O GLOBO - 30/06
Que dias temos vivido, hein? De monotonia é que não podemos fazer queixa. Continuo achando que ninguém sabe como surgiu e em que vai terminar a confusão das últimas semanas, mesmo depois que o Congresso foi tomado por uma operosidade nunca vista, apressando-se em aprovar medidas antes quase impossíveis. Apareceram palpites em grande variedade, mas nenhum me convenceu muito ainda. Recebo e-mails alarmistas e alarmados, leio artigos e reportagens, ouço comentaristas de televisão e assisto a vídeos na internet, e a profusão de diagnósticos e prognósticos chega a entontecer. Complica-se isto com a circunstância inquietante de que, se levarmos em conta todas as denúncias que não cessam de pipocar, seremos forçados a inferir que não se pode acreditar em nada, até naquilo que testemunhamos pessoalmente, pois o que vemos, ou até o de que participamos, pode não ser mais que a ação de inocentes úteis que não sabem o que fazem, ou uma farsa para ocultar interesses escusos de grupos e organizações daninhas, ou o que lá se queira pensar.
Na mídia, claro, não se pode confiar. Jornais, rádios e televisões são mantidos no cabresto do governo, que lhes fornece anúncios e comerciais bilionários, além de abrir facilidades fiscais e fechar os olhos a graves irregularidades. Paradoxalmente, a mídia, no ver do mesmo governo e seus correligionários, é golpista e a voz das elites conservadoras, que tudo fazem para derrubar um governo de raízes populares, devendo por isso mesmo ser submetida a “controle social”. Voltando ao outro lado, a mídia está toda aparelhada por militantes a serviço do governo, em todas as redações, são eles os que realmente mandam, só se publica ou vai ao ar o que o governo quer. Trocando de lado outra vez, os colunistas e comentaristas têm todos o rabo preso, um porque é funcionário fantasma do gabinete de um político, outro porque é um carreirista puxa-saco dos patrões e ganancioso, outro porque é um conhecido fascista — ou comunista, conforme — e por aí vai, parece uma gangorra.
É uma situação terrível, porque, por mais que não se queira, a mídia sempre nos alcança. Mesmo que não atentemos em qualquer noticiário ou comentário, o vizinho, o colega de trabalho e o pessoal do boteco não fazem o mesmo e terminamos vítimas indiretas da má informação. Claro, se não podemos acreditar na mídia, também não podemos acreditar no vizinho, porque ele, como os amigos do boteco, tiram da mídia suas informações e, não raro, até suas opiniões. Não podemos acreditar cegamente nem em nós mesmos, porque é muito difícil, ou impossível, fugir da influência do que circula na mídia e não há como avaliar o que, em nossa maneira de pensar sobre fatos como as manifestações de rua, não terá tido origem na mídia.
A tanta razão para desconfiança e dúvida some-se o atabalhoamento em que ficaram os governantes. Em algumas ocasiões, lembrava uma sátira ou uma comédia de pastelão. Também confrange os súditos serem informados de que, na hora do aperto, a presidenta amarelou e procurou o ex-presidente e atual presidento, para saber o que fazer, como umaadolescenta em busca do apoio paterno. Além de tudo o que essa dependência patética representa, o sujeito fica, pelo menos no meu caso, um pouco envergonhado com essas coisas, aquele tipo de vergonha que a gente sente pelos outros. Em seguida, ela apareceu para se pronunciar, virando a cabeça para lá e para cá enquanto falava, como quem lê o teleprompter com certa dificuldade. Ou será que ela não sabia bem o que significavam as palavras que repetiu em voz alta? Talvez não soubesse mesmo, naquelas horas nervosas, porque, no dia seguinte, como todos viram, ela disse que não disse o que todo mundo pensou que ela dissera — e eis aí mais um exemplo de como a verdade tem andado cada vez mais fugidia.
Mas, se as ilações, hipóteses e explicações agora circulando ainda não conseguem ser inteiramente convincentes e ainda paira no ar alguma iminência de monta, por enquanto não notada, o fato é que a ruidosa e universal rejeição a políticos e partidos que vem marcando as manifestações acendeu uma luzinha vermelha na mente dos governantes, tanto assim que eles vêm procurando atender às demandas com uma presteza que nos deixa de queixo caído. Também eles não sabem em que tudo isso vai terminar e, pelo sim, pelo não, tratam de corrigir como podem aquilo que não só o povo aponta, mas eles há muito sabem que está errado.
Aguilhoados pelos verdadeiros donos da soberania, os governantes mudaram sua postura habitualmente arrogante, indiferente ou cínica e baixaram a cabeça, diante da rebelião dos governados. As instituições também vêm funcionando e cumprindo seu papel. Ou seja, não é necessário nenhum radicalismo, basta que passemos a abandonar os costumes e práticas que têm caracterizado nossa vida política e contra os quais deveremos estar em permanente vigilância e possível mobilização. É primarismo advogar que sejamos governados “diretamente” pelo povo, através de decisões coletivas tomadas através de internet, porque isso só iria redundar nas decisões apressadas, emocionais e inconsequentes que as multidões, mesmo as eletrônicas, costumam tomar — e uma situação assim redunda em anarquia. Tampouco podemos ceder ao impulso, talvez atávico, de esperar a volta do rei Sebastião, que nos libertará, com virtude, carisma e amor ao povo, de todas as nossas aflições. Creio que já há aspirantes a esse posto, mas onde estava Sebastião, quando começaram as manifestações e as mudanças já obtidas? Estava malocado, esperando a hora de dar o bote e abocanhar o que não foi feito por nenhum Sebastião, mas pelo povo. Não se pode garantir que o povo não seja outra vez engabelado, mas venham com outra conversa, que o velho papo já não cola.
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