segunda-feira, janeiro 14, 2013

O novo espectador - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 14/01


A transmissão dos Golden Globes ainda não aconteceu enquanto escrevo, mas posso prever que ela foi mais interessante e divertida do que será a noite dos Oscars no fim de fevereiro. O anfitrião escolhido para tentar impedir o crescente desinteresse pela transmissão dos Oscars nos Estados Unidos é Seth McFarlane, criador de séries de animação. Sua amostra de humor, ao anunciar a indicação do sublime Amour, de Michael Haneke, para melhor filme: "Li que Amour foi coproduzido pela Áustria e a Alemanha. A última vez que eles coproduziram alguma coisa, foi Hitler."

Já o par de anfitriãs da noite dos Globes, Tina Fey e Amy Poehler, é responsável por duas das melhores comédias na TV aberta americana. Eu disse TV? Sim, há anos os Globes têm anfitriões televisivos, enquanto continuam a se promover sobretudo como um tributo ao cinema. Embora tenham sido objeto de chacota porque a Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, patrocinadora dos prêmios, não é exatamente um bastião do jornalismo, os Globes, por indicar programas de TV, reconhecem a melhor fonte de ideias da cultura visual americana. Hollywood produz, em boa parte, filmes para crianças e adolescentes, esgota franquias e, no fim do ano, solta uma mini safra de filmes para adultos, como Lincoln e Argo, para cortejar a temporada de premiações.

Já a TV americana exibe drama, aventura e comédia de alta qualidade o ano todo, além, é claro, do lixo dos reality shows. Todos os indicados na categoria de drama dos Golden Globes, inclusive o vencedor, arrisco a previsão, Homeland, são melhores do que a maioria dos filmes lançados em 2012. Estamos vivendo uma era de ouro de TV? Sim, do ponto de vista de conteúdo mas, como indústria, o futuro é mais complicado. Pelas minhas contas, só assisti a um dos dramas indicados aos Globes ao vivo e, não mais do que quatro vezes, no ano passado.

Não dava para escapar aos comentários, à cobertura e ao suspense que cercaram a estreia da terceira temporada de Downton Abbey, aquele novelão com um roteiro letrado e um elenco supimpa da TV britânica. É um daqueles prazeres culpados. Fiz uma anotação mental - domingo, 6 de janeiro. No dia D, programei a TV para gravar no DVR (o serviço de gravação digital) e, aliciada na última hora por amigos no bairro, saí porta afora. O segundo episódio, ontem, também foi gravado, junto com outras atrações imperdíveis da noite de domingo. Metade dos domicílios americanos tem DVR. No horário nobre, é frequente o segundo lugar da audiência ficar com o DVR, a programação gravada. Esta audiência retardada se tornou tão importante que os números passaram a ser medidos separadamente, ao vivo e em outras formas de acesso, como o DVR. O público mais cobiçado dos anunciantes, entre 18 a 49 anos, está rachando em seus hábitos de assistir à televisão.

Uma das mais bem sucedidas séries do cabo americano, a excelente Breaking Bad, deve boa parte de seu novo público, em 2012, à turma que assistiu às temporadas anteriores pela Netflix, em maratonas que deram origem ao neologismo binge watching (tomar uma bebedeira de um programa só).

A CBS é tradicionalmente a rede de TV aberta com os espectadores mais velhos. No ano passado, a CBS estreou um drama policial, Elementary, que tem Sherlock Holmes como um ex-viciado em drogas vivendo em Nova York. Ao vivo, a média de idade do público de Elementary é 57 anos. Ao longo de sete dias de acesso por diversas vias digitais, a média de idade cai para 36 anos. As distrações eletrônicas são muitas e a geração que cresceu online não se submete à TV com hora marcada, a não ser para eventos esportivos.

Uma visita a apartamentos de jovens no Brooklyn vai confirmar o temor dos anunciantes. Os moradores não pagam pelo serviço de cabo, o que, sem antena, dificulta a recepção de TV aberta. Entre o consumo online por distribuidores como Netflix, o sistema de streaming Hulu, iTunes e a pirataria, este público tem inúmeras opções de evitar publicidade.

Mesmo se a cena de várias gerações reunidas na frente da TV é mais rara, quando ela acontece, há variações. Na minha casa, ela pode consistir num tablet conectado à TV e ao consumo, via wifi, de vários episódios de uma série hilariante e obscura da TV britânica, fora do ar há anos. A fartura de programação disponível em streaming ou em reprises de centenas de canais fez vítimas no outono passado. A rede Fox perdeu o primeiro lugar de audiência, que detinha há anos, ao estrear comédias que foram ignoradas. O público desacostumado ao horário fixo da programação não conferiu as novidades.

Sem o bochicho inicial, é difícil, mesmo para um programa de alta qualidade decolar. E, se as opções de driblar os anúncios são tantas, quem vai financiar a ousadia que a TV tomou do cinema?

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