sexta-feira, julho 06, 2012

É preciso respeito aos contratos - NELSON FONSECA LEITE


VALOR ECONÔMICO - 06/07

Em seu primeiro discurso como presidente, Dilma Rousseff fez uma firme defesa da estabilidade econômica, condenou soluções mágicas e assegurou respeito aos contratos, lembrando o compromisso histórico do Brasil com o cumpriento de "contratos firmados e das conquistas estabelecidas". Neste momento, o país corre o risco de abrir um precedente sem tamanho e lança dúvidas sobre uma conquista que demorou décadas para ser alcançada: a manutenção de acordos de longo prazo que dão segurança e garantem estabilidade num setor altamente regulado como o de energia elétrica.

Tomados por um tom panfletário, alguns institutos de defesa do consumidor e parlamentares estão cobrando do Tribunal de Contas da União (TCU) a determinação da devolução de valores que segundo eles foi "apropriação indébita das empresas". Um primeiro olhar desatento pode levar a crer que eles estão com a razão.

O fato, porém, é que o atual modelo do setor elétrico foi desenhado para que as distribuidoras não tenham lucro ou prejuízo quando "arrecadam" dos consumidores para fazer repasses de itens sobre os quais não tenham poder de decisão. No jargão do setor, busca-se a "neutralidade" nesses repasses.

Há uma pressão para o TCU determinar às empresas a devolução de valores "apropriados indebitamente por elas"

O que não está na fala dessas entidades e políticos é que os contratos de concessão foram assinados nos anos 1990, muito antes da concepção do atual modelo, e não havia esse conceito de neutralidade. Na época, admitia-se que as empresas assumissem o risco associado às variações de preços e à previsão da demanda de energia, lucrando se houvesse superação das expectativas e amargando prejuízo no caso contrário. A partir de 2002, o governo aprovou diversas correções ex-post no cálculo tarifário para assegurar a neutralidade dos repasses. Embora não tenha sido intencional, essas correções não alcançaram os efeitos da variação de mercado sobre os encargos setoriais.

Nesse caso particular, o cálculo tarifário seria neutro apenas quando a venda de energia nos 12 meses subsequentes ao reajuste tarifário fosse igual à mensurada nos 12 meses anteriores. Como só por uma coincidência ocorreria essa igualdade, havia espaço para um aperfeiçoamento metodológico - o que é muito diferente de um erro de cálculo. A discussão alcançou o grande público porque alguns membros da CPI da Conta de Luz entenderam que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) teria cometido um inexistente equívoco.

Se tivesse ocorrido essa falha, a agência teria a obrigação de corrigi-lo unilateralmente, sem negociação com as distribuidoras. Nessa hipótese, as empresas que tivessem conseguido vendas superiores às correspondentes previsões deveriam devolver os valores cobrados a mais dos consumidores. No sentido contrário, aquelas que tivessem experimentado variação negativa do mercado deveriam receber dos consumidores. Como não há erro de cálculo, as devoluções ou cobranças retroativas foram corretamente rejeitadas pelo regulador.

Se a decisão tivesse sido diferente o regulador teria desrespeitado contratos, o que elevaria o risco regulatório e aumentaria o custo de capital. Em médio prazo, os consumidores sentiriam em seus bolsos o efeito desse retrocesso: ao contrário do que pregam alguns, as tarifas ficariam mais altas e não mais baixas.

Por outro lado, nada impedia que a Aneel negociasse com as concessionárias a repactuação do contrato de concessão, incluindo uma correção ex-post para neutralizar os efeitos da flutuação da demanda de energia na arrecadação para pagamento de encargos (mudança metodológica). Foi exatamente o que se fez em fevereiro de 2010. Naturalmente, sem efeitos retroativos.

Recentemente, alguns parlamentares apresentaram um Projeto de Decreto Legislativo propondo sustar os efeitos dos atos da Aneel e pleiteando a imposição da retroatividade e, em paralelo, formularam denúncia ao Ministério Público alegando que a decisão da agência seria ilegal. Ao contrário, ilegal seria desrespeitar contratos que foram assinados e reconhecidos como legais.

Agora estamos às vésperas de uma decisão do TCU que pode recomendar que a Aneel reveja a decisão tomada. Não faz sentido o órgão de controle externo decidir nesse sentido, já que o próprio Ministério Público junto ao TCU reconheceu a necessidade de preservação da disciplina vigente anteriormente à adoção do Termo Aditivo ao Contrato de Concessão.

No Processo Administrativo (TC-021.975/2007-0), o Ministério Público junto ao TCU é categórico ao afirmar que "o TCU não possui competência para intervir nas relações jurídicas havidas entre os usuários do serviço público concedido e as concessionárias, não lhe sendo possível determinar a realização de créditos de qualquer das partes ou atuar em defesa dos interesses individuais de qualquer delas".

Além disso, o referido Ministério Público usa a segurança jurídica e a proteção da confiança, consagradas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), para explicar que esses mecanismos, por si só, "impediriam que, após cerca de dez anos, fosse alterada a disciplina aplicada aos reajustes".

Sendo assim, ainda segundo o Ministério Público junto ao TCU, não houve ofensa às disposições contratuais e regulamentares e "as empresas se comportaram segundo as regras do jogo regulatório então aplicáveis". No campo legal, está claro que as distribuidoras simplesmente sujeitavam-se à aplicação da fórmula de reajuste tarifário prevista no próprio contrato de concessão, de acordo com a metodologia vigente e com aprovação da agência reguladora.

O mais impressionante, e que também não faz parte do discurso dos defensores da devolução do absurdo valor, é que se o acerto retroativo fosse legal, nem sempre beneficiaria os consumidores. Em alguns casos de empresas que tiveram variação negativa de mercado, como a Light, por exemplo, ocorreria o contrário. Ou seja, alguns consumidores acabariam tendo que ressarcir as distribuidoras que tiveram redução de mercado e teriam prejuízos por conta dos contratos assinados legalmente. Um país como o Brasil não pode se furtar a respeitar contratos para garantir estabilidade em setores fundamentais para a economia como o de energia elétrica.

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