O Estado de S.Paulo - 04/10
Un Maledetto Imbroglio é um filme italiano de 1959, baseado no romance de Carlo Emilio Gadda, em que o detetive responsável por investigar um roubo e um assassinato se vê cercado de vários suspeitos, cada um de uma região diferente da Itália. A trama do romance é menos o whodunit do que a diversidade de dialetos e pontos de vista. O emaranhado de versões que envolvem o detetive é vertiginoso, um autêntico imbróglio.
Democratas e republicanos não conseguiram chegar a um acordo sobre as diretrizes orçamentárias para o ano fiscal que acaba de se iniciar. Claramente, não falam a mesma língua, não têm os mesmos costumes e pretendem narrar os fatos de acordo com suas próprias conveniências. Portanto, não conseguem se entender na babel em que se tornou o palco político americano. O governo dos EUA se viu forçado a paralisar suas operações, a implantar o shutdown. Os jornais foram céleres em lembrar que o último shutdown foi há 17 anos, em 1996, e durou 21 dias. Contudo, isso ocorreu durante o governo Clinton, quando a economia ia bem e o sistema político do país não estava tão emaranhado, dissonante e discordante. A situação de hoje lembra mais o fim dos anos 70, quando havia graves problemas macroeconômicos e, não surpreendentemente, sérios entraves políticos. Em 1977, o shutdown durou 28 dias, tendo ocorrido em três etapas. Entre elas, houve tentativas malfadadas de tecer um acordo, um presságio do que pode ocorrer agora.
O maldito imbróglio político que pode culminar na interrupção dos pagamentos do governo se o teto da dívida pública não for elevado até o dia 17/10 foi ofuscado pelas especulações sobre o Fed. Os temores de que o banco central dos EUA pudesse iniciar a redução das compras mensais de títulos foram suficientes para gerar forte abertura nos rendimentos das Treasuries americanas, provocando grande turbulência nos mercados emergentes, sobretudo nos que enfrentam uma situação macroeconômica delicada, como o Brasil. A desvalorização do real e o súbito reconhecimento dos problemas que têm sido aventados incansavelmente pelos críticos das políticas do governo, os chamados pessimistas adversativos, forçaram um forte movimento de reprecificação dos ativos brasileiros.
Quão irônica não é, portanto, a atual situação. Confrontados com a ameaça de que os EUA tenham de declarar uma moratória por inépcia política nas próximas semanas, os investidores se deparam - embora teimem em não reconhecer a gravidade dos fatos - com a possibilidade de que o dólar volte a se enfraquecer mundialmente e os ativos americanos percam a atratividade recém-conquistada. Foi o que ocorreu em 2011, quanto houve o último imbróglio sobre o teto da dívida. Na ocasião, a turbulência dos mercados e o rebaixamento da classificação de risco americana pela agência S&P - a perda do AAA - bastaram para tirar os políticos do marasmo e forçá-los a costurar um acordo às pressas. Os mercados, hoje, parecem tomar como certo que o acordo de última hora também virá. Esquecem-se da irracionalidade política, ou melhor, de que os objetivos políticos muitas vezes passam muito longe das implicações econômicas que resultam daquilo que se percebe como uma obstinação desatinada. Lembrem-se da histórica rejeição do Congresso, em 2009, ao pacote fiscal de US$ 800 bilhões para resgatar a economia da crise. O plano só foi aprovado depois de fortíssima reação dos mercados.
Ainda que o acordo seja costurado, há vários motivos para se alarmar com a situação política dos EUA. Os Republicanos querem derrubar o Obamacare. Obama não pode aceitar que isso ocorra. No fim, o teto da dívida pode ser elevado à custa de um interminável shutdown. De um modo ou de outro, os mercados emergentes podem voltar a ser a alternativa menos inóspita. Nesse caso, o "Cristo Redentor desgovernado" da The Economist parecerá prematuro. E o governo brasileiro poderá salientar, não sem uma boa dose de razão imediatista, que tudo é culpa dos outros... Afinal, desgovernados, realmente, parecem ser os outros.
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