O monstro está na engorda
REVISTA VEJA
Com uma mão o governo alimenta o dragão e com a outra tenta timidamente segurá-lo
Depois de uma década de rigor na política econômica, o governo aposta nos efeitos da crise externa e afrouxa a luta contra a inflação
Marcelo Sakate
“Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo." Raras vezes o aforismo do filósofo hispano-americano George Santayana (1863-1952) foi tão útil quanto no Brasil deste fim de 2011. O passado de caos, sofrimento e descontrole provocado pela inflação está sendo lentamente esquecido. Por isso, o país pode estar se condenando a repetir aquela insana experiência coletiva que, no auge de sua força destrutiva, em 1989, chegou a produzir uma inflação anual de 1973%. O recorde mensal seria batido em março do ano seguinte, quando a taxa alcançou 82%. Os 97 milhões de brasileiros com menos de 30 anos só sabem de ouvir falar e não sentiram o que - foi a guerra diária de seus pais em uma economia irracional em que o dinheiro perdia poder de compra a cada hora. Uma nota de 100 valia menos de 20 no fim do mês. O governo alimentava a fornalha onde se queimava a prosperidade nacional oferecendo títulos da dívida remunerados sempre acima da inflação - do contrário, ninguém os compraria. Os brasileiros com mais de 30 anos, portanto, têm o dever de alertar os mais jovens sobre a loucura que é dar trégua à inflação, justamente o que os atuais condutores da política econômica brasileira estão fazendo ao romper, lenta mas decididamente com o tripé de estabilização financeira - baseado no controle inflacionário, na responsabilidade fiscal e no câmbio flutuante - em vigor no Brasil há doze anos. Como aquele que aparece na rua no meio do redemoinho, a inflação também é mestra em fingir que não existe - ou que se contenta em ficar bem pequenininha e comportada no seu canto. Os gigantes nascem pequenos. A hiperinflação também.
Na última década, período em que os menores de 30 usufruíram uma economia estável e com inflação sob controle, o ritmo de crescimento econômico brasileiro dobrou, a taxa de desemprego caiu pela metade, os investimentos privados internos e externos bateram recordes históricos. O Brasil se modernizou, ganhou credibilidade externa, acumulou reservas e prestígio que o ajudaram a enfrentar a crise mundial de 2008 com sobranceira tranquilidade. Essas conquistas estão sendo postas em risco pelos atuais integrantes da equipe econômica. "Temos uma nova política econômica", resume o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega em seu artigo na página 24 de VEJA desta semana. Essa nova política de nova só tem o nome. Ela é filhote das práticas heterodoxas mais ruinosas aplicadas no passado recente do Brasil. Que tenha resistido ao tempo é um desses fenômenos que carecem de explicação. Que ela possa estar dominando a cabeça dos condutores da política econômica brasileira é uma daquelas condenações a que se sujeitam os que esquecem o passado. Por enquanto, o sinal mais evidente e alarmante dessa guinada é a leniência com a inflação. Com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) já acima de 7%, o Banco Central baixou os juros, abdicando de seu papel de vigilante do dragão inflacionário. Essa tarefa foi deixada para uma quase certa, mas imponderável, externalidade: a brusca desaceleração econômica do mundo rico e seu efeito anti -inflacionário. O BC apostou que a economia mundial vai desacelerar. e esse choque externo tende a reduzir o crescimento do PIB brasileiro em 1,25 ponto porcentual; por isso o melhor a fazer é afrouxar a política monetária, baixando os juros. Os analistas reconhecem que não é uma má aposta - mas é uma aposta. Como ensina a Teoria dos Jogos, clássica na economia, o real problema das apostas não está em termos um bom ou mau histórico de acenos. O problema real está em sermos ruins em saber quando uma decisão pode ser baseada em uma aposta. É mau sinal quando o combate à inflação passa a se basear em uma aposta.
Sob a orientação de Guido Mantega, a equipe econômica tem operado, desde pelo menos o fim do ano passado, uma flexibilização do chamado tripé da estabilidade macroeconôrnica. Os componentes desse tripé, que vigora desde 1999, são: metas para a inflação, equilíbrio das contas públicas e câmbio flutuante. Implantado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e mantido (mesmo a contragosto) pelo seu sucessor. Esse é o sistema que fez do Brasil um país estável. Gustavo Loyola, ex-presidente do BC, vê riscos na aposta do governo. Diz ele: “As políticas econômicas são dinâmicas e devem ser administradas de acordo com a conjuntura. Mas a análise das medidas dos últimos meses mostra que o governo está testando os limites do tripé macroeconômico. E que há maior tolerância com a inflação". Para o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC, houve um “esgarçamento” gradual da política econômica: "Da mesma forma que na lenda do sapo que não salta da panela e morre porque a água vai esquentando aos poucos, há um gradual abandono das linhas de política econômica que caracterizaram o período de 1999 a 2008". Gustavo Franco, ex-presidente do BC, completa: "Não passa um dia sem que haja uma intervenção do Banco Central no câmbio, uma semana sem que apareça um novo truque contábil para que a meta do superávit -fiscal não seja prejudicada: O tripé foi muito mutilado".
Por convencimento próprio, o que é mais provável do que ter sido doutrinada nisso, a presidente Dilma Rousseff dá seu respaldo à mudança de rumos na condução da política econômica. Ela deixou isso claro em seu discurso no Fórum Exame, na sexta-feira, em São Paulo. "Não é admissível que se, de fato, configurar-se uma recessão e um processo deflacionário no resto do mundo, nós, aqui, não levemos isso em conta", afirmou a presidente, sinalizando com um "ciclo de reducão" da taxa básica de juros. "Obviamente, isso só será possível, dadas as condições internas e externas", afirmou Dilma, respaldando a aposta do Banco Central. Alexandre Tombini, presidente do BC, não tem dúvida de que a inflação no fim do ano ficará abaixo de 6,5%, o teto de tolerância da meta estabelecida. Para muitos analistas, é improvável que isso ocorra. Pela lei, caso dezembro chegue e Tombini seja desmentido pelos fatos, ele será obrigado a escrever uma carta aberta ao ministro da Fazenda explicando por que o BC deixou a inflação fugir do controle. Isso aconteceu pela última vez em 2003. O duro será explicar que o erro se deveu a uma aposta.
Por que os governos flertam com a inflação
Em um primeiro momento a inflação alivia as contas públicas, ...
Maior arrecadação
Com a subida dos preços, a arrecadação nominal aumenta, pois os impostos são embutidos no valor dos bens e serviços
Menores gastos
Os contribuintes pagam impostos à vista, mas o governo pode escalonar o pagamento de seus credores, deixando que a inflação corroa o valor real das dívidas
Menor dívida interna
Um repentino surto de inflação diminui o valor real dos títulos públicos em poder dos credores, reduzindo o estoque da dívida. Com estoque menor, o governo pode rolar a dívida a juros mais baixos. A dívida interna brasileira atual em títulos chega a 1,8 trilhão de reais. Se a taxa de juros caísse 1 ponto porcentual, o governo economizaria 18 bilhões de reais
Reindexação
É o infernal mecanismo que traz para o presente a expectativa futura de inflação, levando as empresas a uma corrida louca para remarcar preços defensivamente, o que desencadeia a espiral inflacionária
Perda do poder de compra
Como todo brasileiro com mais de 30 anos sabe, os reajustes de salário nunca acompanham o ritmo de subida dos preços inflacionados.
Injustiça social
Em um ambiente inflacionário, o ganho financeiro acaba superando o ganho produtivo, inibe investimentos, reduz o potencial de crescimento das economias e diminui a oferta de empregos. Não é por acaso que a inflação é chamada de "o mais cruel dos tributos"
Juros mais altos
O mecanismo de desvalorização real dos títulos públicos funciona em um primeiro momento, mas logo o mercado, sabendo que o governo tolera a inflação, passa a exigir juros mais altos ainda para rolar a dívida pública.
“Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo." Raras vezes o aforismo do filósofo hispano-americano George Santayana (1863-1952) foi tão útil quanto no Brasil deste fim de 2011. O passado de caos, sofrimento e descontrole provocado pela inflação está sendo lentamente esquecido. Por isso, o país pode estar se condenando a repetir aquela insana experiência coletiva que, no auge de sua força destrutiva, em 1989, chegou a produzir uma inflação anual de 1973%. O recorde mensal seria batido em março do ano seguinte, quando a taxa alcançou 82%. Os 97 milhões de brasileiros com menos de 30 anos só sabem de ouvir falar e não sentiram o que - foi a guerra diária de seus pais em uma economia irracional em que o dinheiro perdia poder de compra a cada hora. Uma nota de 100 valia menos de 20 no fim do mês. O governo alimentava a fornalha onde se queimava a prosperidade nacional oferecendo títulos da dívida remunerados sempre acima da inflação - do contrário, ninguém os compraria. Os brasileiros com mais de 30 anos, portanto, têm o dever de alertar os mais jovens sobre a loucura que é dar trégua à inflação, justamente o que os atuais condutores da política econômica brasileira estão fazendo ao romper, lenta mas decididamente com o tripé de estabilização financeira - baseado no controle inflacionário, na responsabilidade fiscal e no câmbio flutuante - em vigor no Brasil há doze anos. Como aquele que aparece na rua no meio do redemoinho, a inflação também é mestra em fingir que não existe - ou que se contenta em ficar bem pequenininha e comportada no seu canto. Os gigantes nascem pequenos. A hiperinflação também.
Na última década, período em que os menores de 30 usufruíram uma economia estável e com inflação sob controle, o ritmo de crescimento econômico brasileiro dobrou, a taxa de desemprego caiu pela metade, os investimentos privados internos e externos bateram recordes históricos. O Brasil se modernizou, ganhou credibilidade externa, acumulou reservas e prestígio que o ajudaram a enfrentar a crise mundial de 2008 com sobranceira tranquilidade. Essas conquistas estão sendo postas em risco pelos atuais integrantes da equipe econômica. "Temos uma nova política econômica", resume o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega em seu artigo na página 24 de VEJA desta semana. Essa nova política de nova só tem o nome. Ela é filhote das práticas heterodoxas mais ruinosas aplicadas no passado recente do Brasil. Que tenha resistido ao tempo é um desses fenômenos que carecem de explicação. Que ela possa estar dominando a cabeça dos condutores da política econômica brasileira é uma daquelas condenações a que se sujeitam os que esquecem o passado. Por enquanto, o sinal mais evidente e alarmante dessa guinada é a leniência com a inflação. Com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) já acima de 7%, o Banco Central baixou os juros, abdicando de seu papel de vigilante do dragão inflacionário. Essa tarefa foi deixada para uma quase certa, mas imponderável, externalidade: a brusca desaceleração econômica do mundo rico e seu efeito anti -inflacionário. O BC apostou que a economia mundial vai desacelerar. e esse choque externo tende a reduzir o crescimento do PIB brasileiro em 1,25 ponto porcentual; por isso o melhor a fazer é afrouxar a política monetária, baixando os juros. Os analistas reconhecem que não é uma má aposta - mas é uma aposta. Como ensina a Teoria dos Jogos, clássica na economia, o real problema das apostas não está em termos um bom ou mau histórico de acenos. O problema real está em sermos ruins em saber quando uma decisão pode ser baseada em uma aposta. É mau sinal quando o combate à inflação passa a se basear em uma aposta.
Sob a orientação de Guido Mantega, a equipe econômica tem operado, desde pelo menos o fim do ano passado, uma flexibilização do chamado tripé da estabilidade macroeconôrnica. Os componentes desse tripé, que vigora desde 1999, são: metas para a inflação, equilíbrio das contas públicas e câmbio flutuante. Implantado no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e mantido (mesmo a contragosto) pelo seu sucessor. Esse é o sistema que fez do Brasil um país estável. Gustavo Loyola, ex-presidente do BC, vê riscos na aposta do governo. Diz ele: “As políticas econômicas são dinâmicas e devem ser administradas de acordo com a conjuntura. Mas a análise das medidas dos últimos meses mostra que o governo está testando os limites do tripé macroeconômico. E que há maior tolerância com a inflação". Para o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC, houve um “esgarçamento” gradual da política econômica: "Da mesma forma que na lenda do sapo que não salta da panela e morre porque a água vai esquentando aos poucos, há um gradual abandono das linhas de política econômica que caracterizaram o período de 1999 a 2008". Gustavo Franco, ex-presidente do BC, completa: "Não passa um dia sem que haja uma intervenção do Banco Central no câmbio, uma semana sem que apareça um novo truque contábil para que a meta do superávit -fiscal não seja prejudicada: O tripé foi muito mutilado".
Por convencimento próprio, o que é mais provável do que ter sido doutrinada nisso, a presidente Dilma Rousseff dá seu respaldo à mudança de rumos na condução da política econômica. Ela deixou isso claro em seu discurso no Fórum Exame, na sexta-feira, em São Paulo. "Não é admissível que se, de fato, configurar-se uma recessão e um processo deflacionário no resto do mundo, nós, aqui, não levemos isso em conta", afirmou a presidente, sinalizando com um "ciclo de reducão" da taxa básica de juros. "Obviamente, isso só será possível, dadas as condições internas e externas", afirmou Dilma, respaldando a aposta do Banco Central. Alexandre Tombini, presidente do BC, não tem dúvida de que a inflação no fim do ano ficará abaixo de 6,5%, o teto de tolerância da meta estabelecida. Para muitos analistas, é improvável que isso ocorra. Pela lei, caso dezembro chegue e Tombini seja desmentido pelos fatos, ele será obrigado a escrever uma carta aberta ao ministro da Fazenda explicando por que o BC deixou a inflação fugir do controle. Isso aconteceu pela última vez em 2003. O duro será explicar que o erro se deveu a uma aposta.
Por que os governos flertam com a inflação
Em um primeiro momento a inflação alivia as contas públicas, ...
Maior arrecadação
Com a subida dos preços, a arrecadação nominal aumenta, pois os impostos são embutidos no valor dos bens e serviços
Menores gastos
Os contribuintes pagam impostos à vista, mas o governo pode escalonar o pagamento de seus credores, deixando que a inflação corroa o valor real das dívidas
Menor dívida interna
Um repentino surto de inflação diminui o valor real dos títulos públicos em poder dos credores, reduzindo o estoque da dívida. Com estoque menor, o governo pode rolar a dívida a juros mais baixos. A dívida interna brasileira atual em títulos chega a 1,8 trilhão de reais. Se a taxa de juros caísse 1 ponto porcentual, o governo economizaria 18 bilhões de reais
Reindexação
É o infernal mecanismo que traz para o presente a expectativa futura de inflação, levando as empresas a uma corrida louca para remarcar preços defensivamente, o que desencadeia a espiral inflacionária
Perda do poder de compra
Como todo brasileiro com mais de 30 anos sabe, os reajustes de salário nunca acompanham o ritmo de subida dos preços inflacionados.
Injustiça social
Em um ambiente inflacionário, o ganho financeiro acaba superando o ganho produtivo, inibe investimentos, reduz o potencial de crescimento das economias e diminui a oferta de empregos. Não é por acaso que a inflação é chamada de "o mais cruel dos tributos"
Juros mais altos
O mecanismo de desvalorização real dos títulos públicos funciona em um primeiro momento, mas logo o mercado, sabendo que o governo tolera a inflação, passa a exigir juros mais altos ainda para rolar a dívida pública.
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