O Estado de S.Paulo - 29/07
O padre percebeu que não íamos a lugar algum. Quando, aos 13 anos, comecei a questionar o que ele considerava inquestionável, no retiro espiritual de Correias, o padre deve ter contabilizado a perda de uma ovelha e desistiu. Diante da insatisfação com as respostas, fui adiando a cerimônia de crisma, apesar de continuar sob a tutela de freiras ursulinas e, mais tarde, padres barnabitas. Voando abaixo do radar da vigilância paterna, desisti.
Desde então, nenhum sacramento fez parte da minha vida ou da vida da minha nova família. Quando me perguntam se sou religiosa, neste país onde 97% da população diz acreditar em Deus, mas 20% rejeita a religião organizada, respondo que não, com uma ressalva. Digo que sou culturalmente católica. Essa noção ficou ainda mais clara quando passei minha primeira temporada na Irlanda, há 20 anos. É um dialeto psicoafetivo que compartilho com certas pessoas e nem por isso me faz discriminar contra outras.
Lembrei desse dialeto quando assisti ao vídeo de uma cerimônia de desbatismo promovida pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, no Largo do Machado, para coincidir com a chegada do papa Francisco. Eu cruzava aquela praça diariamente, em minha progressiva descrença adolescente, a caminho dos colégios católicos. O presidente da associação, um advogado simpático, disse que estava protestando contra as políticas da Igreja Católica.
Não me passa pela cabeça que a fé católica esteja literalmente acorrentada ao Vaticano ou a políticas institucionais. Quando conversei, há poucos anos, com a formidável romancista católica Mary Gordon, ela se referiu com desdém a Bento XVI e à Cúria. Quando leio o mais importante intelectual católico americano, Garry Wills, entendo que ele, não só não vê motivo para a existência do Vaticano como, em seu novo livro, Por Que Padres?, propõe a abolição da função como uma categoria especial que, em sua leitura enciclopédica de textos bíblicos, nunca teria sido investida de autoridade por Jesus.
Gordon e Wills são exemplos de católicos que não usam sua fé como instrumento de intolerância ou exclusão. Mas são também exemplos de católicos que se opõem, não apesar de, mas por causa de sua moralidade cristã, às guerras genocidas, à desigualdade econômica, ao racismo e aos abusos de direitos humanos. Minha existência sem Deus se torna menos árida por causa desses crentes.
A cerimônia humorosa de desbatismo, importada dos Estados Unidos, usa um secador para purgar o antigo bebê vitimizado pela escolha dos que o trouxeram ao mundo. É um ritual carnavalesco de separação da religião. Os entrevistados disseram comicamente que era como se tivessem nascido de novo, num atribuição de transcendência ao jato de ar quente. Não achei tanta graça, mas, à medida que me lembrei do ateísmo mais em evidência nos últimos anos, meu sorriso amarelou.
É uma espécie de ateísmo xiita, aguçado por intelectuais como Richard Dawkins, Sam Harris e o falecido e, este sim, formidável Christopher Hitchens. Sam Harris pede provas da existência divina como quem cobra se, de fato, um vírus descoberto em laboratório é, responsável pelos sintomas de uma doença, como se a religião clamasse para si uma verdade científica. Compartilho, no entanto, de sua preocupação com os retrocessos de educação nos Estados Unidos, com o criacionismo ensinado no lugar da ciência.
No caso do Brasil, esse ateísmo militante me parece ter tomado um caráter intolerante e elitista. Sugere que as pessoas têm fé porque não completaram o segundo grau ou algo que o valha. Ouvi de um rapaz com jeito de ter a mesma vida de classe média que tive a declaração absurda de que ateístas e agnósticos sofrem discriminação e me perguntei se há um planeta chamado Brasil em outra galáxia. No meu permissivo Rio de Janeiro cada um tocava seu apito e nunca sofri qualquer rejeição social por minha falta de religião.
Os jovens que se desbatizaram na minha antiga vizinhança têm em comum o senso de humor e a lembrança de uma religião institucional que os privou de alegria ou reprimiu sua identidade e, por isso, me aproximo deles. Mas espero que eles compreendam que o zelo religioso dos que não responderam às minhas perguntas não é sinônimo de religião. Como disse um escritor "vagamente" crente com quem conversei, um opositor ferrenho da direita evangélica: Para mim Deus é um verbo e não um substantivo.
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