domingo, junho 30, 2013

A miséria do nacional-estatismo - SERGIO FAUSTO

O ESTADO DE S. PAULO - 30/06
É preciso aprender com a História, inclusive a recente.
Duas das experiências internacionais enaltecidas pelo nacional-estatismo brasileiro ao longo da última década enveredam por caminhos cada vez mais sombrios. Falo da Rússia e da Argentina.

O elogio partia de uma premissa verdadeira - sim, os governos de Boris Yeltsine Carlos Menem terminaram em desastre, num misto de "fundamentalismo de mercado" com "capitalismo de compadrio"- para chegar à conclusão falsa de que nos governos de Vladimir Putin e do casal Kirchner, respectivamente, se estavam erguendo boas alternativas ao capitalismo liberal.

Os descaminhos a que esses países estão sendo conduzidos eram relativamente previsíveis. Não, porém, para aqueles que encontram refúgio na idealização do nacionalismo e do "Estado forte". Na sua versão mais autoritária, o nacional-estatismo produz uma dupla distorção. A nação, no lugar de ser entendida como expressão plural e soberana de seus cidadãos, é reduzida à vontade do Estado, instrumentalizada por grupos que controlam o governo. Assim, o nacionalismo converte se em ideologia para excluir os opositores como antipatriotas, ao passo que o Estado deixa de zelar pela esfera pública para se transformar em ferramenta de poder dos ocupantes circunstanciais do governo.

Em seu afã de crítica ao capitalismo liberal,o"desenvolvimentismo "brasileiro não raro se deixa cegar pela fascinação nacional-estatista. Dessa maneira, confunde-se a justa crítica ao "fundamentalismo de mercado" com o rechaço em bloco ao liberalismo político e econômico clássico, base necessária,embora não suficiente, do pensamento e da experiência democrática contemporânea.

Na Rússia, onde Putin se elegeu pela segunda vez para a Presidência, depois de um intervalo de quatro anos como primeiro-ministro, o nacionalismo laico juntou-se ao tradicionalismo religioso para sufocar os espaços de autonomia e contestação da sociedade civil russa. A santa aliança entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa promove ataque sistemático às liberdades civis no país. O mais recente é o Projeto de Lei - indisfarçavelmente homofóbico - que define como crime a promoção de "relações amorosas não tradicionais" entre crianças e jovens. Sua aprovação é tida como líquida e certa, pois o Partido Rússia Unida, de Putin, conta com maioria parlamentar,resultante de eleições consideradas fraudulentas. A iniciativa surge na sequência do processo que levou à prisão as integrantes da banda Pussy Riot, acusadas de desrespeito a símbolos patrióticos e eclesiais.

A liberdade de imprensa é outra das maiores vítimas. As seis principais cadeias de televisão estão em mãos do governo ou de seus prepostos. Avolumasse os processos contra jornalistas e veículos da mídia independente, que não encontram num Poder Judiciário garroteado proteção contra as arbitrariedades oficiais. Para a criminalização recorrente de indivíduos e organizações da sociedade civil o governo acusa-os de "agentes de potências externas e interesses estrangeiros".

O núcleo de poder no governo de Putin é formado pelo serviço de inteligência e por uma nova geração de oligarcas que substitui a que emergiu com as privatizações "selvagens" de Boris Yeltsin. Putin livrou-se daquela oligarquia encarcerando ou forçando ao exílio os seus membros mais recalcitrantes.

Não o fez para sanear o país, mas para se apropriar de suas empresas e abrir espaço para uma nova burguesia, desta vez umbilicalmente ligada ao Estado e ao seu poder pessoal.

A recuperação da economia, favorecida pelos preços altos do petróleo e do gás natural nos mercados internacionais, e a retomada do orgulho nacional ferido pelo colapso da União Soviética e pelos anos caóticos de Boris Yeltsin asseguraram a Putin, até recentemente, elevada popularidade.

O quadro, porém, está mudando. Com a desaceleração do crescimento, a explosão das desigualdades sociais, a inconformidade social cada vez maior com os privilégios e a corrupção que campeiam na nova burguesia estatal, a conservação do status quo passa a depender de doses crescentes de repressão política e fraude eleitoral, preço que Putin parece disposto a pagar para se manter no poder.

Mutatis mutandis, também na Argentina a manipulação do nacionalismo vem sendo utilizada intensamente pelos governos Kirchner para permitir que um grupo político se apodere do Estado e para justificar um ataque sistemático e deliberado não apenas às oposições, mas a quaisquer instituições que ousem pôr freio nos desígnios e propósitos oficiais. Claro, na Argentina a manipulação nacionalista tem marcas diferentes das características que assume na Rússia. Na primeira, apela à raiz popular do peronismo. Na segunda, à nostalgia de um passado imperial e ao sentimento presente de uma potência militar acossada. Mas há um traço comum: tanto lá como cá, a ideologia nacional-estatista é empregada para justificar a apropriação do Estado por grupos políticos determinados, o manejo discricionário das políticas e das instituições públicas e a asfixia da sociedade civil e das oposições.

A não compreensão das afinidades eletivas entre dirigismo estatal, manipulação nacionalista e autoritarismo - comprovadas pela frequência histórica com que esses três fenômenos surgem associados, reforçando se mutuamente - explica por que certa corrente crítica ao capitalismo liberal namora o pensamento antidemocrático, quando não se a casala integralmente com ele. Num nível mais concreto, ajuda a entender também por que expoentes do "desenvolvimentismo" brasileiro -como Luiz Carlos Bresser-Pereira, a quem sobram credenciais democráticas - se tenham deixado seduzir pelos governos de Vladimir Putin e Cristina Kirchner, ensaiando só agora crítica tardia e insuficiente.


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