O GLOBO - 02\11
Pensei em Drummond. Pensamos. No dia todo, entre notícias de desemprego na Europa, supertempestade Sandy em Nova York, possível delação premiada de Marcos Valério, e risco de novos apagões de energia, o Twitter foi ocupado por pedaços de poemas de Drummond colorindo um mundo meio caduco com a beleza da sua palavra suspensa sobre o futuro.
Qual é o valor, já que esta é uma coluna de economia, da poesia que, nos 110 anos do poeta, permanece viva? Isso enfraquece a relação com a economia: falta o quantum em questões objetivas assim.
Drummond diz em "Confissão" que não amou bastante seu semelhante. Não amou sequer a si mesmo, "contudo próximo". Salvo "aquele pássaro - vinha azul e doido - que se esfacelou na asa do avião". A vida efêmera do pássaro azul - que, por desatino, se esfacelou na asa do avião - que valor tem? Viveu no anonimato, o pássaro, mas ao morrer foi amado pelo poeta, que escreveu seus versos e os publicou em 1951 no livro "Claro Enigma". Sessenta e um anos depois, está no Twitter, um planeta onde alguma poesia pode ser contida em 140 toques e achar o coração de alguém.
Foi quarta-feira, 31 de outubro, e nos EUA, ainda fustigado pelo feitiço do tempo, era dia das bruxas. Melhor "A bruxa" de Drummond: "Nessa cidade do Rio. De dois milhões de habitantes. Estou sozinho no quarto. Estou sozinho no América." Hoje, os solitários estão mais acompanhados. São, diz o IBGE, 6.320.446 os habitantes da cidade. O que intriga é a vida curta do inseto, uma bruxa, que ficou presa na zona de luz. Fez um barulho ao lado do poeta e foi o bastante. Não era nada, era um sinal de vida e virou poesia. "E nem precisava tanto... Precisava de um amigo desses calados, distantes."
O que vale um inseto que ao fazer um som, na sua sina de circular a luz, permite esses versos? "Tenho tanta palavra meiga, conheço vozes de bichos, sei os beijos mais violentos, viajei, briguei, aprendi. Estou cercado de olhos, de mãos, afetos, procuras. Mas se tento comunicar-me o que há é apenas a noite e uma espantosa solidão."
Na manhã de quarta, os que lembravam pedaços de poesias colocaram o #Drummond110 entre os tópicos mais publicados do Twitter. Imagine a cara dele diante deste mundo no qual era celebrado seu aniversário. O espanto duraria o instante de virar poesia, ou crônica.
Uma navegante das mídias sociais faz pouco e diz que Drummond como poeta era um excelente cronista. É o oposto. A poesia está também nas crônicas das notícias e não notícias. Como em "Telefonema II". "Alô, é o poeta? Boa Noite. Olhe, poeta, um conselho." E vem o aviso misterioso de cartas que só poderão ser abertas, com seu segredo, sobre Virgínia e Sinhá, no distante ano de 2015. "Não eram mulheres, nem se amavam." Que segredo haveria de ser? "Já falei demais, não devia explicar tanto. Durma bem, poeta."
O poeta fez 110 anos e nos enterneceu num dia comum, véspera de véspera de um feriado, em que o trânsito esteve horrível no Rio, enterrou-se a CPI do Cachoeira em Brasília, foi afastada a prefeita de Natal, a violência aumentou em São Paulo e o Supremo descansou da dosimetria do mensalão medindo o veneno do asbesto amianto de crisotila.
"Oi poeta! Do lado de lá da moita hem? Fazendo seus novent´anos..." escreveu ele para Manuel Bandeira. "E se rindo, eu aposto, dessa ideia de contar tempo, de colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável."
Inumeráveis vezes Carlos Drummond de Andrade nos tem encantado. "Isso nos deste, verso a verso". O valor do que foi dado não há medida que meça. Mas se pode repetir: "E nem precisava tanto."
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