FOLHA DE SP - 03\11
É como se no grande jogo dos negócios entrasse um participante com baralho próprio e cheio de coringas
O ingresso da China na OMC, há dez anos, não produziu apenas o efeito de amarrar os chineses às regras vigentes. O mundo também teve que se adaptar a eles.
É mais ou menos como se houvesse chegado ao grande jogo dos negócios e dos entendimentos econômicos internacionais um novo participante, que, mesmo aderindo às regras, jogasse com um baralho próprio e cheio de coringas, podendo sempre arrear uma canastra.
Parte dos coringas, há que se registrar, vem de uma realidade concreta. A China fez o dever de casa em matéria de infraestrutura.
Além disso, dispondo de muita poupança, pôde facilmente ampliar a produção para exportar e, posteriormente, financiar investimentos de suas empresas no exterior.
Parte tem contornos menos visíveis. Está nas práticas chinesas de negociação, que envolvem uma relação não evidente entre os interesses público e privado, muito tempo utilizado em conversas, grandes interrogações quanto a quando e como se vai fechar um entendimento.
Empresários brasileiros confessam frequentemente ser levados à loucura pelos chineses.
Nada disso é de surpreender. Os asiáticos operam mesmo numa moldura intelectual e reflexiva diferente da nossa. E os chineses tenderão mais a se aproximar das práticas ocidentais do que os ocidentais das práticas chinesas. É impossível para nós ser como eles.
O que mais chama atenção na atual realidade, no entanto, não é a China. É que os valores ocidentais estão mudando. As ideias de livre comércio, livre fluxo de investimentos, baixa interferência do Estado na economia real estão pouco a pouco ganhando novos contornos.
É no contexto desses novos contornos que se insere a decisão do governo Obama de mandar a empresa Ralls engavetar o projeto de uma planta de energia eólica, porque os equipamentos são fornecidos pela chinesa Sany. Ou a decisão do Comitê de Inteligência da Câmara americana de colocar na lista negra as empresas Huawei e ZTE.
Nos bons tempos em que só o discurso liberal ditava os rumos, ninguém se referia ao fato de que os EUA têm, desde 1975, um Comitê de Aprovação de Investimentos, cuja justificativa é de segurança, mas cujo mandato é mais genérico: monitorar o impacto de investimentos estrangeiros, inclusive os de portfólio, ou seja, puramente financeiros.
É a crise, dizem muitos. Ou o quadro político, argumentam outros.
O Tesouro americano, a quem sempre cabe posições puristas, saiu dizendo que a decisão do comitê sobre a Ralls foi extraordinária.
Mas se decisões dessa natureza, tomadas por quem sempre deu a direção, têm como pano de fundo a realidade eleitoral americana, política interna, retaliação, protecionismo, vão-se os rumos para a economia internacional, ficam apenas as circunstâncias.
Assim, tudo terá que ser repensado, inclusive, e principalmente, o papel de instituições multilaterais como a OMC. O mundo terá, em última análise, que tratar da adoção de um novo baralho, comum a todos.
E como isso é impossível num momento de crise, não há alternativa senão aprender a jogar com quem tem os coringas.
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