sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Como o CNJ pode limpar mais a ficha - MARIA CRISTINA FERNANDES

VALOR ECONÔMICO - 24/02/12


Duas semanas separaram duas decisões do Supremo, a que garantiu o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a magistratura e a que referendou o veto a candidatos condenados por deliberação colegiada ainda que não definitiva.

À primeira vista, as duas decisões, de grande apelo popular, parecem se contrapor. Os mesmos juízes cujos poderes estarão sob a lupa do CNJ são aqueles que se veem reforçados pela possibilidade de condenar carreiras políticas ao limbo. O STF estaria garantindo prerrogativas à magistratura com uma mão e tirando-as com a outra.

Ambas as decisões tiveram placar apertado. Os poderes do CNJ foram garantidos por seis votos a cinco enquanto a Ficha Limpa teve a aprovação de sete ministros e a oposição de quatro. Dos 11 ministros, apenas quatro votaram favoravelmente tanto ao CNJ quanto à Ficha Limpa (Ayres Brito, Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Cármen Lúcia).

O exame dos votos mostra que as duas questões não foram relacionadas, mas o que a proximidade dos julgamentos revela é que a defesa das prerrogativas do Conselho presidido pela ministra Eliana Calmon é uma das maiores garantias contra arbitrariedades a que a magistratura se arrisca na missão de que foi imbuída pela Ficha Limpa.

Juízes, das menores às maiores comarcas, terão o poder de destruir projetos eleitorais eventualmente legítimos que, por contrariarem interesses políticos e empresariais, acabam denunciados a meios de comunicação partidarizados e acabam virando réus em processos judiciais.

O ministro Gilmar Mendes foi o principal porta-voz da visão de que o Supremo deve ir contra a maioria para garantir direitos constitucionais, como a presunção de inocência. Contra o argumento de que a Ficha Limpa foi um projeto de iniciativa popular com mais de um milhão de assinaturas e aprovado pelo Congresso, arguiu-se pela impossibilidade de se arregimentar tantas assinaturas sem interesses partidarizados por trás. Os algozes da Ficha Limpa também creditaram o interesse do Congresso em aprovar a lei ao instinto de sobrevivência política de parlamentares que, sob intensa pressão popular, votaram contra seus próprios direitos.

Mendes tem-se notabilizado pela defesa do ativismo judicial que preenche lacunas deixadas pelo Legislativo. Na Ficha Limpa, porém, não houve lacuna alguma. O Congresso respondeu a uma pressão popular fazendo tramitar a proposta em tempo recorde e aprovando-a com um único voto contrário. O Congresso agiria no mesmo sentido na legislatura seguinte ao mobilizar uma Proposta de Emenda Constitucional, com a adesão de senadores de todos os partidos, em defesa do CNJ caso o Supremo julgasse procedente a ação que lhe retirava poderes.

Foi no Supremo que a Ficha Limpa enfrentou inúmeros obstáculos desde sua promulgação em junho de 2010. Desde a indefinição sobre sua validade para as eleições daquele ano até questões de mérito como o poder de veto de colegiados contra os quais ainda cabe recurso judicial.

A dificuldade do Supremo de deliberar sobre a questão fez com que as eleições de 2010 transcorressem indefinidas sobre cerca de 10 milhões de votos dados a candidatos cuja sujeição à lei ainda permanecia incerta.

Nas contas de Mendes um quarto dos candidatos barrados pelas primeira e segunda instâncias têm suas carreiras políticas posteriormente regeneradas pelo Supremo.

É aí que entra a importância da decisão que manteve os poderes do CNJ. Se os magistrados barrarem candidaturas sob pressão de interesses ilegítimos, o Conselho Nacional de Justiça estará fortalecido para investigá-los e puni-los. Se quem tem poderes para julgar os políticos também estiver passível de julgamento é a democracia que ganha.

Os poderes renovados do CNJ ainda garantem a vigilância sobre a magistratura a despeito de injunções políticas de sua organização classista.

A Ficha Limpa teve na Associação dos Magistrados Brasileiros uma de suas grandes propulsoras. Foi o comando anterior da AMB que decidiu mobilizar a entidade por campanhas de cidadania.

Ao assumir a entidade no ano passado, depois de uma eleição apertada (52%), o atual presidente, o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nelson Calandra, achou que era chegada a hora de retirá-la da linha de frente de campanhas como a da Ficha Limpa e colocá-la na defesa de interesses de classe.

Se a Ficha Limpa foi aceita pelo Supremo num momento em que a entidade de classe dos magistrados está sob uma gestão marcadamente corporativa, cresce a responsabilidade do CNJ.

Durante a campanha eleitoral para fazer seu sucessor na presidência da AMB, o juiz pernambucano Mozart Valadares relatou ter sido pressionado por seus pares para não se engajar pela Ficha Limpa. O argumento era de que ele se arriscava a ficar contra parlamentares que depois deliberariam sobre os salários da magistratura. O candidato de Valadares acabaria derrotado por Calandra na disputa.

Daí porque toda vigilância é pouca. A Ficha Limpa certamente não será capaz de, sozinha, moralizar a República. Terá que se valer da participação cidadã que originou a lei e, como diz o jurista Joaquim Falcão, aproximou a democracia representativa da participativa. O que a vigilância do CNJ garante é que a lei não seja desmoralizada.

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