sexta-feira, dezembro 28, 2012

Do fundo do baú - LUIZ PAULO HORTA

O GLOBO - 28/12


Além lado afetivo, há outro: a carta como documento histórico, literário, ou sociológico. As pessoas vão guardar e-mails? É uma coisa mais precária, e a pressa da vida moderna conspira contra isso



Eu tenho uma amiga que, todos os anos, me enviava um belo cartão de Natal, às vezes desenhado por ela. Este ano, em vez de cartão, chegou uma gentil mensagem eletrônica. Eu entendo, ficou mais fácil. E dessa maneira, você manda para quantas pessoas quiser. Mas não há comparação entre um cartão (que você custa a jogar fora) e uma mensagem eletrônica.

Isso ainda é mais verdade para essa maravilhosa forma de comunicação que é a carta. É difícil imaginar o que a carta representa na história da humanidade. Primeiro, como laço afetivo. Certo, pode-se pôr sentimento numa mensagem eletrônica. Mas ela tem um caráter menos pessoal que uma carta. Recebendo a carta, você sabia que era só para você. Que uma determinada pessoa, num cantinho do universo, sentou-se numa mesa, escolheu papel, uma caneta, e começou a escrever para você. A emoção podia começar na caixa do correio — pelo formato do envelope, pela letra que você conhecia.

Isso pelo lado afetivo. Havia outro, enorme: a carta como documento histórico, ou literário, ou sociológico. Aqui no Brasil, começou com a carta de Pero Vaz, o primeiro documento da nacionalidade. Pouquíssimo tempo depois, as cartas do padre Manoel da Nóbrega prestam informações preciosas sobre um país recém-nascido.

Não há nenhuma certeza de que as pessoas vão guardar e-mails. É uma coisa mais precária, e a própria pressa da vida moderna conspira contra isso. Assim, talvez deixem de se repetir coisas como:

1) As cartas de São Paulo, básicas para a história do cristianismo.

2) Dois conjuntos de cartas romanas: as de Cícero e as de Sêneca, que, sozinhas, garantiriam um conhecimento quase íntimo de uma época grandiosa. As de Cícero, mais pictóricas, tecidas com as histórias do dia a dia. As de Sêneca, o retrato de um filósofo que foi o Montaigne dos romanos.

3) As cartas de Fénelon. Esse grande bispo francês foi um incomparável diretor de consciências na França de Luís XIV. Sua correspondência é uma combinação única de beleza literária e finura espiritual.

4) As cartas de Flaubert, talvez a sua obra-prima (tenho uma preciosa edição francesa em sete volumes). O caso de Flaubert é um bom exemplo. Como ele vivia isolado, totalmente dedicado aos seus (poucos) romances, a carta era o seu meio de comunicação com o mundo. Sendo ele o escritor que era, surgiram maravilhas literárias. Mas o tom é absolutamente íntimo. Não vai muito bem com a eletrônica.

5) A correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Este é um tesouro bem nosso. Nabuco era dez anos mais moço que Machado, e foi seu parceiro na formação e consolidação da Academia Brasileira de Letras. Para além do puramente literário, o que essas cartas revelam é o encontro, o diálogo, entre dois espíritos supriores. Tem o sabor de um velho vinho do Porto.

A lista poderia ir longe. Na literatura romântica, por exemplo, as cartas de amor entre Elizabeth Barrett Browning e seu futuro marido Robert Browning, todos dois grandes poetas. No século XX, as cartas que tanto enriquecem a estante kafkiana. Sem serem famosas, as cartas de Thomas Mann são um dos melhores meios de aprofundar o conhecimento desse grande romancista alemão.

Isto não é para ser um exercício de saudosismo. Cada época tem suas coisas boas — ou más. Normalmente, nesses casos, ganha-se por um lado e perde-se pelo outro. O ideal é quando se pode conservar tudo — ou quase tudo.

Foi o que aconteceu com a música. Houve um momento (começo do século XIX) em que o piano pareceu desbancar definitivamente o cravo. Antes que chegasse o piano moderno, houve o pianoforte, de som mais suave, que até Mozart preferiu usar, em seus concertos com piano. E o cravo sumiu, ou quase. Até que, já em pleno século XX, uma polonesa chamada Wanda Landowska conseguiu mostrar que, para um certo repertório, o cravo era definitivamente mais recomendável que o piano. E assim tivemos versões modernas (e fascinantes) das sonatas de Scarlatti, e do “Cravo bem Temperado”, de Bach.

Hoje, você tem todos os meios possíveis e imagináveis de transmissão do som. Você adapta um plug ao ouvido e se desliga do mundo. Mas os nossos antepassados também tinham prazeres bem sofisticados. Minha avô paterna, quando jovem, morava numa fazenda de café perto de São João del Rey. Ela e uma irmã mais velha tocavam piano — um belo piano de cauda; e uma vez por mês, recebiam a visita de um professor alemão, que chegava em lombo de burro e trazia um violoncelo na garupa. Havia a aula tradicional; e, depois, professor e alunas aplicavam-se a algum trecho de música de câmara. Tenho certeza que Beethoven — sempre no repertório — devia soar de um modo muito raro nesse serões da fazenda, cercados de imensos silêncios.

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