O Estado de S.Paulo - 14/01
Quem não brincou de pegador, de amarelinha com casca de banana, de passar anel com anelzinho de pedra de vidro que vinha preso numa daquelas balas de antigamente? Qual foi o moleque que não jogou fubeca, não bateu figurinha na calçada ou no páteo da escola, ou não rodou pião? Qual foi o moleque que não empinou papagaio feito caprichosamente pela irmã? Qual foi o moleque que não brigou na rua com o amigo de todos os dias, depois de fazer um risco no chão para separar os lados dos contendores e cuspir no lado do outro para provocá-lo e iniciar o confronto, os empurrões e os tabefes? Qual foi o moleque que não apanhou de cinto em casa quando o pai soube que já apanhara de tapa de outro moleque na rua? Ninguém podia voltar para casa vencido. Ou contar que apanhara.
Qual foi a menina que não ficou de mal com a amiga, entrelaçando os dedos das duas mãos, virados para a outra e soltos lentamente para simbolizar a ruptura? Qual foi a menina que não reatou a amizade enlaçando o dedo mindinho com o mindinho da outra para simbolizar o reatamento e dizer assim que o amor de todos os dias entre crianças é maior do que a raiva do instante? Quem não lembra de histórias incrivelmente fantasiosas que as crianças inventavam e contavam, cada vez de um jeito, no teatro imaginário das reuniõezinhas de calçada, no começo da noite, sob a luz amarelada dos postes da Light? A cidade era uma xilogravura.
Os antigos e os não muito antigos já notaram o desaparecimento do lugar da criança na renovação da sociedade e na vida da cidade. A rua já não é da criança, é do carro. Ou é do crime, mesmo que esse pavor seja em grande medida falso, alimentado de propósito pelo rádio e pela TV para aterrorizar adultos e crianças. Já não se fala das coisas boas que acontecem todos os dias nas ruas da cidade: um concerto, um livro, uma poesia no poste. O noticiário homicida, desenraizado e alienado matou a cidade. Já foi o tempo em que o povo sabia das coisas pelo jornal, um de manhã e outro à noite, deixando para o afobado Repórter Esso as notícias de última hora.
Nos bairros, como o da Mooca, do Brás, do Belenzinho, de Santana, da Lapa, do Ipiranga, da Vila Prudente, à noite, os pais punham cadeiras na calçada para conversar com os vizinhos, apreciar o movimento que não havia ou acompanhar com os olhos um carro que passasse, buzinando e espantando crianças.
As crianças brincavam de adivinhas, de o que é que é, de cantigas de roda - Senhora Dona Sancha vestida de ouro e prata; Pirulito que bate, bate, pirulito que já bateu, quem gosta de mim é ela, quem gosta dela sou eu; O cravo brigou co'a rosa debaixo de uma sacada; Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de diamante para o meu amor passar. Crianças, venham pra dentro, está na hora, já é tarde. São oito horas!
Nenhum comentário:
Postar um comentário