abordagem capaz de convencer os cidadãos de que todos os sacrifícios de austeridade serão correspondidos por uma probabilidade expressiva de melhorias no médio prazo.

3. Por fim, China e EUA precisam atuar mais para remover os obstáculos estruturais que impedem os dois países de atingir alto crescimento econômico sem causar grandes desequilíbrios globais.

É improvável que tais mudanças ocorram imediata e simultaneamente. Da mesma maneira, muitas das circunstâncias atuais das economias mais frágeis da Europa lembram mais a Argentina de 2001 do que o Brasil do fim de 2002. O marco crítico ainda não foi superado e, portanto, ainda existe uma probabilidade desconfortavelmente alta de a recente calmaria europeia se tornar vítima de outra rodada de turbulência.

Por mais que todos nós desejemos desesperadamente que a Europa se afaste cada vez mais das recorrentes turbulências, avançando no sentido do crescimento e da estabilidade financeira, o continente ainda não superou o problema. Ainda é significativo o risco de a Europa voltar a emitir ondas com potencial de criar turbulência e deslocamentos. Dessa forma, devemos manter a esperança sem nunca relaxar nem cair no engano da complacência.

Segurança jurídica - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 11/03/12


É mais importante do que à primeira vista possa parecer a decisão do Supremo Tribunal Federal que obriga o Congresso a seguir o que diz a Constituição sobre o rito de tramitação das medidas provisórias editadas pelo Executivo.

Altera tão profundamente procedimentos desviantes, atinge tão decisivamente práticas ilegais consolidadas ao longo de mais de 20 anos que ainda não é possível dimensionar a extensão da mudança.

Inclusive porque Planalto e Parlamento não vão se conformar com a chamada aos costumes que levaram do Judiciário e logo buscarão um atalho para continuar no desfrute do abuso no uso das MPs.

Sistemática em vigor desde a promulgação da Constituinte de 1988, que deu ao Executivo um instrumento para legislar em casos de urgência e relevância para a nação e conferiu ao Congresso a prerrogativa de aceitar ou recusar receber as medidas provisórias mediante o exame do pré-requisito legal.

Tudo muito claro. Mas não necessariamente simples como sugere a obrigatoriedade de todos, ainda mais os Poderes da República, submeterem-se à regra da Carta.

Por submissão ao Executivo, o Legislativo abriu mão da função constitucional e achou mais fácil burlar a norma para atender às necessidades do Planalto enquanto ao mesmo tempo salvava as aparências esperneando contra o excesso de MPs.

O Supremo declarou inconstitucional a medida que criou o Instituto Chico Mendes por não ter sido examinada em comissão especial como manda o artigo 62, parágrafo 9.º, mas conforme "desmandava" uma resolução do Congresso dispensando a exigência.

Derrubada a gambiarra, viu-se que 560 atos decorrentes de medidas provisórias e que, já em vigor, perderiam a validade. O STF, então, refez a decisão e determinou que apenas daqui em diante suas excelências fizessem o obséquio de se manter nas balizas da lei.

Levou em conta a realidade, mas nem por isso deixou de ser acusado de patrocinar a "insegurança jurídica". Acusação esta recorrente, semelhante a outra denominada "judicialização da política" também usada quando o tribunal contraria interesses que se imaginavam acomodados.

Aos fatos: insegurança a Justiça criaria se levasse a ferro e fogo a letra da lei, pois mediante provocação todas as medidas provisórias aprovadas sob a égide da ilegalidade poderiam ser contestadas.

Ademais, insegurança jurídica quem cria é o Congresso quando não cumpre a Constituição.

Modos. Na versão palaciana a presidente "decidiu" não retaliar nem reclamar da rebeldia dos partidos aliados.

Não foi uma decisão, mas uma rendição à realidade: se Dilma gosta de gritar, o Congresso mostrou-se disposto a berrar. Dado o prejuízo geral da barulheira, daqui em diante é provável que ambos falem mais baixo.

Por quanto tempo, vai depender das circunstâncias e do modo de operação governamental. A começar por substituir as ordens de "governo não aceita" por indicações de que "o governo prefere" seja feito assim ou assado.

À sombra. Por ora, os planos do PSDB de investir na cisão da base governista para articular uma base de apoio à disputa presidencial de 2014 seguem conforme a aposta de que mais dia menos dia a relação se desgastaria.

Se de um lado pode dar certo, de outro a estratégia evidencia opção preferencial pelo jogo de bastidor em detrimento da construção de um discurso ativo para a sociedade. Considerando a natureza inconstante das marés, a oposição corre o risco de, sem traços nítidos, não ser reconhecida pelo eleitorado na hora H.

Antes assim. Antonio Palocci nega participação na campanha de Fernando Haddad ou em qualquer outra. Diz isso em desmentido à notícia de que seria o abre-alas "informal" do comitê financeiro do candidato do PT à Prefeitura de São Paulo.

Cristo despejado - HÉLIO SCHWARTSMAN


FOLHA DE SP - 11/03/12


SÃO PAULO - O assunto é menor, mas tem elevado valor simbólico. Nesta semana, a Justiça gaúcha determinou a retirada dos crucifixos de todas as suas dependências. Como bom ateu, sou favorável à medida. Entendo, porém, que alguns cristãos se sintam frustrados. Vou tentar mostrar que a laicidade do Estado interessa mais a eles do que a mim.

Um dos argumentos mais populares entre os defensores da permanência da cruz é o de que a maioria da população é cristã. Bem, a maior parte dos brasileiros também é flamenguista ou corintiana. A ninguém, contudo, ocorreria ornar os tribunais com bandeiras e flâmulas desses clubes. Maiorias não bastam para definir a decoração de paredes públicas.

De resto, nem todos os cristãos são entusiastas do crucifixo. Algumas denominações protestantes o consideram um caso acabado de idolatria, pecado cuja prática meus ancestrais judeus costumavam punir com o apedrejamento até a morte.

A vontade da maior parte dos cidadãos é, por certo, um elemento importante da democracia, mas não é absoluto nem incondicional. Um país só é democrático quando defende suas minorias da tirania das massas.

E o direito de todos a espaços públicos livres de proselitismo religioso deveria ser autoevidente. Ao contrário do que muitos podem pensar, isso importa mais para o crente membro de grupo ou seita minoritários do que para ateus e agnósticos.

Nós que não acreditamos num ser superior ou que julgam essa uma questão indecidível, tendemos a considerar imagens religiosas como uma manifestação supersticiosa, uma excentricidade, no máximo. Já um judeu ou muçulmano praticantes podem ver na figura do Cristo crucificado um símbolo de opressão e morte. Não se pode dizer que não tenham razões históricas para pensar assim.
Exceto para os apreciadores de teocracias de partido único, a laicidade do Estado é a melhor garantia da liberdade religiosa.

Tsunamis, guerra cambial e a indústria - AFFONSO CELSO PASTORE


O Estado de S.Paulo - 11/03/12


Na metade de 2011, havia o temor de que a economia mundial entraria em nova e profunda recessão. O epicentro, dessa vez, estava na Europa, e não nos Estados Unidos. Porém, da mesma forma como ocorreu em 2008, a sua origem seria o colapso do crédito provocado por uma nova crise bancária. Felizmente, o BCE aprendeu com a experiência dos EUA, e por meio da "versão europeia" do Tarp - o LTRO -, atulhou o caixa dos bancos com uma massa enorme de dinheiro barato por prazo longo, tirando o oxigênio da crise bancária que se armava.

Boa parte dos recursos que os bancos tomaram emprestado do BCE fica depositado sob a forma de reservas no próprio BCE, o que inibe a corrida bancária. Outra parte eleva os empréstimos às empresas, diminuindo a recessão. Um terceiro efeito é o aumento moderado da procura por bônus de dívida soberana dos países da área do euro, o que torna menos perversa a dinâmica de suas dívidas. A onda recente de valorização do real não vem de um "tsunami monetário" provocado pelos bancos, que estariam "inundando" o Brasil com esse excesso de caixa. Ela é uma consequência benéfica da ação do BCE, que nos livrou de uma forte desaceleração da economia mundial, e que traz como subproduto a queda da aversão ao risco, que estimula os investidores a buscar ativos em mercados emergentes com melhor desempenho.

Quando cai a aversão ao risco, crescem os ingressos de capitais, valorizando o real. Há uma elevada correlação positiva entre o VIX (índice de volatilidade) e os bônus de alto risco, de um lado, e a taxa cambial medida em reais por dólar, do outro. Quando o real se depreciou, em 2008 e, em menor escala, no terceiro trimestre de 2011, acompanhou de perto os aumentos do VIX e dos spreads dos bônus de alto risco. A recente valorização do real ocorreu paralelamente à queda dessas duas medidas de aversão ao risco. Nos próximos meses, a aversão mundial ao risco muito provavelmente continuará baixa, o que significa a continuidade de forças valorizando o real.

Quais são as consequências desse movimento sobre a economia brasileira? O Brasil é uma economia relativamente fechada ao comércio internacional, mas isso se deve somente ao tamanho do setor de serviços, que abrange pouco mais de 65% do PIB e que praticamente não exporta nem importa. A indústria representa apenas 27% do PIB, mas é um setor suficientemente aberto para que os seus preços, no mercado interno, sejam em grande parte condicionados pelos preços em dólares no mercado internacional, convertidos em reais à taxa cambial vigente.

Quando o governo eleva os estímulos monetários e fiscais para expandir a demanda doméstica, produz efeitos diferenciados sobre esses dois setores. Como o setor de serviços opera fechado ao comércio internacional, consegue repassar os aumentos de custo para os preços domésticos, mas o setor industrial não tem essa liberdade, o que faz com que o aumento da demanda doméstica, em grande parte, vaze para o exterior na forma de elevação das importações líquidas. O PIB não cresce na medida esperada pelo governo, porque a produção industrial não consegue se elevar devido ao aumento das importações líquidas.

Esse movimento tem sido claro nos últimos dois anos. Assistimos a uma "inflação de serviços" muito elevada, com as taxas de 12 meses desses preços no IPCA mantendo-se acima de 9%, mas não há pressões inflacionárias significativas nem nos preços por atacado dos produtos industriais, nem nos bens de consumo incluídos no IPCA, principalmente os bens duráveis. No entanto, há uma forte elevação das importações líquidas. Medidas a preços correntes, elas atingiram, em 2011, perto de 1,5% do PIB, mas medida a preços constantes do ano 2000, o que retira o efeito dos ganhos de relações de troca, as importações líquidas atingiram 6,5% em 2011, tendo saído de perto de 1% do PIB, em 2009. Entre 2009 e 2011, as importações líquidas medidas a preços constantes do ano 2000 cresceram perto de cinco pontos porcentuais do PIB, e como a agricultura se defendeu com a elevação dos preços de commodities, grande parte desse aumento foi suportado pela indústria. O governo vem estimulando o consumo, com a demanda total doméstica elevando-se acima do PIB, mas o setor industrial não cresce, em grande parte porque há o vazamento na forma de elevação das importações líquidas.

Em um instigante trabalho apresentado no seminário de conjuntura da FGV, Regis Bonelli estimou, com base nas contas nacionais, o custo unitário da mão de obra. Ele nada mais é do que o salário convertido em moeda estrangeira, dividido pela produtividade da mão de obra. Os resultados mostram que, entre 2003 e 2009, o custo unitário da mão de obra no Brasil cresceu 90%, com o maior aumento ocorrendo na indústria. O grosso dessa elevação se deve à valorização do real, mas é notável que praticamente não houve nenhum aumento de produtividade da mão de obra na indústria. A agricultura teve forte crescimento de produtividade, enquanto que o setor de serviços foi pouco afetado, porque transaciona pouco no mercado internacional e consegue repassar os aumentos para os preços domésticos.

Há tempos sabemos que teríamos de nos preparar para conviver com uma moeda mais forte. Quando o Brasil era prisioneiro da indisciplina fiscal, com uma inflação alta e o País não tinha reservas, não conseguia atrair capitais, e o câmbio era depreciado. Entre 1994 e o ano 2000, por exemplo, os dados de Bonelli mostram um custo unitário da mão de obra em torno da metade do valor de hoje, o que significa um país muito mais competitivo. Mas isso não se traduziu em maior crescimento. Ao contrário, nesse período, caiu a produtividade total dos fatores, e o Brasil conseguiu apenas taxas de investimento muito baixas, próximas de 16% do PIB, o que levou a um crescimento do PIB potencial igual ou inferior a 3% ao ano.

O paradoxo é que, usando a métrica do custo unitário da mão de obra, éramos, naquele período, muito mais competitivos do que hoje, porém crescíamos muito menos. A razão é simples: os desajustes macroeconômicos impediam o crescimento, e o câmbio depreciado não representava mais do que uma ilusão de competitividade.

Era fatal que, com um quadro macroeconômico mais estável, os capitais seriam atraídos, o que é positivo para um país cujas poupanças domésticas são insuficientes para financiar taxas mais elevadas de investimento, e que necessita da absorção de poupanças externas na forma de déficits nas contas correntes. Enquanto realizávamos as mudanças no regime de política macroeconômica que restituíram a nossa capacidade de crescer, deveríamos ter prosseguido no programa de reformas estruturais e microeconômicas iniciadas no governo FHC e continuadas no primeiro mandato do presidente Lula. Falamos de mudanças na qualidade da política fiscal, com a redução da tributação sobre as empresas, de redução gradual dos gastos correntes do governo e o correspondente aumento nos gastos em infraestrutura, simultaneamente elevando a eficiência produtiva e a poupança do setor público.

Mas o governo resolveu privilegiar o consumo, em detrimento da poupança das famílias, e forçar o aumento dos gastos correntes e das transferências, com o aumento da sua popularidade ocorrendo à custa da queda da poupança do setor público.

A oportunidade das reformas foi perdida, e o risco agora é de gerar uma nova rodada de aumento do protecionismo e de ações atabalhoadas na área cambial. Governos que não têm o diagnóstico correto adotam qualquer diagnóstico. Em teoria, o País pode ser bem mais agressivo no controle cambial, ressuscitando o Fundo de Riqueza Soberana e taxando investimentos estrangeiros diretos, mas não pode se esquecer de que continua dependente da absorção de poupanças externas para financiar os investimentos, tanto quanto depende dos investidores externos para ampliar o mercado de capitais.

Pode, também, enveredar um grau maior de protecionismo. Afinal, há vizinhos que optaram por esse caminho, e um país que já teve a malfadada experiência da Lei de Informática, e que, para garantir um elevado índice de conteúdo nacional, produziu "carroças" em vez de automóveis, pode perfeitamente mostrar que é capaz de produzir "tablets", ainda que ao dobro do preço internacional.

Mas não estaremos, com isso, melhorando nem a produtividade nem a capacidade de crescer.

Puxão de orelhas - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 11/03/12
Os ministros e secretários-executivos das pastas que têm orçamento para execução de obras e programas estão sendo chamados ao gabinete da ministra Ideli Salvatti (Relações Institucionais). Eles estão sendo advertidos que não serão mais toleradas decisões de liberação e empenho de recursos que não atendam aos acordos políticos firmados pela presidente Dilma com os partidos aliados e, até mesmo, com os partidos de oposição.

O relato da desobediência
No final do mês passado, a ministra Ideli Salvatti entrou no gabinete da presidente Dilma com uma listagem das emendas parlamentares empenhadas no final do ano. Numa mão ela tinha a lista política do Planalto, que previa até mesmo a liberação de 40% das emendas da oposição. Na outra, a lista do que os ministros fizeram. Os dados mostravam que apenas 60% das emendas dos aliados, avalizadas pelo Planalto, foram atendidas. Consta que a presidente Dilma reagiu com energia, na linha: Isso não pode acontecer. O que foi acertado tem que ser cumprido. Chame um a um aqui e diga que eles terão que fazer o determinado.

"O pior dos mundos é o radicalismo. O melhor é o do diálogo e o das concessões de parte a parte” 
— Henrique Alves, líder do PMDB (ES) na Câmara, sobre a ameaça do governo de não votar o Código Florestal

FOGO CRUZADO. A ministra Izabella Teixeira (Meio Ambiente), na foto, vive situação delicada na negociação do Código Florestal. Na Câmara, os ruralistas não aceitam o texto do Senado, defendido por ela e pelo governo. Acontece que Izabella também é contestada na ala dos ambientalistas mais radicais, liderada pela ex-ministra Marina Silva. Esses verdes não consideram satisfatória nem mesmo a proposta aprovada pelos senadores.

Primeiros da lista
A presidente Dilma fará esta semana sua primeira reunião com líderes de partidos aliados. Serão chamados para aparar arestas os líderes do principal aliado, o PMDB: o senador Renan Calheiros (AL) e o deputado Henrique Alves (RN)

É diferente?
Os deputados do PMDB fazem força para se diferenciar dos senadores do partido. Um deles argumenta: os deputados lançaram um documento construtivo de alerta ao governo e os senadores derrotaram o Planalto na votação da ANTT.

Os verdes sem Marina
O PV tem conversado com o PSDB em São Paulo e sugeriu o nome do secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Jorge, para vice de José Serra na disputa pela prefeitura. Mas os verdes avaliam ainda a conveniência de apoiar Fernando Haddad (PT), com o intuito de se aproximar do governo federal. Desde que a ex-senador Marina Silva saiu do PV, o partido deixou a oposição e adotou uma postura "independente".

Sinal vermelho
A Associação Brasileira de Resorts apresentou ao ministro Gastão Vieira (Turismo) relatório mostrando que está com taxa de ocupação estagnada em 50% há quatro anos. Quer revisão da carga tributária e da legislação trabalhista.

Na balança
O ministro está discutindo com a equipe econômica do governo a redução da carga tributária para o turismo. Itens como alimentos e bebidas custam mais para os resorts brasileiros em relação a outros países, como o México.

OS DEPUTADOS tucanos Otávio Leite (RJ) e Wanderley Macris (SP) batem à porta do vice da CNBB, Dom Raymundo Damasceno. Querem que a entidade entre na batalha para proibir a venda de bebidas alcóolicas nos estádios da Copa de 14.

COM A VOLTA do ex-ministro Afonso Florence para a Câmara, o deputado Sérgio Carneiro (PT-BA), que é suplente, vai para casa antes de apresentar seu relatório sobre a revisão do Código de Processo Civil.

O EX-MINISTRO Waldir Pires (PT) vai disputar uma vaga de vereador em Salvador nas eleições. Ele deixou o Ministério da Defesa em meio ao caos aéreo.

Proust e Big Bertha - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

O ESTADÃO - 11/03/12


O grande canhão construído pelos alemães tinha o apelido da mulher de Gustav Krupp


O grande canhão construído pelos alemães para arrasar fortificações inimigas na I Guerra Mundial era chamado de Big Bertha e devia seu apelido à mulher de Gustav Krupp, chefe da indústria que o produzira. Não, presume-se, porque Bertha Krupp parecesse um canhão. Nenhuma arma construída até então tinha o mesmo poder, e o Big Bertha fez estragos inéditos antes de ser neutralizado pelos aliados.

Uma versão modificada do Big Bertha, com um alcance então inimaginável de 130 quilômetros, foi usada pelos alemães para bombardear Paris em 1918, quase no fim da Grande Guerra. Não fez muitos estragos, pelo menos se comparados ao rastro de entulhos que tinha deixado na Bélgica e em outros lugares. Mas fez o bastante para enervar a cidade.

Em 1918 Marcel Proust estaria burilando o texto de À Sombra das Raparigas em Flor, parte da sua obra Em Busca do Tempo Perdido. Do seu apartamento no Boulevard Haussmann ele ouviria os estrondos do bombardeio? Seu apartamento estaria no raio de alcance do grande canhão? Ou seja, havia a possibilidade do “Big Bertha” intrometer-se no trabalho do escritor como um personagem inesperado e transformar em cinzas o trabalho, o apartamento e o próprio Proust?

Há referências passageiras à guerra no Em Busca do Tempo Perdido mas não se fica sabendo o efeito que o bombardeio de Paris teve sobre o autor e seu cotidiano. E nunca saberemos a que distância o “Big Bertha” esteve de alterar a história da literatura universal.

Mas se o Proust não nos conta, podemos imaginar. Não é impossível que, numa noite tornada insone pelo rufar longínquo das explosões, Proust tenha conjurado o próprio canhão para a sua cabeceira, e reclamado:

– Não consigo dormir. Não consigo escrever. Você não se dá conta do que está fazendo com a minha sensibilidade, e por conseguinte, com a minha literatura, sem falar na minha vida?

– Bobagem – diz o canhão, no seu alemão metálico. – Minhas balas estão caindo longe daqui, nos bairros pobres, onde ninguém é escritor. As reverberações das minhas explosões mal mexem com sua cortinas rendadas.

– Você não vê? Toda a minha literatura é feita, de um jeito ou de outro, dos pequenos movimentos das minhas cortinas rendadas, do tilintar evocativo do meu jogo de chá. É inadmissível que minhas cortinas estejam esvoaçando e minhas xícaras tremendo pelo poder de uma máquina de guerra, em vez do poder da minha memória.

– Deixa ver se eu entendi. Você quer que a guerra pare para poder se lembrar melhor. Recuperar o seu precioso tempo perdido é mais importante do que o destino da Europa e o futuro da Alemanha? Ora, vá dormir, Marcel.

– Dormir como, com Paris sob bombardeio?

– Isto não vai durar muito. Esta guerra está no fim. Os Krupp ganharam mas a Alemanha perdeu. Só estamos dando os últimos tiros para não perder a mão. E daqui a alguns anos, voltaremos.

– Você e eu não podemos existir no mesmo mundo, canhão. Marcel Proust e Big Bertha são antônimos. Ou a arte ou a estupidez humana, uma das duas terá que prevalecer, porque a outra será uma mentira.

– Engano seu, Marcel. Vamos conviver por séculos.

O canhão se levanta para ir embora e pergunta:

– Posso pedir uma coisa, já que lhe fiz o favor de não bombardear o Boulevard Haussmann?

– Peça.

– Me ponha no seu livro?

Será o mundo uma ideia? - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 11/03/12


Para Platão, a essência da realidade é percebida pela razão; isso deu à mente do homem um status semidivino



"A mente humana é mais incrível do que o Universo", disse-me outro dia minha filha adolescente. "Por que?" perguntei. "Ora, tudo começa nas nossas cabeças. Sem nossas mentes, não existiria um Universo."
"Será isso mesmo?", perguntei-me em silêncio. A rixa entre o que é e o que é percebido é tão antiga quanto a filosofia. Tem algo a ver com a pergunta "se uma árvore cai na floresta e ninguém está lá para ouvir, ela faz barulho?" (adaptada aqui). Mas é mais complexa.

Platão tornou explícita a divisão entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos. No seu famoso "Mito da Caverna", imaginou um grupo de prisioneiros acorrentados por toda a vida numa caverna. Podiam apenas olhar para uma parede, onde viam sombras projetadas por um fogo que queimava atrás deles. Com isso, sua percepção da realidade era profundamente distorcida, visto que nunca podiam olhar para os objetos que criavam as sombras. Apenas por meio de seus sentidos, jamais poderiam capturar a verdade sobre o mundo.

Platão usa a alegoria para argumentar que apenas o pensamento puro, livre das distorções da percepção sensorial, pode nos revelar verdades absolutas, imutáveis.

Segundo ele, a essência da realidade só pode ser percebida pela razão. Com isso, deu à mente humana um status semidivino, a ponte por onde chegamos ao absoluto. Para Platão, a essência do real é encapsulada por formas abstratas. Conhecê-las é chegar mais perto da verdade. Por exemplo, todas as mesas têm a forma de mesa, mesmo que os detalhes sejam diferentes. Apenas a ideia de um círculo é um círculo perfeito. Qualquer representação dele será imperfeita.

Dada a sua conexão com a busca pela verdade, não é surpreendente que as ideias de Platão tenham influenciado tanto cientistas quanto teólogos. Se as formas têm estrutura geométrica, a matemática (que estuda suas propriedades) segue em direção à verdade. Se a linguagem da natureza é a matemática, como afirmou Galileu, quanto mais as ciências físicas forem fundamentadas na matemática, mais perto da verdade estarão.

Essas ideias inspiraram alguns dos grandes nomes da ciência, de Copérnico e Kepler à Planck e Einstein. E continuam a fazê-lo, em particular para físicos que trabalham com teorias que tentam explicar toda a estrutura física do Universo, como a teoria das supercordas.

Para teólogos inspirados por Platão, como o genial Nicolau de Cusa, que viveu no século 15, a perfeição existe apenas em Deus. Com essa ideia, Cusa supôs que a Terra não poderia ser o centro do Universo. Cusa também não levava a sério a possibilidade de humanos obterem verdades absolutas. Para ele, elas estão na essência de Deus, que é incompreensível aos humanos.

Se a noção do Deus Geômetra não é mais muito popular, a do Homem Geômetra permanece firme e forte, e está por trás de grandes descobertas científicas e matemáticas.

Sem nossas mentes nada disso seria possível. Imaginamos e compreendemos o Universo com elas. Por outro lado, talvez seja bom levar a sabedoria de Cusa a sério e lembrar que o que criamos e entendemos é expressão de nossa criatividade, tendo pouco ou nada a ver com verdades finais e absolutas.

GOSTOSA


Contrarreforma - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

O Estado de S.Paulo - 11/03/12

Reforma agrária tem data de validade: ou ocorre na conjuntura histórica propícia ou perde a oportunidade e declina, acomodando-se na rotina institucional do Estado



Os dados do Incra, relativos a 2011 indicam drástico declínio do número de assentamentos no governo de Dilma Rousseff, o que para um dirigente do MST comprova "que a reforma agrária não é considerada prioritária pelo atual governo". Dos assentamentos do ano, apenas um terço foram-no em terras desapropriadas, ou seja, de efetiva desagregação de latifúndios. O MST tem dificuldade para reconhecer regularizações fundiárias como reforma agrária que previne expulsões e a latifundização da posse da terra.

O número de assentamentos do ano passado foi ínfimo em relação aos últimos 16 anos, o que abrange os governos opostos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula. Para quem se limita a fazer das estatísticas sociais um mero recurso de campeonato que confronta números de um governo com os de outro e os de um partido com os de outro, o declínio confunde e abate.

Essa oscilação pouco diz sobre o essencial da questão agrária entre nós. Quando o concentracionismo das modalidades arcaicas da posse da terra erguem um obstáculo ao desenvolvimento econômico e à expansão da economia empresarial é que a questão agrária se propõe. No Brasil, em que desde a abolição da escravatura o capital é também proprietário de terra, é restrita a possibilidade de uma grande coalizão social e política em favor da reforma. Ela é aqui mais questão social, pelas injustiças que a cercam, do que questão estrutural, de organização e funcionamento da sociedade. O que fragiliza a causa dos que entendem que a reforma é essencial ao desenvolvimento e à democracia.

Nossos primeiros agrorreformistas eram membros do Parlamento do Império, eles próprios vinculados material e politicamente às famílias dos grandes senhores de terras. Foram derrotados quando o Estado brasileiro, em 1850, optou pelo modelo agrícola concentracionista, o oposto do que viria a ser a opção americana pela Homestead Law, em 1863. A opção brasileira, associada a nossa invenção de relações não capitalistas de trabalho livre, assegurou o fim da escravidão e a rápida e intensa acumulação de capital que daria início a nossa industrialização com atraso de décadas. Nessa opção residem o progresso do País e também as dificuldades da nossa reforma agrária.

Em 1983, numa conferência na Associação dos Sociólogos de Brasília, Fernando Henrique Cardoso chamava a atenção para o fato de que nas votações do Congresso as medidas relativas à reforma agrária não passavam, não se politizavam, não chegavam a ser divisores de águas. Trinta anos se passaram. Está há dez anos no poder o partido que mais se beneficiou da mobilização pela reforma agrária e nem por isso ela chegou ao centro das decisões de Estado. O PT demonstrou, contra seus militantes, que a reforma agrária não está na encruzilhada dos destinos possíveis e alternativos do País. Se a reforma estava na agenda eleitoral do PT, não está em sua agenda política. E não é por falta de vontade política, como dizem os exaltados de sua grei, mas por realismo político. Na formação de seu primeiro governo, Lula fez larga concessão aos agrorreformistas entregando o Incra a um representante da Pastoral da Terra. Em poucas semanas, o conflito estava instalado no governo em consequência da tentativa de radicalizar a reforma e colocá-la no centro do processo político, sem levar em conta a pauta da governabilidade. Lula demitiu o presidente do Incra. E foi se aproximando cada vez mais do agronegócio, que ele definiu como o verdadeiro herói deste país. Uma condenação à morte do incômodo movimento pela reforma.

O Bolsa Família foi outro instrumento de atenuação da demanda por reforma agrária. Hoje o número de acampados à espera dela está reduzido à metade do que era no início do governo Lula. Não porque tenha sido feita uma avassaladora reforma agrária e sim porque o apelo da reforma já não mobiliza com a mesma intensidade que mobilizava no início da redemocratização, no governo Sarney, e no início do governo Lula.

O processo histórico recente parece confirmar que a reforma não é crucial, não polariza politicamente nem arrecada adesões politicamente essenciais a sua viabilização. Em boa parte isso decorre dos erros reiteradamente cometidos por aqueles que usurparam a voz e a vontade dos que efetivamente carecem de terra para trabalhar. Estreitaram o discurso e ampliaram as metas políticas, tentando dela fazer instrumento de transformações políticas radicais em vez de transformações sociais possíveis e necessárias. O que empobreceu o elenco dos aliados. O caso brasileiro, como já ocorreu em outros países, sugere que a reforma agrária tem data de validade. Ou ocorre na conjuntura histórica propícia, a do encontro dos fatores, causas e possibilidades que a pedem e viabilizam, ou perde a oportunidade histórica e declina para acomodar-se na rotina institucional do Estado e do cansaço dos movimentos sociais. O que a empobrece como fator de democratização e de mudanças em favor da justiça social, urgentes e necessárias.