sexta-feira, novembro 23, 2012

O Mercador de Veneza - FERNANDA TORRES

FOLHA DE SP - 23/11


Como em "Édipo Rei", aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado


Cruzei com Barbara Heliodora em uma estreia de teatro. Barbara declamou para mim um trecho da cena um do quarto ato de "O Mercador de Veneza", onde Pórcia reflete sobre a cobrança de uma libra da carne do devedor, feita pelo judeu agiota Shylock: "A graça do perdão não é forçada; / Desce dos céus como uma chuva fina / Sobre o solo; abençoada duplamente, / Abençoa quem dá e quem recebe".

"Vou mandar para o Joaquim Barbosa", concluiu a crítica com ironia. Barbosa anda mesmo impiedoso na sua dosimetria.

É difícil acreditar que José Dirceu vá entrar para a história como o maior corrupto que esse país já conheceu. Não é. Talvez, Dirceu seja o mais heroico dos revolucionários, ao aceitar a culpa para salvar o partido. Ou o mais perigoso dos políticos, ao conduzir um esquema para perpetuar o PT no poder pelas próximas décadas.

A alegação de que o caixa dois não é corrupção demonstra o quanto o PT operou dentro das controversas regras monetárias que imperam na política. Caso permanecesse fiel à retidão acusatória dos tempos de oposição, o partido enfrentaria o paradoxo do inflexível delegado de "Medida por Medida", do mesmo W. Shakespeare, que descobre ser impossível governar sem violar a lei.

É melhor fazer cumprir um mandamento que a sociedade não respeita, ou compactuar com o malfeito que não se pode erradicar?

O valerioduto mineiro do tucano Eduardo Azeredo, tudo indica, serviu de modelo para uma estratégia de âmbito nacional. É grave. Mas por que o PT encara o paredão enquanto as acusações ao PSDB correm o risco de prescrever? Estaria certo Dirceu, ao defender a teoria conspiratória? Ou foi obra do soberano acaso?

Como em "Édipo Rei", aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado.

Perguntei a amigos informados o porquê de o mensalinho mineiro ter morrido no tempo, enquanto o mensalão enfrenta a fúria exemplar. Os analistas de quintal apontam para mais de uma razão.

O PSDB foi obrigado a seguir o moroso caminho da Justiça comum, enquanto o PT foi julgado pelo Supremo. Parte dos magistrados assumiu o cargo durante o governo Lula e, presumivelmente, as chances dos processados, ali, seriam maiores.

A indignação de Gilmar Mendes com o ex-presidente, provocada pela insinuação de que o ministro teria visitado a Alemanha na companhia de Demóstenes Torres, envolvido no caso Cachoeira, teria contribuído para o endurecimento do STF. E, também, a desastrosa defesa do caixa dois.

A sequência lógica, repartida em núcleos, imposta pelo relator do processo, tornou difícil a contestação dos fatos e o resultado foi o derramamento de penas.

Dirceu insiste que o tribunal agiu sob pressão da opinião pública atiçada pela imprensa. Mas quem soltou as feras no Coliseu romano foi Roberto Jefferson, de olho roxo, cantando vingança, depois de dar com a língua nos dentes em cadeia nacional. O tom de escândalo não partiu das Redações. O termo mensalão é de autoria do deputado.

A crítica mais pertinente sobre o comportamento dos meios de comunicação eu ouvi de Jânio de Freitas, no "Roda Viva". Segundo o oráculo, um veículo pode e deve tomar posição, mas não tem o direito de fingir neutralidade.

Dirceu e Genoino foram enredados porque soava absurda a explicação de que Delúbio Soares teria sido, à revelia do partido, o arquiteto solitário dos empréstimos milionários e da negociação com a bancada. Mesmo sem provas irrefutáveis, foi preciso responsabilizar o alto escalão. Os autos levaram a isso.

O Partido dos Trabalhadores sempre se viu como o partido do povo brasileiro. Para o PT, o PT é o povo, nascido dos sindicatos e da mão de obra que ergueu o país. Havia uma simbiose entre a vontade do partido e a da nação que legitimava, para alguns envolvidos, as transações criminosas.

Nos últimos dez anos, o PT sofreu o linchamento de quadros do calibre de Palocci, Gushiken, Erenice Guerra e sempre se manteve coeso. Se serve de consolo, o mesmo não se pode dizer do PSDB.

A herança guerrilheira de muitos de seus fundadores sabe que o projeto comum está acima do indivíduo, mesmo quando o custo é uma libra da carne em torno do coração.

"Data venia".

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