Todo colunista corre o risco de ser mal interpretado, e tenho tido a sorte de sofrer com isso muito raras vezes. Porém, em minha última coluna, sobre a chacina de criancinhas nos Estados Unidos antes do Natal, devo ter sido obscura, erro crasso de quem escreve a cada tantos dias para um número tão imenso de leitores. Várias cartas manifestaram perplexidade, espanto. mágoa diante do que julgaram ser preconceito meu contra quem é "diferente" (não vou nem entrar no mérito das palavras, que também são objeto de preconceito e confusão, pois meu leitor sabe do que falo). Nada mais distante de minha postura, desejo e intenção. Ao contrário, vários romances meus têm personagens, penso que pungentes, abordando esse doloroso tema: o pai do lesado cerebral grave, em Exílio: o anãozinho cruelmente maltratado pelo pai, em O Silêncio dos Amantes; a menina da perna curta, no meu romance mais recente. O Tigre de Olhos Azuis, que considero um elogio do diferente. Essa menina, atormentada pelo preconceito materno, era a senhora dos mistérios, que construiu com tenacidade e sonho uma vida, teve privilégios como criar no fundo do quintal um tigrezinho de olhos azuis que a seguiria pela vida afora, com mais ou menos intensidade, conforme ela precisasse dessa metáfora. Termino o livro com a frase “Nenhum tigre tem olhos azuis”. "0 que você quis dizer?’", me perguntam. Nem eu sei, mas possivelmente a frase significa que somos todos iguais, todos temos nossa ferida, nossa dor, nossa perninha curta física, mental ou emocional.
Sendo mais pessoal do que já costumo ser, faço aqui um comentário que talvez o assunto permita. Nasci com um defeito físico não muito aparente. que me tornou uma menina avessa a qualquer exercício ou esporte, sempre tachada de preguiçosa e desajeitada, pois tinha pouco equilíbrio, caía com facilidade. Só quando jovem adulta descobriu-se que eu tinha nascido com um problema de bacia e coluna. "Quando a senhora foi concebida, houve um desastre", disse um dos especialistas. Não é muito grave, mas é mais limitador. Eventualmente preciso usar bengala, com a qual luto por me habituar. Cedo me acostumei a uma constante companheira, a dor física.
Nada me entristeceria mais do que ofender quem sofre de ou lida com quem tem limitação de qualquer natureza. Uma das coisas que eu quis dizer, talvez sem ter sido clara, nasceu de minha longa observação de casos de pessoas próximas: nem sempre a inclusão pode ser total e nem sempre ela será favorável se for total. Às vezes crianças com alguma deficiência podem florescer recebendo atendimento especial, e ficar angustiadas em turmas de crianças ou jovens ditos “normais”, que não conseguem acompanhar, nem entender, cujos sonhos e possibilidades são muito diferentes dos seus, mas que se esforçam para partilhar.
Também pensei ter sido clara dizendo que muitas famílias não procuram ajuda adequada para seus filhos porque, apesar de todas as campanhas esclarecedoras, ainda é objeto de preconceito absurdo admitir que se tem um filho com limitações. Quanto ao assassino americano que trucidou 26 criancinhas e adultos, talvez seja um exemplo de jovem que precisaria ter sido tratado e internado, não escondido em casa e superprotegido pela mãe, que, aliás, curtia armas de fogo, algumas pesadas. Em momento algum levei a sério comentários iniciais em noticiosos americanos aludindo ao fato de que o rapaz talvez fosse autista, o que nunca foi confirmado, e que isso levaria à violência. Imediatamente, autoridades em psiquiatria americanas rejeitaram essa teoria nascida de ignorância. Enfim, numa rara ocasião, explicando-me por respeito aos leitores e a mim mesma, espero ser daqui em diante mais clara, para que nenhum mal-entendido nasça de falha minha no meu trabalho de tantos anos, que é produzir textos claros. Interpretações falhas, mexer com ideias alheias, contrariar, contradizer, tudo isso faz parte desse ofício, pois a unanimidade é tola. Mas que eu sempre torne meu leitor um cúmplice, mesmo quando discordando de mim.
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